quinta-feira, 31 de março de 2011

SABEM COMO SE FAZ A CERVEJA?

Não sendo técnico de fabricação, no entanto a minha condição de trabalhador numa unidade de produção e enchimento de cerveja deu-me o interesse de conhecer os processos por que passa o grão chamado malte, a razão porque à cevada é aplicado este termo e as operações que se realizam, desde a obtenção do malte até ao produto final, um bom copo de refrescante e agradável cerveja na mesa dos sedentos consumidores. Em Coimbra existia uma fábrica que produzia uma das mais apreciadas cervejas mundiais, graças às características da água. As marcas, Topázio para a cerveja branca e Onix para a cerveja preta, eram sinónimos de grande qualidade.



A CERVEJA





A cerveja é uma bebida proveniente de um líquido açucarado, o mosto, a que se adiciona o lúpulo e fermentada por um cogumelo microscópico, a levedura. O mosto resulta da maceração na água, a temperaturas convenientemente escolhidas, da farinha do malte.

O grão da cevada não contem praticamente açúcar, mas um amêndoa farinosa e rica em amido, que constitui a reserva do embrião, a futura planta. É submetido então a um tratamento prévio, a maltagem, que torna possível a transformação futura deste amido, insolúvel na água e não fermentável, numa substância açucarada, solúvel e fermentável: o açúcar de malte ou maltose.

A indústria da cerveja utiliza como matérias-primas o malte de cevada, a água, o lúpulo, a levedura e, nalguns casos, a farinha de arroz ou de milho. A farinha do malte é extraída a certas temperaturas, transformando-se o amido em açúcar. Após esta extracção, o líquido açucarado resultante tem de separar-se por filtração das cascas dos grãos e de outras substâncias insolúveis, obtendo-se através disso a “massa do fabrico”, excelente alimento para o gado. Ao líquido, junta-se o lúpulo, que lhe dará o amargo e aroma e ferve-se durante duas horas. Depois, este mosto é arrefecido até à temperatura de entrada na fermentação. A adição da levedura ao mosto arrefecido provoca uma fermentação inicialmente tumultuosa que se vai atenuando pouco a pouco. Esta fermentação dura cerca de dez dias e, após isto, a cerveja passa para a “cave de guarda”, mantida à temperatura de zero graus centígrados. Na cave, a cerveja afina o seu gosto, clarifica e satura-se de gás carbónico, durante cerca de dois meses. Passado esse período, é filtrada e engarrafada ou colocada em barris.

Para fazer uma pequena ideia da delicadeza e complexidade do fabrico da cerveja, faz-se uma análise do ciclo de operações, começando pela malteria.

A cevada é a matéria-prima fundamental no fabrico do malte. Para a produção de malte, utiliza-se a cevada dística. Operações necessárias para obtenção do malte:

1º- Limpeza e calibragem da cevada. Armazenagem em silos para a preservar da humidade e de parasitas, especialmente o gorgulho.

2º-Molha e lavagem. Esta operação permite fornecer ao grão a humidade necessária para assegurar a boa germinação. A cevada é mergulhada em água até absorver cerca de 47 a 50% de humidade. A duração da molha varia entre as 48 e 72 horas, conforme a temperatura da água, que não convém que ultrapasse os 14 graus. Durante a molha, a água é renovada a fim de que o grão absorva algum oxigénio. Caso contrário, asfixia e não é capaz de germinar.

3º- Germinação da cevada. A germinação é o desenvolvimento do embrião que vai dar origem à futura planta. Este desenvolvimento obtêm-se pelas matérias de reserva, que são o amido e as proteínas. Para melhor explicar o mecanismo da germinação, dou um exemplo que acho elucidativo: -Quando nós ingerimos um alimento sólido, ele começa a dissolver-se na boca devido a substâncias contidas na saliva e que se chamam “diastases”, isto é, os alimentos desdobram-se para poderem ser absorvidos pelo nosso organismo. Ora com o embrião acontece o mesmo, para se poder “alimentar”, começa a segregar as “diastases” que vão desdobrando o amido e as proteínas (matérias azotadas). Isto origina no grão certas transformações (desagregação, formação de açucares, solubilidade de proteínas) absolutamente necessárias ao futuro trabalho de fabricação da cerveja. Esta germinação dura cerca de 8 dias com temperatura à volta dos 18 graus centígrados. Durante esta operação, o grão tem de ser arejado para que o embrião respire e não asfixie, em tambores rotativos, de ferro.

Torragem da cevada germinada -A torragem consiste em secar o malte verde (cevada germinada húmida) de modo a que o embrião, privado de água, não continue a crescer. Deste modo a composição do grão estabiliza-se, não sofrendo alterações no decorrer da sua conservação em silos.

Esta secagem produz no malte um aroma e cor característicos e efectua-se em torres especiais de um ou mais pratos aquecidos por vapor que atravessa as camadas de malte neles depositados. O tipo de malte varia com a temperatura de torragem. Nas cervejas brancas, a subida de temperatura é mais rápida e o malte nelas utilizado mantêm-se durante 5 horas a 80 graus centígrados. Nas cervejas pretas junta-se uma certa quantidade de malte torrado a 200-210 graus centígrados.

Para a fabricação da cerveja, são necessárias as seguintes matérias-primas:

-Água

-Malte

-Lúpulo

-Levedura

-Trinca de arroz ou de milho

A água- é fundamental para a qualidade da cerveja. Nem todas as águas são adequadas para o fabrico de cerveja.

O malte- é, como disse, o produto da cevada germinada e seca. Um bom malte é para a cerveja como uma boa uva é para o vinho. O malte é muito rico em amido, fosfatos e proteínas e o seu extracto consiste em excelente alimento.

O lúpulo- é uma planta trepadeira. As plantas masculinas e femininas desenvolvem-se em pés diferentes. Na indústria da cerveja, só se utilizam os cones das plantas fêmeas. Estes cones são formados por brácteas dispostas em torno de um eixo central. Cada bráctea contém na sua base uma resina brilhante, de cor amarela/ouro chamada lupulina e que transmite o amargo e aroma à cerveja. A cultura do lúpulo exige cuidados especiais e as plantas masculinas têm de ser arrancadas junto à superfície de cultura. O lúpulo é conservado comprimido em fardos, à temperatura de 0 graus centígrados para não perder o aroma e outras qualidades fundamentais.

A levedura- é um cogumelo unicelular cujo diâmetro é de cerca de 1 centésimo de milímetro. Os mais importantes constituintes da levedura são as proteínas, hidratos de carbono, sais minerais, etc. Além destes, há outras substâncias que desempenham um papel fundamental na fermentação: são as vitaminas e sobretudo as “diastases”, entre as quais a “zimase”, responsável pela fermentação alcoólica.

A trinca de arroz ou de milho- emprega-se para diminuir a quantidade de proteínas do mosto, aumentando deste modo a estabilidade da cerveja e sua conservação.

Em termos industriais, chama-se brassagem ao conjunto de operações que tem por fim obter, a partir da farinha do malte, o mosto, que depois se vai submeter à fermentação alcoólica. A brassagem divide-se em várias fases:

Moagem do malte. -A moagem executa-se em moinhos especiais de 4 ou 6 cilindros, obtendo-se como produto as cascas, que não devem ser destruídas e a farinha deve ser o mais fina possível e junta-se-lhe água.

Esta mistura chama-se empastagem e é feita normalmente numa caldeira de cobre denominada “cuba-mãe”. Desta empastagem toma-se certa quantidade (a calda), que se leva a ferver na caldeira das caldas. Após uma fervura de 15/20 minutos, volta à cuba-mãe, onde a temperatura atinge os 75 graus centígrados. Estaciona-se a temperatura até que toda a pasta se transforme em açúcar. Chama-se a esta transformação “sacarificação”. É então adicionado o lúpulo e procede-se a uma ebulição de mais 2horas.A finalidade desta ebulição é esterilizar a composição do mosto pela destruição das diastases, dissolver as resinas amargas do lúpulo e coagular as matérias azotadas instáveis pela sua combinação com os taninos do lúpulo e do malte.

