terça-feira, 1 de julho de 2014

             AI QUE PRAZER,TER UM LIVRO PARA LER...E LER! 


Sou um leitor compulsivo!
Esta minha condição teve particular importância em toda a minha vida.
Aprendi a ler um bom bocado antes de ir para a escola e até recordo, a esse propósito, um episódio,teria aí pouco mais que seis anos.



À noite,enquanto esperávamos a hora do jantar,o meu Pai,como sempre fazia ao regressar a casa,lia o jornal “O Século”.Junto dele,peguei na primeira página e fui soletrando:”director:João Pereira da Rosa”.Só que,na minha inocência,o S tinha o valor de Esse,o que dava,foneticamente, João Pereira da Rossa-ou Roça!
A gargalhada de meu Pai e a troça de meus irmãos serviram para aprender o valor daquela consoante assim colocada.
Às quintas-feira “O Século” trazia um suplemento infantil intitulado “Pim-Pam-Pum”.Talvez isso tivesse uma certa influência na minha vontade de aprender a ler.Os “bonecos”estimulam a imaginação das crianças!
Era o tempo de uma infância descuidada,num local na altura ermo,a Senhora das Dores.
Ermo,mas não isento de atractivos.O sítio onde se situa o depósito da água,era uma velha pedreira abandonada.Mesmo ao cimo,estava a casa do Zé Pato,que tinha uma ranchada de filhos.Dois deles,o Zé e o António,foram meus companheiros de escola.Lá mais ao longe,à Espadaneira,na estrada para Alcabideque,morava também outro condiscípulo,o António Nogueira,ou melhor, para efeitos de identificação,o António Prior.Era com eles que me deslocava para a escola da vila,passando pela Quinta de S.Tomé,se os portões estivessem abertos,ou atalhando pelo Olho,que dava para a estrada da Serrada. _ Evidentemente,a Quinta não apresentava o aspecto actual,com a circular externa a passar-lhe junto à porta.
Era linda,a Quinta de S.Tomé!
Tinha um rio que a contornava e lhe conferia sempre,mesmo no pico do verão,aquele ar de frescura agradável.Era difícil perceber o aspecto exterior do prédio do lado nascente,porque uma cortina de loureiros e figueiras bravas o encobriam totalmente.Até o Jardim da Árvore dos Macacos,debruçado sobre o rio,mal se descortinava para quem vinha de fora.Três magestosos portões em ferro,resguardavam a moradia,a abrir num grande pátio onde se alojavam as estrebarias,o celeiro e a casa de habitação do caseiro,esta mesmo em frente à imponente escadaria de pedra de acesso ao primeiro andar.Por baixo passava o ribeiro que atravessava todo o pátio e ia alimentar o moinho.
Havia apenas um senão,na velha Quinta.Dizia-se que estava assombrada.Durante o tempo em que um dos últimos donos lá viveu,a casa tinha electricidade e telefone,mas ao partir,mandou cortar ambas as ligações.No entanto,murmurava-se que o telefone tocava de vez em quando e,da mesma forma ,se acendiam luzes.Pessoalmente creio que isso foi um subterfúgio para afastar visitantes indesejáveis.
A Senhora das Dores,naquele tempo,tinha uma escassa meia-dúzia de moradores.Mas bastante curiosos.
Num pequeno morro ,havia a barraca do Ti David Vila Franca,fogueteiro.No fim do ano escolar os cachopos iam lá trocar os cadernos usados por bombas, bichas de rabiar e,se os cadernos eram suficientes,também por “paus-verdes” que lançavam lindo fogo de artifício.Em frente,morava o Daniel Martinho que,diziam,era perito em construir máquinas de fazer dinheiro,aparatos rudimentares com os quais conseguia enganar alguns papalvos.Era um homem simpático,característica indispensável para enrolar os trouxas.Diametralmente oposto no feitio,era o João Lobo,que vivia um pouco mais acima.Quando eu tinha sete ou oito anos,já ele era velho e revelho. Sorumbático,cara de poucos amigos,dizia-se que tinha morte de homem às costas.Não me admirava nada.Foi “caceteiro”dos fidalgos do Palácio dos Lemos,tradicionalmente miguelistas!
O mesmo morro onde viveu o David Vila Franca,também tem uma história para contar.Diz a lenda que ali existia a habitação de um homem que foi carrasco oficial em Coimbra.O povo fugia a sete pés daquele lugar e quando o homem morreu,queimaram-lhe a casa.Durante muito tempo o lugar era considerado maldito.Para quebrar a maldição,colocaram num velho cipreste existente uma imagem de Nossa Senhora das Dores,em memória das dores sofridas pelos justiçados às mãos do carrasco.Mais tarde,em 1906,o Padre Dr.Antunes mandou construir a capela,devotada à Virgem.
A Senhora das Dores foi,em tempos recuados,local de peregrinação,mas não tenho memória disso.Recordo sim uma grande festa lá realizada,com quermesse,barracas de comes-e-bebes e um pavilhão onde vi um rancho de Condeixa a bailar.Tenho bem na memória o “vira de quatro” e dois magníficos dançadores:a Soledade Cavaca e o Miguel Preces.