Fermentação.- Ao mosto filtrado e arrefecido, é adicionada a levedura, nas cubas de fermentação. A dose de levedura empregada é de ½ litro por cada 100 litros de mosto. No decorrer da fermentação, a levedura propaga-se originando novas células e a quantidade do fermento obtida no final é cerca de três vezes superior à utilizada no começo. A reacção principal da fermentação é o desdobramento do açúcar da maltose em álcool e gás carbónico. A fermentação dura cerca de 10 dias e a temperatura das cubas conserva-se à volta dos 8 graus centígrados. Após esse tempo, a cerveja é transportada para os depósitos de guarda, onde se mantém em decantação. A levedura e as partículas que turvam a cerveja, depositam-se no fundo dos tanques. A cerveja então afina o seu gosto e assimila o gás carbónico.

A filtração- é a última fase do processo de obtenção da cerveja e deve fazer-se num local arrefecido a 0 graus centígrados, mantendo-se a cerveja sempre a pressão para evitar a perda de gás carbónico.

Finalmente, a cerveja está pronta a ser engarrafada ou metida em barris, até chegar à mesa do consumidor, límpida e saborosa. Para trás ficaram muitas etapas, sempre acompanhadas por técnicos competentes e várias verificações laboratoriais.



(os dados técnicos foram obtidos através de literatura da autoria do Engenheiro Químico, António Alberto Martins da Fonseca, director de unidades de produção de cerveja).




Condeixa, Março de 2011  
Cândido Pereira





terça-feira, 29 de março de 2011

VIRA DE QUATRO-Ramiro de Oliveira

Para os condeixenses do meu tempo, o Vira de Quatro, com letra de Ramiro de Oliveira e música de António de Oliveira.Lamento, mas fica só a letra.E quem não se recorda da música,cantada pelas vozes afinadas de raparigas e rapazes e, simultâneamente, dançada em passos airosos mas firmes,as chinelas delas e as botas deles batendo firmemente ao compasso da música,nas tábuas do pavilhão ou na terra batida de qualquer eira ou terreiro?
Esqueçam por momentos a ancilose e saltem para a roda!

VIRA DE QUATRO

Vamos lá dançar o vira
Ai gira que gira
Em volta do par
Que esta canção portuguesa
Tem graça e beleza
Não pode acabar!

REFRÃO

Bailai mas com graça
Ó moças airosas
Não sejam vaidosas
Dai voltas com siso!
E vocês rapazes
Dançai com cuidado
Que um passo mal dado
Transtorna o juízo

Vai-se a chama das fogueiras
Mas ficam braseiras...
Mas ficam escolhos...
Também se a festa acabar
Eu quero ficar
Brasa dos teus olhos.

REFRÃO

Bailai mas com graça...


Gostaram? Cansados,não? Vamos então dançar outra modinha mais dolente.É também de Ramiro de Oliveira e chama-se:

TRISTEZAS

Quem tem tristezas não canta
Quem canta não anda triste!
Quando o cantar nos alenta
A tristeza não resiste

Só depois de uma canção
Cantada p'ra distrair
Se há penas no coração
A tristeza torna a vir.

REFRÃO

Tristezas não vão ao baile
Nem mesmo fantasiadas
Pois se vão de lenço e chaile
São logo desmascaradas

Quem é triste que não venha
Que fique em casa a chorar
Pois se na roda se apanha
Tem de rir, tem de cantar!

Que bom é cantar e dançar,a alegria bem presente nos rostos dos dançadores e de quem os admira.Que saudades das festas populares,à roda de uma fogueira!
Para manifestar a condição de condeixenses foliões, vamos acabar o baile com mais uma letra de Ramiro de Oliveira e música de seu irmão,Maestro Saul Vaio:

HINO A CONDEIXA

Entre a serra e a campina
Que o Mondego vem beijar
Há uma terra pequenina
Que em beleza não tem par

Não mora nela a tristeza
Mas...quem por ela passar
Fica triste e com certeza
Vive triste até voltar.

REFRÃO

Palácios velhinhos
Solares de saudade
Palreiros moínhos
Hospitalidade!

Recantos de sonho
Que a graça não deixa
Não tiro nem ponho
Tudo isto é Condeixa!

Nesta terra portuguesa
Que a natureza moldou
Há legados que a nobreza
Longos anos habitou
Vê-se o sol em cada dia
Pôr em festa o horizonte
Com recitais de poesia
Ao redor de cada fonte!

REFRÃO

Palácios velhinhos...


E digam lá se Condeixa não é linda!

terça-feira, 22 de março de 2011

HISTÓRIAS DA CAROCHINHA

Quando era criança, a minha Mãe e irmãs mais velhas contavam-me histórias para adormecer. Eram retalhos, muitas vezes repetidos, de velhos contos tradicionais, onde o fantástico se misturava com crenças religiosas, elas também raiando o improvável. Mais tarde o cinema, vulgarizando figuras como a “Branca de Neve”, “Cinderela” e “Bela Adormecida”, com as super-produções da Disney, alimentou (continua a alimentar) o imaginário das crianças. É esse o sortilégio das narrativas infantis! Ao escrever esta miscelânea de personagens num único cenário, quero explicar que não se trata de confusão no meu espírito, mas uma forma diferente de ligação de temas com o mesmo fio condutor. Isto afinal serão sempre “Histórias da Carochinha”.

COMEÇA A FUNÇÃO



(sentado num dos lados do palco, junto à ribalta, está o prólogo)



PRÓLOGO- Eu vou contar uma história muito antiga que me contava a minha avozinha. Dizia ela que quando era pequenina, a avó dela já a contava também. Vejam lá vocês a velhice desta história! Mas deixemo-nos de conversa fiada e vamos lá ao que interessa. Era uma vez uma Carochinha que estava a varrer a sua casinha…

(surge do fundo do palco a Carochinha com uma vassoura na mão)

CAROCHINHA- É agora a minha deixa? Eu cá não sei porque diabo nesta história tenho de andar sempre a varrer a casa, quando podia fazer o mesmo trabalho com um aspirador. Era mais higiénico e mais rápido! E não me venhas dizer que é para achar uma moeda de dez tostões, porque essa já não pega. Ridículo! O que é que alguém pode fazer com dez tostões? Para eu poder gritar: Estou rica! necessitava de achar um cheque aí de cem milhões. Ou mais! E quem é que ia perder uma coisa dessas, não me dizes? De resto, admitindo que achava qualquer coisa, a minha obrigação era procurar o dono e entregar-lha.

PRÓLOGO- Pronto! Lá tinhas que vir tu com as lições de moral! Não vês que isto é uma história de faz de conta e nas histórias de faz de conta, tudo pode acontecer? Mas tens razão numa coisa, dez tostões é de facto uma quantia ridícula. Faz de conta que achaste um talão do euro-milhões. Chega?

CAROCHINHA- Para as primeiras impressões, tem de chegar. (recomeça a varrer e de repente abaixa-se e apanha um papel) -O que é isto? Olha, é o talão do euro-milhões que fiz a semana passada e nunca mais me lembrei de onde o tinha posto. Vamos lá confirmar se tem alguma coisa (simula verificação). Olha, ganhei! Estou rica! Estou rica! Agora já posso fazer o que sempre desejei. Vou comprar vestidos novos, muitos sapatos e vou ao cabeleireiro tratar deste cabelo, que está horrível. Depois, compro um “todo o terreno” e vou por aí abanar o capacete!

PRÓLOGO- Nada disso! Tu vais é casar porque estás em muito boa idade e, no fim de contas, é esse o destino da “história da Carochinha”!

CAROCHINHA- Estás parvo, ou quê? Então agora que tenho uma pipa de massa, é que vou amarrar-me? Eu vou é curtir!

PRÓLOGO- Curtes depois. Agora tens de ir para a janela e fazer como está escrito, anunciar que pretendes casar.

CAROCHINHA- Pronto, contrariada mas vou… (à janela) – “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha?”

PRÓLOGO- Ouve lá, porque tens de estar sempre a alterar a história? O que deves dizer é: “Quem quer casar com a Carochinha, que é muito linda e engraçadinha?”

CAROCHINHA- Queres que eu seja mentirosa, é? Que beleza tem uma carocha? Ainda se fosse a minha prima Joaninha! Essa sim, é que é bonita, com aquela capa toda (para o público) os meninos sabem como é a capa da Joaninha? (escuta as respostas e, se for necessário, lembra como é a capa da Joaninha) -Isso mesmo! Aquela capa vermelhinha, com pintinhas pretas! Isso é que é ser bonitinha!

PRÓLOGO- Está bem, deixa lá. Atende mas é esse candidato a noivo que aí vem.

PRINCIPE COM ORELHAS DE BURRO- Boa tarde. A menina é que estava a pedir um noivo?

CAROCHINHA- Por acaso era. Porquê? O senhor é candidato ao lugar?

PRINCIPE COM ORELHAS DE BURRO- Bem, eu vou dizer-lhe uma coisa. Não pertenço a esta história. Andava por aí a passear, cismando na minha vida, quando ouvi o pregão. E então pensei com os meus botões: “Já estás em boa idade para casar. Até pode ser que o teu pai faça as pazes contigo e te deixe voltar para o reino…”

CAROCHINHA- Espere aí! O que é que está a dizer? Afinal, quem é você?

PRINCIPE COM ORELHAS DE BURRO- Eu sou o “Príncipe com orelhas de burro”. Nasci assim com estas orelhas (retira o chapéu que tem estado a encobrir as orelhas) e nem o meu pai nem os seus súbditos me quiseram. Diziam que eu era muito feio e que as minhas orelhas só iam trazer descrédito para o reino…

CAROCHINHA- Pois! E agora vinha aí todo lampeiro, convencido que lá por ser príncipe, a pobre Carochinha ia aceitá-lo de braços abertos e casar. Ora, tenha juízo, homem!

PRINCIPE COM ORELHAS DE BURRO- A menina faz muito mal. Olhe que eu tenho estas orelhas de burro, mas sou muito inteligente e tenho um coração caloroso!

CAROCHINHA- Claro, claro! Abane o coração com as orelhas, para ele arrefecer! Vá-se embora homem, vá-se embora! Ora não querem lá ver? (príncipe sai)

PRÓLOGO- Tenho a impressão que meteste a pata na poça. Era um partido que te convinha. Príncipe, filho de rei, qualquer dia o pai morre e fica ele a reinar…

CAROCHINHA- A reinar estava ele comigo! Qual rei nem qual carapuça! Aquilo era tudo paleio. O que ele queria sei eu. Se calhar, é como o outro, príncipe herdeiro de um país republicano! Casava à minha custa, vendia a cassete com o vídeo do casamento, enchia-me de filhos e eu é que ficava a arder…

PRÓLOGO- És capaz de ter razão! Bem, vai lá para a janela outra vez.

CAROCHINHA- (à janela) – “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha!” (surge o Lobo Mau)

LOBO- Quero eu, quero eu!

CAROCHINHA- Ai sim? E quem és tu?

LOBO MAU- Eu sou o “Lobo Mau”. Calcula que estava muito descansado na floresta, quando apareceu uma miúda com um ridículo barrete vermelho e começou a chatear-me, que ia para casa da avozinha mas tinha-se perdido, bla, bla, bla, bla. Nunca mais parava de falar. Para me livrar dela, acompanhei-a a casa da avó…

CAROCHINHA- E comeste-a, não foi?

LOBO MAU- Qual quê! Isso são calúnias! Eu acompanhei-a com a melhor das intenções. O pior é que o raio da velha também estava farta de a aturar e vingou-se em mim por lhe ter ensinado o caminho. Deu-me tantas cacetadas que trago o meu rico corpinho todo dorido.

CAROCHINHA- Quer dizer então que essa história do “Lobo Mau e da Capuchinho Vermelho”, é tudo balelas? Tu não comes …

LOBO MAU- Ouve lá, já chegámos à madeira ou quê? Afinal, queres ou não casar comigo?

CAROCHINHA- Não sei, estou cá com umas dúvidas. Por um lado, se levaste uma tareia da velha, é porque não és tão mau como te pintam. Mas se não comeste…afinal, para que queres casar? Ná, não me serves. Vai-te embora, vai-te embora! (Lobo sai)

PRÓLOGO- E vão dois. Por este andar ainda ficas para tia!

CAROCHINHA- Não te importes, que eu também não! Se calhar querias que eu casasse com o primeiro idiota que aparecesse!

PRÓLOGO- Nem tanto assim. Mas nunca ouviste dizer que quem muito escolhe, pouco acerta?

CAROCHINHA- Pois, pois… bem, cá vou outra vez para a janela. “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha?”

BOI- (entrando) - Quero eu, quero eu!

CAROCHINHA- E quem és tu?

BOI- Eu sou o “Boi Trabalhador”…quer dizer, era! Já não sou tão trabalhador como isso, desde que inventaram essa coisa dos tractores para nos tramar os empregos. Antigamente sim, íamos para o campo mal rompia o sol e só voltávamos quando ele se escondia no horizonte. Levávamos o dia todo a lavrar e nunca nos queixávamos. Quando ainda era bezerrinho ia para o campo com os outros e as nossas mães. Isso é que era brincar! Depois, quando me fiz adulto, casei. Mas a minha mulher era uma grande vaca que olhava para todos os bois. Um dia, desapareceu…

CAROCHINHA- Abandonou-te! Pôs-te os…

BOI- Não! Estes já os tenho desde pequenino. A princípio pensei que ela me tinha trocado por outro boi mais lindo. Depois, vim a saber que a tinham levado para o matadouro…foi um grande desgosto! Nunca mais me recompus. Mais tarde o meu dono comprou um tractor e eu deixei de lavrar os campos. Ficava todo o dia fechado. Chateei-me, rebentei a porta e fugi. Ia a passar quando ouvi o teu pregão. Olha, se quiseres podemos fazer companhia um ao outro. Já não sou novo, mas ainda tenho muita força. Podes crer que nunca te vou deixar mexer uma palha…

CAROCHINHA- Isso acredito eu! Não me deixas mexer uma palha, porque a comes toda. Tem juízo! Vai-te embora, vai-te embora! (o Boi sai)

PRÓLOGO- Três!

CAROCHINHA- O quê?

PRÓLOGO- Dizia que é o terceiro candidato recusado.

CAROCHINHA- E se vierem mais iguais, vão pelo mesmo caminho. (vai para a janela) – “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha?”

CINDERELA- (entrando) -Quem é a badalhoca que está aqui a oferecer-se à janela?

CAROCHINHA- Olha lá, que modos são esses? E a que propósito entras por aqui dentro a insultar as pessoas honradas que não se meteram contigo?

CINDERELA- Honradas? Deixa-me rir! Que honradez pode haver numa pessoa que está à janela a oferecer-se para casar?

CAROCHINHA- Para já, eu não sou uma pessoa. Sou um bicho. Nunca ouviste a “história da Carochinha?”

CINDERELA- Não! Isso para mim não passa de “histórias da Carochinha”!

CAROCHINHA- É isso mesmo que estou a dizer! Mas a final, quem és tu?

CINDERELA- Eu sou a Cinderela e pertenço à “História da Gata Borralheira”. Ontem fui ao baile do príncipe…

CAROCHINHA- Com Orelhas de Burro?

CINDERELA- Não. Acho que ele não tinha orelhas de burro. Porquê?

CAROCHINHA- É que esteve aqui um parvalhão a dizer que era o “Príncipe com Orelhas de Burro” e até queria casar comigo.

CINDERELA- Não deve ser o mesmo. Mas como ia a dizer, fui ao baile com um lindo vestido que a minha madrinha me ofereceu. E também me deu um carro puxado a cavalos. Só que me fez prometer que antes da meia-noite eu tinha de sair do baile. Só que, sabes como é, a gente distrai-se e às tantas, começaram a dar as badaladas da meia-noite. Corri para fora e quando cheguei ao carro ele estava transformado em abóbora e os cavalos eram ratinhos. O pior é que na confusão perdi um dos lindos sapatinhos de cristal que a minha madrinha me deu!

CAROCHINHA- Espera lá! Como disseste que te chamas?

CINDERELA- Cinderela. Às vezes, porque a maior parte do tempo chamam-me “Gata Borralheira”!

CAROCHINHA- É isso! Eu conheço a história! Não te preocupes, porque o príncipe manda a tua casa um pajem com o sapato que perdeste, para ver se te serve…

CINDERELA- E depois, e depois?

CAROCHINHA- Depois, o príncipe casa contigo, são muito felizes e vão ter muitos filhos!

CINDERELA- Obrigado por me dares essas notícias. E desculpa lá ter-te chamado badalhoca…

CAROCHINHA- Não faz mal, já estou habituada. Quando me vêem a primeira vez, tratam-me assim, mas depois de falarem um bocado comigo, chegam à conclusão que não sou tão má como pareço. Sabes, nunca devemos julgar as pessoas só pela aparência! Lá por eu estar à janela a pedir um noivo, não penses que vou casar com o primeiro palerma que apareça. Até o Príncipe com Orelhas de Burro já mandei passear!