Quando tinha cerca de dez anos,a minha família mudou-se para a vila.
Pode causar um pouco de confusão a destrinça entre Senhora das Dores e a vila, hoje,que está tudo ligado,mas ela existia mesmo.Basta dizer que eram freguesias distintas:Condeixa-a-Nova e Condeixa-a-Velha.Essa diferença notava-se particularmente na Páscoa,quando éramos visitados só à segunda-feira.Por causa disso criou-se um problema entre o meu Pai e o pároco de Condeixa-a-Velha.A visita pascal num dia de trabalho, impedia que o meu Pai estivesse presente.Quando chegou a ocasião de fazer o baptizado de uma das minhas irmãs mais novas,o padre recusou-se,argumentando que o pai da criança não frequentava a Igreja,nem assistia aos actos religiosos.Parecia que estava criado um problema insolúvel.Nada disso!Depois de uma conversa entre o padre e o meu Pai,este “convenceu” o pároco a realizar o baptismo.Grande “capacidade de persuasão”!
Na vila,fomos habitar uma casa pertencente ao Palácio,pois o meu Pai tinha,por contrato com a entidade patronal,direito a habitação.

Novo lugar,novos horizontes,novos vizinhos e o centro da vila muito mais próximo.Passei o restante período da minha infância e a juventude,até casar,nessa casa,mesmo em frente à Capela da Senhora da Piedade,no caminho para a Barreira.Anos mais tarde,tive conhecimento que se dizia que a casa era assombrada.Os meus pais nunca falavam nisso,para não assustar as crianças,mas parece que se ouviam de noite ruidos estranhos.Sinceramente,nunca me apercebi disso e,durante a juventude, muitas vezes entrei a altas horas em casa.
Os vizinhos,mais numerosos,também tinham características peculiares.Mesmo ao lado,o Ti António Borrega,alcunha que se estendia aos restantes membros da família,era ferreiro e todo o santo dia o ouvia,desde os fundos da casa,a malhar o ferro.Diziam que era especialista a moldar e têmperar os picões,escopros de aço para picar as mós de pedra dos moinhos.Tinha um pequeno quintal ao dobrar a curva,que ele trazia sempre primorosamente cultivado.
Já o sobrinho,João Borrega,na esquina com a Rua Francisco de Lemos,era barbeiro e sofrível tocador de violino.Tocata para eventuais ranchos ou baile de romaria,aí estava ele com o seu violino.Também tinha uma outra alcunha,”alemão”,provavelmente por gostar muito de ler e comentar as revistas nazis que durante a guerra eram profusamente distribuídas na terra.
A minha vivência durante o tempo em que habitei a casa da estrada da Barreira,foi das mais enriquecedoras,talvez o melhor período da vida,porque o da passagem de criança para a idade de adolescente.Foi também a altura em que comecei a embrenhar-me mais na leitura.
Recordo-me do primeiro romance que consegui ler desde o principio ao fim.Naturalmente,com duas irmãs adolescentes,o que abundava lá por casa era literatura romântica da Colecção Azul, Max du Veuzit ou Magali.Até me atrevi a comentar o enredo de um desses romances com a minha saudosa irmã Lucinda!
Mais tarde,já em Coimbra e porque a Biblioteca Municipal ficava mesmo ali à porta da Escola Industrial,tornei-me sócio.Devorei Emílio Salgari e,tal como ele,naveguei dentro de uma sala pelos mares das Caraíbas,acompanhando Sandokan na sua conquista de Mompracem ou na recuperação do ceptro de Rei dos Corsários.
Durante um largo período de tempo em que estive retido,por doença,foram ainda os livros que serviram para empurrar os preguiçosos ponteiros de um relógio que teimava em demorar o tempo de reabilitação e devolver-me ao convívio dos companheiros de brincadeiras.
Mas não se pense que eu era um rato de biblioteca!Afora esse pequeno percalço de saúde,tive uma infância e adolescência perfeitamente normais.Também participei nas “visitas clandestinas”aos pomares e nos jogos de pontapé na bola,na Praça. 