CINDERELA- E fizeste muito bem. Olha se ele se punha a zurrrar e a dar coices na noite de casamento? Bem, vou-me embora porque o meu príncipe pode mandar lá a casa o pajem e se eu não estiver…nem quero pensar! Adeus! (sai)

PRÓLOGO- Ora aí está uma história que acaba bem. Parece-me que da tua, não se pode dizer o mesmo.

CAROCHINHA- Dá tempo ao tempo. Nestas histórias acaba sempre tudo bem!

(a Bela Adormecida entra com ar indolente, como quem está cheia de sono)

BELA- Dão-me licença? Desculpem o incómodo, mas podem informar-me onde é o hotel. Preciso urgentemente de dormir.

CAROCHINHA- Porquê? Estás muito cansada?

BELA- Não sei o que é isto! Fiz ontem dezoito anos e o meu pai nem sequer quis dar uma festa. Lá no castelo andavam todos muito tristes, a chorar pelos cantos. Não sei porquê! Hoje de manhã, sentia-me tão alegre que me deu para ir ajudar a fiandeira no tear. Mas distrai-me e piquei-me no fuso. Depois, começou a dar-me este sono…

PRÓLOGO- Como é que disseste que te chamas?

BELA- Não disse. Ainda não tive oportunidade. Chamo-me Bela, Princesa Bela. Porquê? Conhecem-me? Mas afinal, dizem-me ou não onde é o hotel?

CAROCHINHA- Aqui não há hotéis. Nem sequer pensões. Mas se queres passar pelas brasas, deita-te aí nesse sofá.

BELA- Nem sabes quanto te agradeço. Ah! Estou mesmo…cheia de…sooono… (adormece)

PRÓLOGO- Agora é que a fizeste bonita!

CAROCHINHA- Porquê?

PRÓLOGO- Não sabes quem é Princesa Bela? É a “Bela Adormecida”, da história. Quando ela nasceu, duas bruxas, zangadas por não terem sido convidadas para a boda de baptismo, queriam que ela morresse. Mas a “Fada Madrinha” da miúda conseguiu transformar o feitiço. Assim, quando fizesse dezoito anos, picava-se num fuso e ficava a dormir…

CAROCHINHA- Não faz mal! Quando acordar, ensino-lhe o caminho para casa e pronto!

PRÓLOGO- Isso querias tu! O feitiço é tão forte que ela vai ficar a dormir durante cem anos, até aparecer um “Príncipe Encantado” que lhe dá um beijo, ela acorda e depois casam-se!

CAROCHINHA- Cem anos? Não pode ser! (vai junto da princesa) -Vá lá minha, acorda. Olha que não podes ficar aqui a dormir toda a vida! Vá, deixa-te de fitas e acorda! (abana-a).

PRÓLOGO- É o acordas! Agora que fizeste o mal, aguenta as consequências!

CAROCHINHA- Ora a minha vida! Já não se pode ser boa para ninguém! E agora, o que é que eu faço?

PRÓLOGO- Nada! Faz de conta que ela nem aí está. Vai para a janela. Pode ser que apareça algum parvo que queira casar contigo e compre outra casa para morarem!

CAROCHINHA- (à janela) - “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha!”

PINÓQUIO- (aparecendo) - Quero eu, quero eu!

CAROCHINHA- Olha um rapaz de madeira! Que giro!

PINÓQUIO- De madeira, mas da melhor! Isto que aqui vês é tudo pau-santo !

CAROCHINHA- Acredito! Mas porque és feito de madeira e não de carne e osso?

PINÓQUIO- O meu pai Gepeto, queria muito ter um filho, mas como não conseguia, um dia lembrou-se de mandar vir do estrangeiro a melhor madeira existente e construiu-me. Depois, de noite veio uma Fada que me deu movimento. O meu pai Gepeto ficou tão contente, tão contente, que até ia desmaiando de alegria, quando de manhã me viu a preparar-lhe o pequeno-almoço. A Fada então disse-lhe que por enquanto sou assim de madeira, mas se for bem comportado, posso um dia vir a ser de carne e osso.

PRÓLOGO- Eu conheço a história. Ouve lá, a Fada não disse mais nada?

PINÓQUIO- (com ar comprometido) - Não…que me lembre…não disse mais nada…

PRÓLOGO- Disse, disse! E tu sabes muito bem o que foi. Até já estou a ver qualquer coisa estranha no teu nariz! (Pinóquio coloca disfarçadamente um acréscimo no nariz).

PINÓQUIO- (já com o nariz maior) - Bem, na verdade disse que o meu nariz cresceria sempre que dissesse uma mentira!

CAROCHINHA- Que horror! Mas tu ficas muito feio com esse nariz tão grande!

PRÓLOGO- Não há problema! Se ele confessar e se mostrar arrependido, o nariz volta ao normal.

PINÓQUIO- É verdade! E eu estou arrependido por ter mentido! (retira disfarçadamente o acrescento)

CAROCHINHA- Ah! Assim está muito melhor. Então, conta lá o resto da história.

PINÓQUIO- Pouco mais há a contar. Eu tenho sido um miúdo normal. Apesar de ser de madeira, pouco diferente sou dos outros garotos. Faço as minhas asneiras e por castigo, de vez em quando cresce-me o nariz, como viste!

CAROCHINHA- E porque disseste que querias casar comigo? Não passas de uma criança. Ainda não tens idade para casar.

PINÓQUIO- Ora, disse que queria casar porque assim podia ser que crescesse mais depressa e me tornasse de carne e osso!

CAROCHINHA- Mas isso não se resolve com tanta facilidade! Tu só deixas de ser de madeira, se te portares bem!

PINÓQUIO- Tu ensinas-me a portar-me bem! Queres casar comigo?

CAROCHINHA- Isso é que era bom! Não me faltava mais nada que ser ama de um garoto mentiroso! Cresce e aparece! Vai-te embora, vai-te embora! (Pinóquio sai)

PRÓLOGO- Pela primeira vez, dou-te razão! Este não servia para marido. Só tinha utilidade no inverno!

CAROCHINHA- No inverno? Porquê?

PRÓLOGO- Então, sendo de madeira, se te faltasse a lenha, punha-lo a ele na lareira! Volta para a janela e vê se arranjas noivo depressa, porque esta história está a ficar longa!

CAROCHINHA- (à janela) - “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha!”

PRINCIPE ENCANTADO- (entrando) -A menina desculpe. Eu de facto pretendo casar, mas o meu ideal não é propriamente uma Carocha.

CAROCHINHA- Então porque vem para aqui chatear? Com essa figura janota, se calhar quer alguma princesa?

PRINCIPE ENCANTADO- Por acaso adivinhou! É mesmo uma princesa que eu pretendo!

CAROCHINHA- Então olhe, se quer uma princesa, talvez lhe sirva aquela que está ali a dormir. Até me fazia um grande favor!

PRINCIPE ENCANTADO- Coitadinha! E porque está ela a dormir? Passou a noite nalguma discoteca?

CAROCHINHA- Não. Parece que se picou em qualquer coisa…

PRINCIPE ENCANTADO- Num fuso?

CAROCHINHA- Acho que sim!

PRINCIPE ENCANTADO- Mas então, é a “Bela Adormecida”! É a princesa da minha história! Eu sou o Príncipe Encantado, que a vai desencantar. Dou-lhe um beijo, ela acorda, e depois casamos e somos muito felizes!

PRÓLOGO- Mas isso só deve acontecer daqui a cem anos!

PRINCIPE ENCANTADO- Qual quê! Isso era dantes, quando as viagens se faziam a pé! Agora anda tudo “na brasa”.Eu, por exemplo, cheguei aqui numa viagem de jacto!

CAROCHINHA- Então vá depressa dar o beijo à cachopa e desamparem-me a loja porque preciso de arranjar noivo depressa!

PRINCIPE ENCANTADO- Porquê? Também vai casar?

CAROCHINHA- Olhe lá, você é parvo ou anda só a disfarçar? Então se não quisesse casar estava aqui feita pateta à janela a gritar?