Neste particular,devo confessar que não era lá grande coisa.Ainda hoje li um pensamento curioso : “Os que odeiam o futebol e julgam que isso os torna mais inteligentes,são aqueles que ninguém escolhia para as peladinhas no intervalo das aulas”.Claro que não odeio,nem nunca odiei o futebol e quanto à inteligência,acho que ela passou à minha porta,mas não entrou.A verdade porém é que,na Praça,quando o Luís Pocinho escolhia as “equipas”,eu só entrava quando era necessário completar o número de participantes.E o meu lugar no “time” foi sempre fora da renhida luta,onde não tivesse influência e,sobretudo,não estorvasse.Certa vez,durante um desses desafios, era defesa e estava ali junto ao guarda-redes,quando de repente me vi perante um ataque adversário.Consegui suster a bola e rematei. Marquei um golo monumental... na minha baliza! E ainda hoje estou p'ra saber porque é que o Luís correu atrás de mim,avenida acima!
A Praça era local de muitas brincadeiras,para além dos jogos de bola.Ao sábado à noite lá nos reuníamos à espera da “experimentação”,uma breve sessão cinematográfica proporcionada pelo Sr.Joaquim da Costa,proprietário do cinema.Os temas dos filmes serviam depois para incentivo das nossas brincadeiras.
Como o meu Pai era empregado do Palácio Sotto Mayor,onde existia uma central de produção de energia,eu passei toda a infância e juventude dentro da Quinta.Conheci-a nos mais pequenos pormenores.
E que bela era!
O jardim das magnólias,com lindo rendilhado de buxo a proteger os canteiros de flores, lagos artificiais e sebes de canas da india,o jardim novo,estendendo-se pelo espaço que antigamente pertenceu ao Paço e onde em tempos esteve o Quelhorras,essa figura de pedra que chegou a ser como que um ex-libris de Condeixa,os arruamentos traçados a régua e esquadro,percorrendo toda a quinta,e o tanque com um interesante pavilhão de caça bem no meio,constituiram para mim um apreciável local para ler um bom livro à sombra dos pomares,ou sítio de outros entretenimentos. Para mais,como a propriedade é murada,permitia o uso de espingardas de carregar pela boca,na caça às várias espécies aladas.Mas isso raramente acontecia,apenas quando o meu irmão deixava descuidadamente a arma ao meu alcance.De resto,nunca fui grande atirador.Com as fisgas,que em Condeixa se chamam elásticos,já era mais expedito.Onde punha a vista,punha o projéctil...mais ou menos!
E a vida continuava.
Aos quinze anos,tive o meu primeiro namoro,oficial,com pedido formal por carta e depois pessoalmente.Até com consentimento dos pais da moça!
Mas não foi esse o “primeiro amor”,aquele que só tem comparação com o luar de Janeiro.Como criança precoce que se preza,apaixonei-me mais cedo.
Também comecei com aquela idade a gostar muito de dançar.
Com a minha baixa estatura,só tinha duas hipóteses:maroto,ou bailarino.Maroto,no sentido de gostar da brincadeira,sempre fui.Portanto,escolhi as duas! Porém,era um tempo de poucas liberdades entre rapazes e raparigas.Os bailes serviam então para aconchegar ao peito outro peito mais rechonchudinho.Claro que algumas não permitiam liberdades e colocavam logo a mão esquerda no nosso ombro,assim como quem diz:”olha lá,não te estiques!”.Mas com jeitinho,como quem não quer a coisa,lá se levava a água ao moinho.
Condeixa tinha,nessa altura,alguns locais propícios a grandes bailes:os salões do Paço(o palácio dos Almadas,onde depois foi construída a Pousada de S.Cristina);o salão do Clube de Condeixa e a Casa do Povo.
Voltando à minha paixão pela leitura,que afinal é o tema fundamental deste exercício de memória,acho que é tempo de evocar o Clube de Condeixa e a sua Biblioteca de pouco mais de meio milhar de volumes,adquiridos através de ofertas.Li esses livros todos.A biblioteca,naturalmente,tinha escritores clássicos mas também muitos outros completamente desconhecidos.Curiosamente,grande número de obras eram de autores eslavos.A minha apetência por essa literatura despertou a desconfiança de alguns senhores do regime que faziam parte das diversas direcções e tive um ou outro dissabor.
Naquele tempo não havia muita disponibilidade para comprar livros-nem agora!-e a biblioteca do Clube teve uma importância grande na formação de muitos jovens.
Mais tarde,com melhor estabilidade financeira,fui adquirindo os livros que necessitava.Durante algum tempo,uma irritante catarata ocular impediu-me de ler tanto quanto desejava.Actualmente já compro poucos livros,embora continue a ler com bastante assiduidade os livros que possuo e ainda não li,ou requisitando na Biblioteca Municipal os que necessito.

Se eu tivesse o talento do Raul Solnado,diria a terminar:
«Prontos,é esta a história da minha vida.Muito obrigado e façam o favor de ser felizes».  

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

LENDAS,ADÁGIOS E CRENÇAS POPULARES

                              