PRINCIPE ENCANTADO- Pronto, pronto! Não se enerve. Cá vou eu beijar a minha princesinha! (beija) BELA ADORMECIDA- (acordando) - Oh! Meu príncipe! Finalmente! Já tinha cãibras de tanto dormir. A porcaria do sofá é rijo que nem uma pedra!

CAROCHINHA- Ainda por cima é mal-educada…

BELA ADORMECIDA- Desculpa, Carochinha. Agradeço muito teres-me deixado dormir. Vamos, meu príncipe. Adeus! (saem agarradinhos)

PRÓLOGO- Mais uma história bonita que chega ao fim. Porque será que a nossa nunca mais acaba?

CAROCHINHA- Tem calma! Já te disse que as cadelas apressadas parem os cachorros cegos. (vai à janela) - “Quem quer casar com a Carochinha, que é feínha, feínha, mas tem muita massinha!”

JOÃO RATÃO- (entrando) - Quero eu, quero eu!

CAROCHINHA- Olha que pretendente tão giro! Quem és tu?

JOÃO RATÃO- Sou o João Ratão e ando há que tempos à procura da “História da Carochinha e do João Ratão”. Vamos casar depressa, que já estou cheio de fome!

CAROCHONHA- Alto lá! Espera aí, que isto aqui não é “o da Joana”! Lá porque a história diz que casas com a Carochinha, não quer dizer que não possa mudar o que não me agrada.

PRÓLOGO- Tem cuidado Carochinha! Não te precipites!

CAROCHINHA- Qual precipites, qual carapuça! Só porque a história diz que devo casar com o João Ratão, tenho de gramar este glutão? Não faltava mais nada!

JOÃO RATÃO- Eu não sou glutão! Gosto de comer coisas boas, pronto! Mas é só isso!

CAROCHINHA- Ai sim? Então e a história do caldeirão?

JOÃO RATÃO- Qual caldeirão?

CAROCHINHA- Não te faças parvo! A história diz que “cais no caldeirão, por causa do feijão”!

JOÃO RATÃO- (dando uma gargalhada) - Só tu me fazias rir, quando estou cheio de fome! Isso são patetices da “história da Carochinha”! Noutro tempo, acredito que assim fosse, mas agora as coisas são diferentes. De resto, eu até nem gosto de feijão! Brrrr! Que falta de gosto! Eu cá, só como coisas finas: lagosta, caviar…

CAROCHINHA- E como pensas comprar tudo isso? És rico?

JOÃO RATÃO- Muito rico! Aqui para nós, que ninguém nos ouve, ando aí metido nuns negócios…

CAROCHINHA- Nesse caso, não vieste aqui só por eu dizer que tenho muita massinha?

JOÃO RATÃO- Claro que não! Por acaso nem te ouvi dizer isso. Logo que disseste que querias casar, vim logo. Queres casar comigo?

CAROCHINHA- (para o prólogo) - Como vês, sempre fiz bem em recusar os outros partidos!

PRÓLOGO- Confesso que não compreendo nada disto! Afinal, esta história está toda alterada desde o princípio. Estou a ver que tenho de arranjar outra profissão, porque esta de contador de histórias é muito complicada. Mas enfim! Quando é para ter um fim feliz, está tudo bem!

JOÃO RATÃO- Então, perguntei se querias casar comigo!

CAROCHINHA- Aceito! Claro que aceito! Mas com uma condição: não sais daqui de ao pé de mim até ao casamento, nem vais espreitar o caldeirão! Não vá o diabo tecê-las! Ah! Outra coisa: quero que todos os intervenientes nesta história estejam presentes. Não se olha a despesas! Afinal, ambos temos muita massinha!

JOÃO RATÃO- Concordo! Vamos fazer uma grande festa!

(começam a entrar no palco todas as personagens de “Histórias da Carochinha” cantando:)



Olha a feia Carochinha

A casar com o João Ratão

Dizia a história velhinha

Que caía no caldeirão

Mas agora tudo mudou

O João já não se cresta

E esta história acabou

Fazendo todos uma festa!



Fim (até que enfim!)

quarta-feira, 2 de março de 2011

HOMENAGEM A UM VULTO MAIOR NA CULTURA DE CONDEIXA

-Breves considerações -

Quando ainda me interessava por coisas de teatro, fui ensaiado, aprendi com Mestres a arte de palco, representei, “tive palmas e fracassos”. Quando chegou a minha vez, também ensaiei e encenei peças, fiz aquilo que é exigido a quem gosta do que faz, sempre sob o prisma amador, mas nunca esquecendo o respeito devido ao público. Porque gostava muito do que fazia, aventurei-me ainda a escrever teatro. Alguns trabalhos tiveram o seu momento de apresentação. Outros ficaram na gaveta e, muito dificilmente, algum dia terão oportunidade de encarar o público. Dentre estes conta-se a peça que agora transcrevo. Escrita propositadamente para ser representada por um grupo a formar dentro do Orfeão Dr.João Antunes, embora contasse com a aprovação da Direcção, nunca chegou a efectivar-se. Já lá vão alguns anos e a minha capacidade e entusiasmo esfriaram. Não será portanto através de mim que a peça verá algum dia as tábuas do palco. É pena! Creio que a mensagem nela contida é suficientemente importante! Para a feitura do texto, socorri-me das seguintes obras: “Padre Boi não é lenda”, de M. Rodrigues dos Santos; “Subsídios para a História de Condeixa”, de Fernando de Sá Viana Rebelo e Isaac Pinto e “Monografia Condeixa-a-Nova”, de Capitão A. Santos Conceição.



                               -DR. JOÃO ANTUNES-O HOMEM, A OBRA E A LENDA-

(de um lado da boca de cena será montada uma tela onde, por processo computorizado irão sendo projectadas cenas representativas da vida do Dr. João Antunes. Na 1ª cena, Luís Antunes, com avental de talhante, sai de ao pé de um assador e dirige-se ao grupo de jovens seminaristas onde a figura de seu filho, padre João, se destaca)



LUÍS ANTUNES- Com o respeito que tenho por quem é amigo do meu filho, permitam-me convidá-los para dar cabo de um bezerro que sacrifiquei e assei, em honra do nosso padre João!

SEMINARISTA 1- Um bezerro? E acha que chega para todos, Sr. Luís? Olhe que só para o João, é necessário um boi!

SEMINARISTA 2- Isso é verdade! Para um padre deste tamanho, só um boi inteiro!

SEMINARISTA 3- Essa soa bem! Para o padre, um boi! Padre Boi é nome que lhe assenta como uma luva!

LUÍS ANTUNES- Oh! Rapazes! Não ponham alcunhas, porque se elas pegam, são para toda a vida!

JOÃO ANTUNES- Deixe lá, meu pai. Nanja por isso! Não me vão faltar ao respeito, que não deixo! (mostra ameaçador os robustos braços. Riem todos.)

(a luz vai diminuindo até se apagar totalmente. Os participantes desta cena, abandonam o palco. Sobe a luz. O Narrador vem à ribalta.)



NARRADOR 1- E a alcunha pegou mesmo…para toda a vida. Aquilo que era apenas uma brincadeira de amigos, reforçou-se pela figura avantajada de João Antunes e o seu apetite desmesurado. Já era o Padre Boi quando em 1887 se matriculou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tendo terminado o curso em 1892. Nos muitos ilustres companheiros de estudos, contava-se o poeta Sanches da Gama e Manuel Luís Coelho da Silva, o futuro Bispo que mais tarde lhe iria fazer a vida negra.

Os tempos de borga estavam a terminar. Hilário, seu contemporâneo, ainda cantava pelas vielas da Lusa Atenas (em fundo, o fado Hilário), quando o novel advogado foi colocado em Condeixa como Conservador do Registo Predial.

Embora lamentando o afastamento da sua cidade, ao tempo a uma desconfortável distância de duas horas em diligência, rapidamente o seu feitio extrovertido e afável se adaptou à nova vida. O primeiro encontro em Condeixa foi com o pároco, a quem se apresentou oferecendo os serviços como coadjutor. Vendo nele um homem de palavra fácil, o pároco aproveitou essa faceta pondo-o a proferir sermões nas festividades religiosas locais.