Portugal possui um património rico em lendas e tradições,forma de cultura popular que utiliza o maravilhoso e o fantástico como veículo para difundir ideias,quase sempre com intenção moralizadora-a eterna disputa entre o Bem e o Mal.Serviam também as histórias para ocupar o tempo e a imaginação com breves ou longas narrativas contadas,sobretudo à noite,tanto dentro do aconchego da casa onde a lareira fornecia o necessário calor para combater o frio invernal,como também nas noites cálidas de verão,com os ouvintes sentados à roda do "contador de histórias",regra geral alguém idoso que conservava o segredo de velhas lendas,transmitidas através de gerações.São particularmente interessantes as lendas que envolvem motivos religiosos,de tal forma que ainda hoje continuam a fazer parte dos feitos atribuidos a muitos dos santos.Algumas das histórias são puramente fantasiosas,servindo apenas para incutir nos espíritos a noção de algo que nos transcende,raiando muitas vezes o inverosímil.É o caso,por exemplo,da padroeira de Condeixa,Santa Cristina,cuja lenda refere ter sido lançada ao mar com uma pesada mó de moinho presa no pescoço,à ordem de seu próprio pai,mas que se salvou pela intervenção divina.
No entanto,algumas crenças podem conter algo de verdade.
No século XVIII,o Bispo do Porto,D.Fernando Correia Lacerda introduziu nas lendas da Rainha Santa Isabel,por ele contadas,a hstória de um pagem que inventou uma acusação mas acabou castigado,por intervenção divina,no trama que ele próprio urdira.
"Na corte de D. Dinis havia um pagem protegido da Rainha,pois a ajudava nas muitas obras de caridade por ela feitas,sem o conhecimento do Rei.Um outro pagem,invejoso da maneira como o seu companheiro era tratado na corte,insinuou junto ao Rei que havia algo de estranho naquela relação da Rainha com o seu pagem.O monarca,movido pelo ciúme,recomendou ao dono de um forno de cal que quando lhe mandasse um pagem para saber se determinada ordem sua fora cumprida,o lançasse imediatamente no forno.Ordenou então ao pagem protegido da Rainha que fosse junto do forneiro com o recado.Ao passar junto da Igreja de S.Francisco da Ponte e ouvindo os sinos que anunciavam o início do ofício divino,o mensageiro,que era muito devoto,lá entrou e asssitiu à missa,demorando assim mais tempo que o necessário para cumprir a missão ordenada.O Rei,pensando que o pagem já estaria a arder,enviou o outro para confimar a ordem que dera.Ora isso era a senha que o Rei dera ao forneiro.Quando o pagem intriguista se apresentou ao homem do forno,foi imediatamente lançado às chamas!"
Mas não só a temática religiosa ou de simples crença popular servia para alimentar o imaginário dos ouvintes.São por demais conhecidas as chamadas "histórias da carochinha",narrativas ingénuas onde os animais representavam também o seu papel no desenrolar do enredo.
A par destas maneiras de contar histórias,surgem ainda os prolóquios ou adágios populares,tais como:"Pelo andar da carruagem,se vê quem lá vai dentro",frase que parece antiquada mas que ainda continua a utilizar-se como manifestação cultural popular.
Estou a recordar-me de um rifão popular bastante usado.É a história contada na nossa região de um camponês que foi a Coimbra vender os seus produtos transportados no dorso de um jumento.Ao chegar à ponte,dois estudantes resolveram pregar uma partida ao aldeão.Um deles retirou sorrateiramente o cabresto do burro enfiou-o no próprio pescoço,enquanto o outro se afastava com o animal e a respectiva carga.O dono do asno,sentindo que este não estava a caminhar com a desenvoltura que desejava,voltou-se para trás disposto a castigá-lo.Qual não foi o seu espanto ao deparar com um homem,em vez do burro.Logo o estudante lamuriou:"Não me bata,meu amo.Eu sou um pobre estudante que estava encantado,mas ao entrar na minha cidade o encanto desvaneceu-se  e sou novamente homem.Agora só peço a sua generosidade para me livrar deste maldito cabresto".O camponês logo o libertou pedindo-lhe muitas desculpas pela pancada que dera a quem pensava ser um animal.Depois disso,partiu para a feira de gado disposto a comprar outro animal que substituisse o burro feito estudante.Aconteceu porém que os estudantes,depois de venderem a mercadoria roubada,foram também à feira para vender o burro.O aldeão,ao ver o seu asno à venda,chegou-se-lhe às orelhas e disse:Olhe,senhor estudante,"quem não o conhecer,que o compre!"
Perdeu-se o salutar convívio das reuniões familiares e,com isso,perdeu-se também o hábito de "contar histórias":
Infelizmente,nenhum dos meios modernos de comunicação têm capacidade para substituir o sortilégio das velhas lendas e contos populares!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012


                     Crónicas de Um Tempo Passado--O Rio


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre,bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa,essa
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo,não tem pressa.
Livros são papeis pintados com tinta,
Estudar é uma coisa indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor,quando há bruma,
Esperar D.Sebastião,
Quer venha,ou não!
Grande é a poesia,a bondade,as danças...
Mas o melhor de tudo são as crianças,
Flores,música,o luar,e o sol,que peca
Só quando,em vez de criar,seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

de: Fernando Pessoa


Ler,é uma das actividades que mais tempo ocupam o meu desocupado tempo de aposentado.Leio compulsivamente,em casa,no carro,onde o tempo tenha de ser ocupado por qualquer coisa que me ocupe o espírito.
Desistindo,por várias razões,nas quais a financeira tem lugar de destaque,de comprar livros,utilizo geralmente a Biblioteca Municipal,na frequência de semana e meia,mais ou menos.
Mas também alguns amigos,conhecedores do meu “vício”,se dispõem a facultar-me livros.E foi exactamente esse facto que originou a presente crónica.
Até mim chegou um volume intitulado “Água doce,Mar salgado”.O seu autor,Manuel do Amaral,era quase um conterrâneo.Oriundo de uma família muito antiga e altamente conceituada de Condeixa,mais propriamente da aldeia de Atadôa,Alcabideque,Condeixa-a-Velha,era lá que passava as suas férias de menino.Neste livro,que escreveu em 1983,aborda no primeiro capítulo um tema que me é muito querido e familiar,pois também utilizei os mesmos sítios para as minhas brincadeiras da infância e juventude.
O Alcabideque é o nome desse primeiro capítulo,que passo a descrever na integra sem necessidade de apôr qualquer observação,tal a realidade como está descrito.
Não conheço a lei que defende os direitos de autor,mas quero deixar bem explícito que não pretendo fazer plágio.Sendo o livro pouco conhecido,apenas achei que tem interesse este seu primeiro capítulo,principalmente para quem utilizou o rio desta maneira que o Autor descreve.Para quem pretenda ler todo o volume de «Água Doce Mar Salgado»,deixo a seguinte informação:«Edição Revista “Diana”-R.da Barroca,78-r/c-1200 Lisboa.