Na romaria da Senhora do Círculo, os pastores apresentavam os rebanhos, tal como os seus ancestrais bíblicos faziam, para a benzedura os livrar de moléstias (imagem de gado a pastar). O padre Antunes formulou um sermão invocando as penas do inferno e os pecados que lá conduzem, dizendo:

(voz de padre Antunes) –“E não vos julgueis, caríssimos cristãos, libertos desses pecados que são mais que as caganitas das ovelhinhas aqui à volta!”

Esta liberdade de expressão não era muito vulgar naquela época. Muitos sorriram, mas no final todos estavam com lágrimas, impressionados pelo tom dramático do sermão.



NARRADOR 2- Condeixa nesse tempo não era propriamente uma aldeia rural do interior. Oitenta anos antes da chegada do Dr.João Antunes à vila, já Salvador Pena e amigos tinham fundado um grupo teatral (imagens de teatro) em cuja estreia foi apresentado um poema épico escrito por Rodrigo da Fonseca Magalhães, destacado condeixense e ministro do reino. Além disso, já existiam duas filarmónicas, tendo inclusivamente uma dele acompanhado até Coimbra a rainha D. Maria II quando a monarca passou pela vila. Sinais suficientes para ele se aperceber das potencialidades do povo que veio encontrar. Amante confesso da música, na sua cabeça começaram a fervilhar ideias de realizar algo. Mas o primeiro trabalho cultural foi na Igreja.

Em 1811, o general Ney, chefe das tropas de Massena, na fuga das Linhas de Torres, ao passar por Condeixa ordenou a destruição e incêndio da vila (efeitos de luz e som, sugerindo fogo e gritos). O templo, mandado construir por D. Manuel I, foi de tal forma vandalizado que pouco restou. Para cúmulo, as obras de restauro realizadas em 1821, certamente por falta de verbas e com certeza por manifesta incapacidade artística dos seus promotores, alteraram bastante a traça original.

Com a ajuda do povo, das pessoas eruditas da terra, do mestre canteiro de Coimbra, João Machado e de António Augusto Gonçalves, mas fundamentalmente a expensas suas, a vetusta igreja foi recuperada, tendo sido inclusivamente descobertas duas capelas que estavam entaipadas. Uma delas mandou ele restaurar e dedicar a S. Teresa, o nome de sua mãe.

Nesta altura já conseguira conquistar a consideração e amizade das gentes da terra. Como bom garfo que era, frequentemente confraternizava em jantaradas com os novos amigos. E foi numa dessas patuscadas, depois de uns copos bem bebidos, que surgiu a ideia de formar um orfeão. Numa entrevista, disse assim o Dr. João Antunes: (quadro onde aparece o padre a ser entrevistado)



DR. ANTUNES- A música foi sempre a minha paixão. Em Coimbra, toquei na Tuna. Depois, desterrado para aqui, fazia de vez em quando serões com os amigos e cada um tocava o que sabia. De uma vez veio-nos a ideia de formar um Orfeon. Lançámo-la. Reunimos quem quis reunir-se-nos, fizemos os primeiros ensaios e chegou-se ao que somos agora. Mas à custa de grandes dificuldades de interpretação. Valem-me os sucessivos ensaios, primeiro em naipes separados e depois em conjunto. Por fim, tudo se consegue. É o que me encanta!
Orfeon de Condeixa-1913



NARRADOR 1- A estreia do Orfeon, historicamente o primeiro de carácter popular do país, ocorreu na Igreja Matriz, em 27 de Fevereiro de 1903. Um êxito! (imagens fotográficas do Orfeon original)

E que bonito foi ver aquelas quase oitenta figuras, trabalhadores rurais, caixeiros, médicos, funcionários, advogados, professores e alunos, patrões e servidores, irmanados na música, cantando harmoniosamente difíceis compositores como Palestrina, Beethoven ou Bach (em fundo, um trecho de música clássica do Orfeão). Mais maravilhoso era o facto de o conjunto ser também formado por crianças! Naquele princípio do século, o decoro não permitia a presença de mulheres no coral. Então, para suprir o naipe de sopranos, recorreu às vozes infantis, como tiples. Os ensaios dos miúdos eram muitas vezes ministrados no seu próprio gabinete da Conservatória. Quando a insistência num determinado trecho não surtia efeito, a paciência esgotava-se (quadro mostrando o padre Antunes com um grupo de crianças) -

DR. ANTUNES- Vá lá…si és dolo…nada disso, outra vez, si é dolo…suas bestas! Estúpidos! Como é possível não entenderem o que digo? Burros! (algumas crianças começam a chorar) - Pronto, deixem lá. A besta sou eu, que não sei lidar convosco! (retira línguas de gato e rebuçados dos bolsos e distribui pela garotada).

Era assim o Padre Boi! Rude num momento, coração derretido no outro!

Padre Boi! Assim mesmo o tratavam as crianças, quando se acercavam dele: “Dê-me a sua bênção, senhor padre Boi.” Não se zangava! Antes pelo contrário, afagava-lhes as cabeças e dizia-lhes, dando guloseimas:”Não vos esqueceis que amanhã há ensaio…)



NARRADOR 2- As mulheres foram a sua perdição! Não tantas quanto a lenda lhe atribui, mas para um padre…! Também exagerado é o número de filhos de que dizem ser autor.

Quando se instalou numa casa junto ao velho palácio dos Sás, no Terreiro, contratou Carmina Xavier, governanta e companheira de lençóis. Foram pais de sete filhos. Mais tarde, por morte dela, outra lhe sucedeu, de quem teve mais rebentos. Mas os pecados da carne não se limitavam a dentro de casa. Por aqui e por acolá, ainda lhe restava tempo para outras aventuras. Entretanto, a sua faceta reinadia também dava mostras. Condeixa tinha fama pelas festas e romarias. O ponto fulcral dos habituais festejos, era na Praça Velha, um largo maior que o actual, ao fundo da Rua Nova (imagem mostrando o sítio). Ali, costumava dançar um rancho ensaiado por Joaquim Carvalheira e no qual brilhava uma linda moça chamada Joaquina do Moinho. A governanta do Dr. Antunes pensou já ser tempo de existir também um rancho que desse animação ao Terreiro. Convenceu o patrão e este acedeu ao pedido. Ela então desafiou a estrela do outro grupo, mas a cachopa não aceitou. A rivalidade estava criada! Troçando das pretensões de Carmina Xavier, na Praça Velha cantavam: (vozes cantando)



As meninas do Terreiro

Quando foram ensaiar

Comeram favas assadas

Que a Carmina lhes foi dar!



Uma alusão directa aos mimos com que a Carmina aliciava as raparigas para as ter no rancho. E este respondia assim: (vozes cantando)



Não comes as favas quentes

Ó menina Joaquina

Que não é para os teus dentes

Coisa boa, papa fina!



Para o dia da exibição, noite de S. João de 1898, previa-se uma cena de pancadaria entre os dois agrupamentos. Felizmente, nada disso aconteceu. Acabaram confraternizando em pleno Terreiro, a cantar as coplas brejeiras atribuídas ao Padre Boi: (vozes cantando)



Meninas dos meus olhos

Cheguem-me ao calor

Quanto mais me chegam

Mais eu sinto amor



Dás-me um beijito?

Ai! Ai! Isso é que não!

Dás-me um abracito?

Vá lá, seu maganão!



NARRADOR 1- Ainda não se falou da obra mais importante do Dr. João Antunes: a Escola de Artes e Ofícios. Quando patrocinou as obras de restauro da Igreja de Santa Cristina, apercebeu-se que muitos dos operários condeixenses chamados a executar os diversos trabalhos, tinham capacidades artísticas, porém apenas empíricas. Como seriam esses operários se tivessem possibilidade de adquirir outros conhecimentos? Esta pergunta martelou-lhe o cérebro até encontrar resposta. Contratou mestres pintores, ceramistas, canteiros! Pedro Olaio, Abel Manta, António Augusto Gonçalves…os melhores! Mas isso custava muito dinheiro!

Herdeiro entretanto de razoável fortuna com a venda de terrenos em Coimbra criou a sua Escola (quadro mostrando pessoas a pintar, esculpir, gravar em madeira…)

“…E a vila multiplicou-se em pintores de domingo, marceneiros-artistas, ferreiros, compositores populares…” como escreveu Fernando Namora, ele também aluno da Escola e pintor de mérito.