«O ALCABIDEQUE»

“Foram decerto os olhos da minha infância que fizeram com que o rio Alcabideque não apresentasse grandes diferenças em relação ao Amazonas,nem em caudal,nem em extensão,nem em largura.A imagem que mantenho bem gravada na memória é a de então:a de um rio que embora também corresse para o mar,como o Amazonas,fazia-o ao contrário,isto é,de Leste para Oeste.Esta era,talvez,a maior diferença.Por isso ainda hoje me recuso a modificar a opinião que então formei do rio que passava ao fundo do quintal da casa onde em grande parte cresci.Mesmo quando por lá vou agora,embora raramente,e olho as suas bem modestas proporções,não me abandona,mesmo assim,e perante a realidade dos factos,aquela sensação formulada há muito tempo,de grande,de fundo,de rápido e por vezes tumultuoso quando os invernos atingiam o auge do rigor.Isto tudo me parecia bem real,palpável,verdadeiro,muito embora a distância de uma margem a outra não ultrapassasse,em média,os quatro metros bem medidos.Tão-pouco a profundidade na grande maior parte do seu curso,dava para cobrir um homem de pé,nem mesmo o seu comprimento,no troço que eu abrangia nas minhas deambulações,atingia sequer um escasso quilómetro.A verdade,no entanto,é que o Alcabideque foi,durante alguns anos,o armário dos meus sonhos,o mundo inexplorado das minhas aventuras,o mar da minha vontade de viver.E foi depois,como é ainda hoje,uma peça importante das peças usadas que guardo no baú das recordações.
Aquele rio era límpido e transparente.Tirando nos tempos de invernia em que com as enxurradas se tornava lodoso e opaco,de uma forma geral o fundo deixava-se ver,e também se podiam observar,por quem tivesse interesse e paciência,os inúmeros habitantes das águas.Porque no rio havia ruivacos,barbos e enguias.Passeavam sangessugas pouco mais pequenas que o dedo mindinho,que se agarravam à pele das pernas quando andávamos na água.À superfície,nadavam insectos pretos e pernaltas chamados alfaiates,e acima da superfície andavam sempre as libélulas de cores chamativas e asas transparentes,a que apelidávamos de tira-olhos,não sei bem porque razão.Também alguns bezouros zuniam em voos rápidos,enquanto os juncos badalavam constantemente accionados pela corrente.Accionadas pela corrente eram as rodas de tirar água,com alcatruzes e as mós do moinho e da azenha.
No inverno a água do rio era represada em diversos pontos,e atirada para as terras limítrofes que acabavam por passar a estação das chuvas alagadas e cheias de erva alta que depois era cortada para o gado comer.Era um nateiro,como o Nilo no Egipto.Nessa altura do ano eu não via os peixes,nem os alfaiates,nem os tira-olhos,nem os bezouros.Nem mesmo uns ratos enormes que,chegada a Primavera,enxameavam as margens do rio,passando de uns buracos para outros por entre as raízes dos salgueiros e dos choupos postas a nu pela erosão da água.Também as águas eram desviadas por canais e condutas tão bem feitas que o rio chegava a passar por cima dele próprio,de atravessado,já se vê,num desses milagres da ciência hidráulica que se fosse hoje,se calhar,já não me faria abrir tanto a boca de espanto como então fazia.E teria sido assim,levado por esses canais e essas condutas,que ele se dava a beber a escravos e senhores naqueles tempos recuados da ilustre Conímbriga.
Os escassos mil metros a que atrás me refiro deram algumas vezes para eu fazer viagens arriscadas na descida da corrente,com as perigosas passagens de fundões e mesmo com uma difícil transposição do açude da azenha.O retorno fazia-se à sirga,puxando penosamente a improvisada jangada,rio acima,como se eu e os meus habituais companheiros fôssemos barqueiros do Volga.Afinal,tudo era o desbravar de um eterno desconhecido,e o empenho e ânimo com que me lançava repetidamente naquela descida nunca terminada davam-me redobrada sensação de uma aventura infinda.
Desses poucos anos passados a iniciar o estreito contacto com uma natureza ainda em grande parte livre,nasceu em mim a paixão pelo campo,pela água,pelas ervas e pelas árvores,pelos pequenos e grandes animais que por toda a parte nasciam,viviam e morriam.O tempo havia de me levar depois a outras terras,a conhecer outras águas,até mesmo à imensidão do mar,mas sempre e de cada vez me lembrava do Alcabideque,das cachoeiras,dos poços,dos peixes e dos insectos que habitavam as suas águas,das aves e dos outros animais que faziam parte integrante do sistema que ele comandava.Porque um rio é tudo,e dele se forma tanta coisa que onde ele não existe não há quase nada.Aquele ali era um mundo,correndo pela várzea,deixando-se comandar,desviar,utilizar,dando de beber,molhando as raízes das plantas,oferecendo oxigéneo aos peixes,borrifando as penas dos pássaros para humedecer os ovos no choco dos ninhos,e mantendo a flutuar ervas e detritos por entre os quais as libélulas e outros insectos alados iam fazendo posturas na renovação da Primavera.E depois continuava,continuava sempre,e quem sabe se por caminhos ocultos nas profundezas dos oceanos fazia ao contrário a peregrinação das enguias que chegavam em viagem secreta do Mar dos Sargaços.A água daquele rio,transformada em água de outro rio maior, e de outro ainda,e assim até ao mar,fazia sempre o mesmo percurso que a minha imaginação fazia.Tinha muitos anos,o rio.Os franceses tinham abandonado as margens do Alcabideque na miséria,na morte e na desolação,na pilhagem da retirada.Depois da derrota de Massena na batalha da Redinha.Um pouco mais de cem anos tinham decorrido desde então.Mas daí até à revolução liberal foram os frades que voltaram a instalar as suas agriculturas aplicadas à exploração da terra.Continuaram a desenvolver os princípios da irrigação e drenagem das parcelas da várzea,e desenvolveram também naturalmente os primitivos equipamentos industriais:os moinhos,as adegas,os lagares.Depois desse tempo,e mesmo antes,a aldeia bordejava o rio no meio do seu percurso pela várzea,não tinha mais notícias do Mundo do que as que lhe eram trazidas por um ou outro homem que se deslocava à vila ou à cidade, mais próximas.Assim nunca chegaram a saber que Napoleão tinha perdido a batalha de Waterloo,e que o grande cabo de guerra que mandara para lá os franceses conseguia comunicar de Paris com Roma em apenas quatro horas,usando um sistema de semáforos contínuos.Nem tão pouco lhes passou pela cabeça que pouco mais de um século depois esse seria mais ou menos o tempo necessário a um homem para ir,de avião,de uma cidade à outra.Quando eu andava lá pela aldeia o que os homens sabiam do Mundo era o que alguns deles tinham trazido das terras de França depois da Grande Guerra.Outros não tinham de lá trazido nada porque tinham por lá ficado mortos debaixo da terra..Outros ainda nada contavam porque os gases nunca mais os deixaram pensar direito.
No tempo quente,no intervalo de uma ida aos ninhos tomava-se banho num dos marachões do rio.Todos sabiam nadar,o que hoje muito me espanta.O banho era em nu,praticava-se o mergulho em lançamento da margem,em corrida,ou saltando do ramo de uma árvore,com maior emoção.Víamos os peixes mas nem sequer fazíamos tenções de os perseguir.No entanto,na aldeia havia pescadores de rede que armavam nassas de malha estreita nas saídas dos desvios,ou nos fundões.Havia outra maneira de apanhar peixe:desviava-se o curso do rio ou contornavam-se os bordos de um pego com um muro de barro.Depois secava-se o pego com baldes e gamelas.Barbos,ruivacos e enguias apanhavam-se com cestos de vime.No fim,punha-se tudo como antes.O rio continuava a correr,o pego enchia-se,o peixe que ficava recuperava o seu ambiente.Os alfaiates,as libélulas e os bezouros voltavam aos bailados e sinfonias reflectidos no espelho da água.À tarde quando voltavam dos campos os homens metiam os carros no rio,e os bois que os puxavam dessedentavam-se sorvendo com ruído,levantando de vez em quando a cabeça,deixando escorrer a água pelos cantos da boca.Abriam ritmadamente as narinas à medida que bebiam.Sacudiam os moscardos que os picavam,com as caudas franjadas,espalhando em redor borrifos de água.Além da rega de pé que o rio proporcionava,também os homens tiravam a água do rio com cabaços de lata e cabos de madeira compridos para dornas colocadas sobre os estrados dos carros de bois.Com ela regavam as hortas,bacelos e árvores novas em pontos altos e distantes. Faziam caldas de sulfato e levavam a água para as adegas e lagares para ser utilizada nos trabalhos em que fazia falta.Nós os garotos seguíamos atrás dos carros e,no tempo quente já se vê,aproveitávamos para refrescar o corpo com a água que ia transvasando a cada tranco que os carros davam nas covas dos caminhos e das ruas.Com a água do Alcabideque apagavam-se incêndios,com a participação dos homens, mulheres e crianças da aldeia,naquilo que hoje se chamaria um trabalho colectivo.Um dia o fogo fugindo do forno da broa da casa da Senhora minha Avó pegou em carqueja e lenha armazenadas na mesma dependência e quando se deu por ele já o fumo e as labaredas que fazia,apareciam por cima do telhado de telha vã.Logo na capelinha do Santo o sino tocou a rebate e em pouco tempo um vaivém humano cobria a distância entre o rio e o local do sinistro.Baldes e cântaros passavam de mão em mão,cheios para cima,vazios para baixo.Aquilo era como os holandeses a colmatar a brecha num dique.Solidariedade humana.Convém esclarecer que o Santo era S.Sebastião com o seu tronco nu crivado de flechas,e a capelinha onde era venerado,e que guardava as sua imagem quase em tamanho natural,ficava mesmo junto ao rio,dando a frente para um largo sobranceiro à zona mais espraiada do curso de água.O largo e o lago que o rio formava,e que era onde os homens iam carregar a água e dar de beber aos bois, impunham um espaço genéricamente conhecido por «O Santo».Como se fosse um Terreiro do Paço pequenino,o «Santo» constituia um ponto de referência,um local de encontro,muito embora não fosse o Rossio da aldeia.O Rossio da aldeia era simplesmente «O Largo» e estava localizado a uns cinquenta metros contados para o sul na parpendicular do rio.Pode ser que a memória me falhe,mas julgo que o Alcabideque nascia ,como ainda nasce,metade junto à povoação do mesmo nome,e a outra metade mais acima.Uma vez corria em dois ramos,outras talvez em três,para se juntar de vez em quando.Tinha sido trabalhado pela técnica agrícola que foi surgindo no decorrer dos tempos,e apurada pelos frades das ordens que se espalharam um pouco por toda a parte.Não espanta que os romanos tenham por lá deixado os seus conhecimentos no domínio da hidráulica.O rio perdeu já a sua importância aparente.A água para abastecimento das populações está canalizada,e a energia que ela proporcionava,livre,não mais faz andar as mós dos moinhos,nem as galgas e as prensas dos lagares de azeite.