Durante treze anos, em Condeixa foram criadas ondas sucessivas de artistas. E ainda hoje é possível encontrar profissionais de vários ofícios, descendentes desses outros, alunos da abençoada Escola. Durou treze anos, tantos quanto durou o dinheiro do Padre Antunes e as raras dádivas. Certa vez, em 1922 houve necessidade de promover um leilão de obras de arte para financiar interesses urgentes da Escola. E apareceram quadros oferecidos por vários artistas de renome: Columbano, Alfredo Keil, Roque Gameiro, Malhoa…

Na abertura da exposição, mestre António Gonçalves proferiu um discurso: (quadro mostrando A. Gonçalves a discursar): «No nosso país a organização do trabalho nunca foi compreendida. O trabalho não tem instrução, nem crédito que o fortifique e engrandeça. Tudo está por fazer. O nosso atraso parece não ser compreendido pelos utopistas, que tudo reformam em decretos de pavorosa nulidade. As Escolas Industriais faliram deploravelmente, sob o peso de ficções e erros acumulados. E a acção oficial mostra-se impotente para tentar novos rumos de reconstituição profunda. Não há competência, nem a intuição clara dos meios a empregar e dos fins a atingir. E contudo esse trabalho árduo é forçoso que seja realizado sem perda de tempo, como condição fundamental de restauração económica…A coragem e dedicação do Dr. João Antunes, que desde tantos anos se tem dedicado à causa da arte e da educação operária, é um raro e glorioso exemplo que dificilmente encontra imitadores. O egoísmo e o desprendimento pelos interesses da educação são, na sociedade portuguesa, a mais irreparável demonstração de decadência cívica. Por isso mesmo, os serviços e sacrifícios devotados por este benemérito cidadão ao progresso da instrução técnica e do aperfeiçoamento moral da classe operária, bem merecem os aplausos e o auxílio com que os artistas acorreram em favor da Instituição!»



NARRADOR 2- Que bem ficava este discurso de alguém que tinha uma perspectiva tão inteligente e profunda da sociedade…se dito hoje! Foi pronunciado há perto de noventa anos!

Já falámos de duas facetas características do Dr. Antunes. Falta-nos referir aquela que perdurou na memória popular até aos dias de hoje, manchando a reputação de tão ilustre figura cultural: o pecado da gula!

Não são condizentes as descrições sobre o tamanho físico do Padre Boi. Uns dizem que teria mais de dois metros, outros atribuem-lhe cerca de um metro e oitenta. Ramiro de Oliveira, que o conheceu muito bem, dizia: “Era um homem forte, alto, mesmo demasiado corpulento, de cabeleira branca cortada ao nível dos ombros e pesava cerca de cento e vinte quilos”. Um homem assim, graças a Deus com bom apetite…não podia contentar-se com “qualquer coisinha”!

São muitas as estórias que se contam sobre o seu apetite! Certa vez, o farmacêutico Dr. Pinheiro, convidou-o para almoçar. Vendo que o Padre Boi olhava para a mesa com apreensão disse-lhe: (o quadro pode ser representado pelos dois narradores) –

PINHEIRO- O Dr. Parece-me cheio de apetite, mas olhe que não vai sair daqui com fome porque está aí comida que chega para um regimento!

DR. ANTUNES- Pois eu tenho dúvidas se chega para mim sozinho…

PINHEIRO- Olhe, então vamos fazer assim: o senhor põe-se já a comer e se esgotar a mesa, eu vou pagar o almoço na Pensão Buraca. Caso contrário, vamos lá na mesma, mas quem paga é você!

O Padre Boi não foi capaz de enjeitar tão aliciante proposta, nem era homem para perdê-la! Pouco depois…foram todos almoçar à Pensão!

Também é muito conhecido o episódio passado no palácio dos Lemos, quando o rei D. Carlos visitou a vila, na companhia do filho, o príncipe D. Luís Filipe, em 1907, a convite de Manuel Pereira Ramalho. No banquete que este ofereceu, estava também presente o Padre Antunes. Vendo-o a comer com bastante apetite, o rei, que também tinha sido bom gastrónomo, no final do repasto mostrou interesse em conhecê-lo. Um criado foi à sua procura e voltou com o recado: “ O senhor padre está na copa a jantar, mas promete não demorar.” “Outra vez a jantar?”, disse o rei, admirado por encontrar alguém mais comilão que ele!

Mas a afinidade dos dois não se resumia aos prazeres da mesa. Como o Dr. Antunes, também o monarca era amante da música e da pintura e, por isso, quis saber em pormenor o percurso cultural do padre. No fim, manifestou admiração pelo artista e concedeu-lhe o título de Capelão da Casa Real, honra muito apreciada pelo Dr. Antunes, que inclusivamente quis ser amortalhado com as respectivas insígnias.



NARRADOR 1- Era conhecida também a sua devoção à Senhora das Dores. A imagem da Virgem esteve muitos anos dependurada num velho cipreste. Tão velho, que acabou por cair. Ele então mandou edificar, à sua custa, a capelinha que agora se encontra incorporada numa capela maior. A data da primitiva construção está lá: 1906!

Embora já fosse hábito do povo rezar à Senhora das Dores, foi ele no entanto que fomentou, com incansável zelo, esse culto, indo lá diariamente, quer chovesse ou fizesse sol, rezar o terço. E essa prática diária levou a imaginação popular a afirmar que as covas na terra junto às gradinhas da capela, eram marcas dos seus joelhos.

Já quase no fim da vida, na peregrinação à orada passou a ir acompanhado por seu neto Luís que agitava constantemente uma campainha, avisando os fieis para a oração. Seu neto Luís, que afinal tinha outro nome de registo! O Dr. Antunes só o conheceu quando ele, já criançola, um dia se lhe dirigiu dizendo: (quadro mostrando o padre e uma criança) -

NETO- Dê-me a sua bênção, meu avô:

PADRE- Avô? Quem és tu?

NETO- Sou filho do Raul, seu filho.

PADRE- Como te chamas?

NETO- Manuel.

PADRE- Pois já que és meu neto, a partir de agora passas a chamar-te Luís, que era o nome do teu bisavô, meu Pai!



NARRADOR 2- E Luís ficou! Herdou os dotes artísticos do avô e tornou-se um excelente latoeiro que criava só com as mãos e vulgares ferramentas, verdadeiras obras de arte em folha-de-flandres e outros metais. Percorreu o país de lés a lés, em Feiras e Exposições, onde apresentava os seus trabalhos. Possuidor de uma bela voz de tenor, de vez em quando deliciava quem o ouvia, entoando as românticas baladas de Coimbra, ou fado, como lhe queiram chamar!

Voltando ao Orfeon do padre Antunes, inicialmente designado”Orfeon dos Artistas e Trabalhadores de Condeixa”, que prosseguia o seu caminho, de vento em popa.

Dr.João Antunes e o poeta Afonso Lopes Vieira
No dia 14 de Março de 1915, actuou em Coimbra num sarau em memória da data da morte do poeta António Nobre. Foi a rampa de lançamento para voos mais distantes e distintos. Não foi com certeza alheio a isso o facto de ter sido inserido num programa onde participaram artistas de renome, como o pianista e crítico de arte Alexandre Rey-Colaço e suas filhas, Alice, Maria e Amélia Rey-Colaço.

Além disso, claro, o desempenho excelente do agrupamento, assegurou o êxito. Logo ali ficou estabelecida uma exibição na capital. Antes desse espectáculo, deslocou-se o grupo a Caldas da Rainha, por interferência do poeta Afonso Lopes Vieira, grande amigo do padre Antunes. Actuou no jardim que agora pertence ao Museu da Cerâmica. Ainda hoje lá está um painel de azulejos evocativo dessa actuação, com poema de Afonso Lopes Vieira. E finalmente Lisboa, no Teatro da República, hoje Teatro S. Luís.

Os jornais da capital fizeram eco do evento. Um deles, o “Jornal da Mulher”, escrevia: (lendo o jornal) - “As criaturas humanas podem fazer milagres. Diremos que esta noite, o venerando sacerdote João Antunes realizou um verdadeiro milagre no palco do reconstruído Teatro da República. E, na verdade, fazer com que a rude e inculta gente do campo, sem a mínima cultura artística, sem os mais leves conhecimentos musicais, execute obras de Bach, Beethoven, etc., não será um verdadeiro milagre?”

Também a cidade do Porto acolheu o Orfeon em dois espectáculos no Palácio de Cristal. E Leiria, Figueira da Foz, Aveiro, Pombal…o Orfeon de Condeixa fez exibições em meio Portugal! Isto, no tempo em que as viagens se realizavam em ronceiras carruagens ou nos pouco mais rápidos comboios!