O Amazonas tem mais de um milhar de afluentes.Ao Alcabideque só conheci um,e pequeníssimo.Um regato com meio metro de largo que conduzia até ele a água de uma nascente localizada a muito curta distância,num sítio chamado o Sardão.No Saramagal o regato encontrava o rio,e nessa confluência caí eu de uma figueira abaixo com o que arranjei uma cicatriz num joelho que ainda perdura.O rio também alargava o suficiente para que as andorinhas tivessem o espaço necessário para panhar mosquitos sobre a água em voos acrobáticos.Tenho ideia que hoje já não se vêem por lá as andorinhas,nem os morcegos que nós tentávamos por vezes derrubar com canas de pontas ensebadas,declamando a lenga-lenga:«Morcego,morcego,vem à ponta desta cana que tem sebo».A mudança na cor da água do rio processava-se não só ao longo do ano como também ao longo do dia.Assim,conforme as chuvas ou o sol,ele ia do castanho barrento no topo do Inverno ao branco prateado no topo do Verão.De dia,da Primavera ao Outono,passava por vários tons de azul,reflectindo o azul do céu,ou espelhava o cinzento das núvens ou o verde mutante das folhas das árvores que o vento agitava..Na casa ao lado da da minha família vivia um Senhor muito delicado e simpático,mas de comportamento assaz bizarro.Baixo e magro,nunca o vi que não estivesse vestido de branco da cabeça aos pés,como acontecia com os chamados «brasileiros» que voltavam à pátria.Também usava chapéu de palha de abas largas.No entanto,este vizinho um tanto ou quanto fantasmagórico,nunca teria atravessado o oceano.Aquela inclinação para o branco no trajar,era mais uma faceta da sua bizarria e não a reacção característica de um qualquer emigrante regressando das terras do Amazonas às terras do Alcabideque.Embora em casas separadas,vivia paredes meias com uma Senhora,julgo que irmã,tipo dama antiga,com uma gargantilha de veludo e um permanente vestido de cerimónia.Talvez por causa desta suave presença feminina,o vizinho de branco escusou-se a autorizar o tráfego pelo troço do rio que atravessava as suas propriedades.Ao pedido limitou-se a responder:«Atrás de uma embarcação vem outra embarcação...Homens nus a pescar!».No entanto,eu e a minha tripulação conseguimos por mais que uma vez fazer aquele percurso proíbido com as cautelas de que se rodeavam os grandes exploradores que na América do Norte desbravavam os rios em território de peles-vermelhas.
Quando os salgueiros que bordeavam o rio cresciam,as nossas viagens fluviais tornavam-se mais difíceis.Os vimes quase atravessavam de uma margem à outra,e a navegação era tão complicada como nos rios da selva amazónica,guardadas as devidas proporções.Os salgueiros pareciam-me árvores do outro mundo,estranhas,com troncos atarracados,raízes que se assemelhavam a cabelos de espantalho,e uma multitude de vimes folharentas,flexíveis e fortes.Na devida altura que recordo dever ser por fins de Agosto,aparecia um homem vindo da serra que durante duas ou três semanas fazia poceiros em série.Aquela fabricação feita com uma mestria que me impressionava,dava origem a que minha atenção ficasse presa horas sem fim nos movimentos das mãos e dos dedos do homem da serra que trabalhava de joelhos,manhãs e tardes inteiras,curvado na sujeição dos vimes de salgueiro à sua forma de os domar.Era com estes poceiros que se carregava o milho,a uva,a azeitona,e com eles também se apanhava peixe ao calcão.Muito antes de o fazedor de poceiros aparecer na aldeia já muitos salgueiros estavam despidos de vimes,e estes aos molhos,postos a remolhar à mistura com os sacos de tremoço.O tremoço era,como ainda hoje é,o grande aperitivo para uns copos de tinto ou de branco.A medida para o copo era o marquês,como hoje para a cerveja há o fino,e para a manzanilha,em Espanha,há o chato.
A minha atracção pela água incluia-se naquilo que eu pensava ser a lei da atracção universal.Sim,porque eu era atraído não só pelo rio como também por tudo quanto fazia parte da Criação Divina,do Universo.Por isso,naqueles anos em cada Primavera eu conseguia criar uma quantidade de pássaros,quase todos eles apanhados nas árvores que tinham crescido perto das margens do rio.Era para esse efeito que os garotos iam aos ninhos,para criar afinal,e não para destruir.Até porque aos pássaros,quando crescidos,era dada a liberdade.Eram rolas e pintassilgos os que melhor aprendi a alimentar,como também aprendi com eles o apego aos filhos que os pais mostravam:vendo nas gaiolas os pássaros pequenos roubados dos ninhos os pais vinham dar-lhes de comer por entre as grades.Os trabalhos da criação desviavam-me a atenção do rio e das suas águas,mas a partir de Agosto voltava-me abertamente para os fenómenos fluviais.Era então em plena altura da rega do milho,e do feijão.A água ia penetrando nas fendas do solo de onde se escapava o ar em bolhas de efervescência aparente.E eu seguia a água que a pouco e pouco ia vencendo a secura e sobrava,corria,passava por cima da parte já molhada e por fim,cansada de rolar por si própria,encontrava de novo o rio.