O coral, fundado em 1903, após um período de grande actividade esmoreceu e, em 1926 as suas exibições quase se limitavam a participações esporádicas na Igreja, em Sexta-Feira de Paixão, para cantar o “Miserere”.

Em 1927, o seu fundador convocou todos os elementos para comparecer em ensaio. O jornal “A Pátria”, dizia em 23 de Outubro de 1927: (lendo o jornal) - “Ninguém sabe onde o Orfeon de Condeixa vai, se a Lisboa, se ao Porto, ou se a alguma das cidades próximas da sua linda vila, mas vá onde for, esse grupo de rouxinóis terá os aplausos de quem o ouvir, porque é um Orfeon que encanta, não só pelo conjunto admirável dos seus homens que, despreocupados de preconceitos, se irmanam com um único fim: elevar o nome de Condeixa até onde todos o vejam com simpatia. A sua sede é Condeixa, orfeonistas são os condeixenses e o Orfeon é o Dr. Antunes, esse santo e admirável homem, alma de artista, a quem a vila muito deve.”

Mas o Orfeon, já com vinte e quatro anos, estava ferido de morte! A fortuna do Dr. Antunes tinha-se esvaído, a idade e a doença avançavam a passos largos e o desaparecimento de alguns elementos mais velhos e mais responsáveis, desequilibrou o agrupamento onde, infelizmente, pontuavam pessoas de baixa formação cívica. O entusiasmo estava cada vez mais esmorecido. Adivinhava-se o findar da instituição. E foi em S. Pedro de Moel “…onde a terra acaba e o mar começa”, a convite de Afonso Lopes Vieira, que o Orfeon fez o último espectáculo!

NARRADOR 1- Magnânimo por natureza, mas negligente em tudo o que tivesse a ver com questões financeiras, o Dr. João Antunes tinha esbanjado tudo o que possuía. O seu bom coração nunca ficava indiferente às necessidades do povo. Ramiro de Oliveira escreveu no Diário de Coimbra: (lendo jornal) ”Era esmoler. Muitas vezes o vi, pela calada da noite, metendo envelopes por debaixo das portas de famílias que sabia carenciadas. A mão esquerda, à boa maneira evangélica, deve ignorar o que faz a direita!”

Era também muito medroso! Todos conheciam o seu pavor de trovoadas. Estivesse a meio de um ensaio, na conversa com amigos ou no desempenho das suas actividades profissionais, mal o leve piscar de relâmpago riscava o céu, corria para casa a embrulhar-se em cobertores, rezando fervorosamente.

Os seus inimigos, porque o padre Antunes também tinha inimigos, não se cansavam de fazer queixas ao Bispo de Coimbra, criticando a forma, para eles verdadeiramente blasfémica, como o padre vivia, amancebado e com uma catrefa de filhos. Ele próprio, tendo consciência da sua situação, pregou um dia numa festa nos arredores de Condeixa: “A doutrina cristã é tão sublime que apesar de no seio da Igreja existir o devasso de um padre e, no decorrer dos séculos outros devassos como ele terem existido, ela chegou ao nosso tempo e está a atingir os dois mil anos!”. D. Manuel da Silva, seu antigo colega de Faculdade, agora exercendo a função de prelado, muitas vezes o admoestou, tentando evitar actuação mais dramática. As pressões no entanto eram muitas. Um dia vieram dizer-lhe que o Bispo o tinha proibido de celebrar Missa. Respondeu desabridamente o padre:” O Bispo excomungou-me? Pois eu também estou a amaldiçoá-lo neste momento!”

Nesta altura a diabetes já tinha operado grandes estragos no seu gigantesco corpo. Tudo se conjugava para abreviar o fim daquele que tudo dera em prol da cultura condeixense. O cargo de Conservador tinha findado. Sem meios para prover a própria subsistência, ia definhando rapidamente. Vivia quase só da ajuda dos leais amigos que ainda restavam e o convidavam para tomar as refeições. Infelizmente, muitos outros, quando o viam fugiam como “o diabo da cruz”. Doente, velho e cansado, ainda se arrastava todos os dias até à Senhora das Dores, onde rezava o terço, a actividade religiosa que lhe não podia ser retirada!

M. Rodrigues dos Santos, escreve assim no seu Esboço Biográfico do Padre Dr. João Antunes “ Padre Boi, não é Lenda”:

«…os últimos dias do padre Dr. João Antunes, foram tempos de auto- flagelação, quase a tocar os extremos da miséria, de apagamento social e de agonia lenta, esses que mediaram entre 1929, em que cessou as funções como Conservador do Registo Predial e viu o “seu” Orfeon extinguir-se, e a morte, ocorrida em 26 de Agosto de 1931, quando ia completar 68 anos de vida, trinta e seis dos quais consumidos na dedicação ao povo de Condeixa. O arrependimento e a pobreza conjuraram-se para que ao leão moribundo tudo faltasse na hora da morte, menos a ingratidão de alguns que dele usufruíram amizade sem barreiras, convívio enriquecedor e até conhecimentos que os ajudaram a fazer carreira. No frio rés-do-chão da Casa da Lapa, sobravam vestígios do equipamento do Orfeon e da Escola de Desenho que aí tinham funcionado, recordações dos tempos áureos da sua cruzada altruísta!”

(quadro com um catre no centro do palco, no qual “está” o padre Dr. Antunes, amortalhado com um simples lençol. Requiam, em fundo).

NARRADOR 2- O funeral realizou-se no dia 27 de Agosto de 1931. A imprensa coimbrã dedicou espaço ao infausto acontecimento. A Gazeta de Coimbra escrevia: (lê) -“Embora a doença andasse há muito a minar-lhe irremediavelmente o corpo atlético, a morte do Dr. João Augusto Antunes não deixou todavia de nos surpreender dolorosamente. Só quem como nós, que muito com ele vivemos e muito devemos aos conselhos do saudoso finado, soube quanto as dores alheias o perturbavam e afligiam, é capaz de sentir, nesta hora triste, a morte do Dr. João Antunes. Os que não privaram com ele choram a morte do artista. Nós choramos o artista e o Homem. Porque o Dr. Antunes foi dos maiores da música que na nossa terra tem havido!”

Pouco depois do seu desaparecimento, começaram a surgir manifestações culturais com o seu nome. «Grupo Cénico Dr. João Antunes», agrupamento teatral de curta duração. Na Casa do Povo de Condeixa, foi criado o «Centro de Alegria Dr. João Antunes».

Em 27 de Agosto de 1939, era inaugurado no cemitério de Condeixa um plinto com o medalhão do homenageado, desenho do arquitecto Raul Lino. (imagem com a fotografia dessa homenagem).

Em 1956, 25º aniversário da sua morte (imagem com fotografia dessa homenagem), discursou um outro ilustre condeixense, o Dr. Manuel Deniz Jacinto, que disse: “ Aquele Homem era uma força natural, instintiva e forte. Não era arqueólogo e prestou inteligentes serviços à restauração da nossa Igreja; não era músico nem pintor, nem artista notável em qualquer especialização. Mas era aberto às manifestações artísticas e sedento delas e tinha personalidade para polarizar e canalizar reais vocações e para se impor à consideração dos conhecedores e praticantes da arte. Regeu os Orfeons de Condeixa, Académico do Porto e Ginásio Clube Figueirense. Criou na Escola Nacional de Agricultura de Coimbra um Orfeon. Decerto que todos os seus cantores o relembram ainda hoje. Porque mesmo antes de partir do nosso convívio, o padre Antunes entrava já na lenda e as suas façanhas gastronómicas e outras, corriam o país. Nasceu filho de ricos e morreu pobre; trabalhou para os outros e nisso esbanjou os seus bens; procurou a beleza da vida e quis pô-la ao serviço do povo!».

(no quadro seguinte, são trazidas para o palco obras do Dr. João Antunes ou da sua Escola. O Orfeão Dr. João Antunes entra e posiciona-se para actuar).

Orfeão Dr.JoãoAntunes- Concerto de Natal na Igreja de Condeixa
NARRADOR- Senhoras e senhores, convosco o digno herdeiro dessa OBRA QUE NÃO É LENDA! O Orfeão Dr. João Antunes, de Condeixa!

Cândido Pereira.