Atadôa chamava-se a aldeia que com o rio perfazia o centro da existência.Na altura podiam-me dar três capitais em troca por essa aldeia que eu não trocava.E talvez não troque ainda.Ou talvez muito menos troque agora.
Geográficamente a Atadôa ficava a nascente de Condeixa-a-Nova,no ângulo menor do triângulo rectângulo cujos extremos do mais pequeno lado a aldeia ocupava com Condeixa-a-Velha.Pelo menos esta era a ideia que eu tinha,porque a primeira Condeixa era a sede do Concelho e a segunda a sede da Freguesia,e o sol chegava a estas duas ao mesmo tempo,mas um bocado depois de ter passado pela Atadôa.
Em Condeixa-a-Nova compravam-se as costelas para armar aos pássaros,armadilhas para prender os ratos,e anzóis empatados em sedela e iscados com minhoca apanhavam peixe.Na maior parte dos casos ruivacos.Os mais artistas também apanhavam barbos.
A um quilómetro de Condeixa-a-Nova,terra que o Alcabideque atravessava,quase toda,sempre por debaixo do chão,e mais ou menos para Sueste,ficava Condeixa-a-Velha que por sua vez,tal como a primeira,ficaria a dois quilómetros de Atadôa.Em Condeixa-a-Velha passava o grande rival do Alcabideque,o famoso e terrível rio-dos-Mouros.Era famoso porque corria muito perto de uma antiga muralha romana,referenciada como pertencendo a Conímbriga,e era terrível por ter umas margens em falésia muito alta que faziam vertigens,e por no Inverno levar um correntâo de água espumante e furiosa.Em compensação,no Verão não levava água nenhuma,estava habitualmente seco e árido,com um leito de pedras enormes quese percebia terem sido talhadas pela terrível acção da torrente invernal e violenta(*).Naquela altura soube,e aliás eu vi,que investigadores especializados começaram a encontrar na margem norte do rio-dos-Mouros,pedrinhas coloridas e ossos romanos.Senti na verdade que alguma coisa estava então a sair do silêncio dos séculos.No entanto,na água límpida do Alcabideque havia semanas e semanas que eu colocava, num fundão,uma nassa em forma de tronco de cone cuja parte mais larga,a boca,era armada por um aro de madeira,e o fundo era esticado por dois paus iguais que partiam em «V»dos bordos do aro.Como o conjunto era mais leve do que a água,em conformidade com o que vim a saber mais tarde ser a lei de Arquimedes,coloquei-lhe duas pedras a fazer lastro.Punha a nassa no lugar ao fim do dia,e ao amanhecer,mal saltava da cama,ia pé ante pé levantar a nassa.Dias e dias seguidos,mas nada saía do silêncio das águas.Até que uma manhã aconteceu.O rio desvendou um segredo na figura de uma enorme enguia que nas convulsões para se libertar tinha já feito a nassa num oito e tinha enchido as malhas da rede de um pegajoso,viscoso e consistente garro esbranquiçado.O monstro não me assustou embora fizesse o possível por isso.Era quase da grossura do meu pulso,tinha a pele escura e a cabeça afunilada,e uma boca grande com a qual atirava botes terríveis nas paredes da sua prisão.Hoje pergunto-me se aquele ser não seria uma remanescência de algum espantalho vivo deixado ali pelos franceses na pressa da retirada,ou pelos liberais para assustar os frades.Pobre enguia.Tinha-me dado uma trabalheira,mas também uma vitória sobre o desconhecido das águas.Vitória que de resto não saboreei..Era o último dia de férias,e poucas horas depois deixava a Atadôa,as margens do Alcabideque.E com o decorrer do tempo acabei por abandonar também aquele armário dos meus sonhos,mundo inexplorado das minhas aventuras,mar da minha vontade de viver.Estou agora a mexer nele.
Junho de 1983
Nota:Só há dias soube que era Alcabideque o nome do rio da Atadôa.Naquele tempo,para toda a gente ele era,simplesmente,o rio.Mas um documento oficial que há pouco encontrei,datado de 1899,diz que é concedida licença para«construir um açude no rio denominado Alcabideque,junto ao lugar de Atadôa,freguesia e concelho de Condeixa,a fim de obter queda de água para mover um motor hidráulico para a indústriade moagem...».O requerente era o Dr.Pedro Teixeira,meu avô.
(*) A este rio os romanos davam um nome feio que não me permito reproduzir agora.

O Autor chama ao rio de Atadôa,«Alcabideque».A Câmara Municipal de Condeixa,na construção do Parque Verde,empedrou o curso de água,desde o lugar vulgarmente conhecido como “Marachão”,a jusante de Atadôa, e deu novo nome ao rio.Chamou-lhe Ribeira de Bruscos,título que nem os mais antigos recordam.As águas vindas da nascente de Alcabideque,são engrossadas no percurso por ressurgências,sendo a mais importante a do Ramo.No entanto,talvez não esteja de todo errada a designação.Uma ribeira com origem em Bruscos,corre paralelamente à estrada de Condeixa-Miranda,atravessa a via e dirige-se para Alcabideque,sendo ainda visível uma pequena ponte romana.Já perto da aldeia,no local da antiga captação de água para abastecimento do concelho,as margens dessa ribeira têm alguma profundidade,denotando um caudal razoável,mas só no inverno.Simultâneamente,os terrenos próximos são designados como «terras da Ribeira».
De qualquer forma,para quem se aventurou no mesmo mundo de Manuel do Amaral,o rio será sempre «Alcabideque»!

Condeixa,Setembro de 2012

Cândido Pereira