sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

LUGARES DE CONDEIXA- A RUA NOVA


Na continuação de registar a memória de lugares desta terra onde nasci, chegou a altura de dar uma volta por outro sítio peculiar.
Regra geral, é comum considerar-se como bairro o conjunto de locais, interligados por sítios com determinadas características. Foi assim que fiz nas minhas crónicas anteriores, quando tentei retratar Condeixinha, atribuindo-lhe particularmente o título de “Estrada de Pedra”. Já ao Outeiro dei o nome próprio, sem registar o título algo depreciativo como outros condeixenses o designavam:”Espanha”. Desta vez, como o espaço físico da rua é reduzido, porém rico em conteúdo, acrescento-lhe dois outros locais, para complementar o relato.
O tema vai ser “rua Nova” e as ruas que lhe estão adstritas, serão a Palmeira e rua de S. Jorge (actual rua Dr.João Ribeiro).
Embora o nome oficial seja rua Venceslau Martins de Carvalho, sempre lhe chamaram, e chamam, rua Nova. Segundo refere Santos Conceição “…Condeixa-a-Nova, nesse recuado século XIII, seria um pequeno lugar de área não superior a 800 metros quadrados, a crescer entre a actual Igreja e a rua Nova…” e prossegue “…foi o lugar acrescido por doação de terras pertencentes ao morgadio de Morais Botelho…” O mesmo historiador cita ainda o Padre António Carvalho da Costa: “Foi este lugar de Condeixa-a-Nova, ou a maior parte dele, doado à povoação, no ano de 1500, pelos irmãos Srs. Estêvao de Morais Botelho…e Afonso de Morais Botelho…” para acrescentar em seguida: “não diz, a Corografia, qual a extensão do lugar; ela devia ser, porém – segundo se infere dos bens do morgadio- aquela que viria a ser ocupada pelo palácio dos Sás, com as terras próximas.”
Daqui se depreende que a rua Nova tem pergaminhos de antiguidade.
Na junção de três ruas, respectivamente e pelos nomes que actualmente apresentam: rua 25 de Abril; rua Fortunato de Carvalho Bandeira e rua de Lopo Vaz há um espaço antigamente designado praça Dr. António Granjo, ou praça Velha. Isto é curioso, porque exactamente duma praça velha, começa a rua Nova. E nada melhor para a assinalar, que um “passo” do percurso da muito antiga Procissão do Senhor dos Passos de Condeixa. Tão antiga, que neste passo, a encimar o lindo painel de azulejos, se encontra a data: ano de 1782! Mas a Procissão é, seguramente, mais antiga!
A própria praça Velha tem história. De dimensão superior à actual, ali se realizava o mercado da vila. Na 2ª Edição da Monografia de Condeixa, assinada por José Maria Gaspar, é referido: “…no século XIX, na época das lutas entre liberais e miguelistas, praticou-se nela o corte de cabelo duma senhora ascendente da família Pires de Miranda, por se recusar a denunciar o paradeiro de seu irmão”. Eu acrescento: A senhora em questão pertencia a uma família tradicionalmente democrata liberal, e os executores do castigo foram os “caceteiros” da facção absolutista miguelista.
A estreita rua Nova, não chega a medir uma dezena de metros de largura. Esse facto é motivador de maior proximidade entre moradores. Tal como em Condeixinha, as pessoas podem falar com o vizinho da frente, sem necessidade de elevar a voz. Mas, ao contrário de Condeixinha, um bairro marcadamente operário, a rua Nova não tinha oficinas e os moradores intercalavam-se entre gente rica e gente pobre. Tão pobre que se contava um episódio passado com um dos moradores. Faço referência a isso, para demonstrar os tempos difíceis que então se viviam: um dia, uma das filarmónicas foi tocar numa qualquer festa dos arredores. Em dia de arraial, há sempre rancho melhorado. Quando os músicos se sentaram a uma mesa farta, repararam que um dos seus elementos, após o farto repasto, chorava. Intrigados, perguntaram-lhe o porquê. E a resposta não se fez esperar: “tanta fartura, e eu não tenho capacidade para comer mais!” Comentários, para quê!
As casas sucedem-se em linha contínua, até ao cruzamento com a travessa da Água e rua de S. Jorge. Aí, um pavilhão já integrado na Quinta do Palácio, tem a culminar o pequeno telhado, um dos dois cata-ventos que ainda restam nesta terra, onde vários existiam (há outros dois exemplares que têm apenas função decorativa). O que refiro representa um homem guiando um porco. Matematicamente fiel às condições atmosféricas, quando o homem vem da feira dos quatro (mercado de gado que se realizava na Barreira), é sinal de bom tempo. Em oposto, se ele vem de Condeixa-a-Velha, a invernia instala-se. Mistérios do vento norte e do vento sul!
A casa onde se encontra o passo atrás referido era a habitação e estabelecimento comercial de Rui da Costa. Habilidoso pintor da construção civil antes de ser funcionário de uma companhia de electricidade, tocava viola e era figura habitual nos conjuntos musicais criados para abrilhantar qualquer festejo, tendo sido também membro do conjunto musical do Rancho Folclórico da Casa do Povo, desde o início. Além disso possuía dotes teatrais e, por isso, participou em diversas peças e revistas.
Depois, morava a Senhora Marie Guitton. Francesa de nascimento, mas a viver longos anos em Condeixa, esta senhora foi figura característica da vila. Nesse tempo, as “meninas de família” eram educadas de forma a tornarem-se boas esposas. Entre as prendas exigidas, constava a aprendizagem da língua francesa. Lá estava então a Senhora Guitton para ministrar as aulas. Também na Igreja ensinava o catecismo, condição primária para as crianças que faziam a Comunhão Solene. E não era nada meiga nos métodos docentes! Mas também, os garotos da altura não eram boas biscas! O Fernando António que confesse a maldade feita um dia à senhora (aqui para nós, retirou o banco em que ela se ia sentar!
Com a senhora Guitton, morava a “menina Otília” desde pequenina. Bem, pequenina ela continua, embora os anos tenham passado. Quando em 1947 foi construído um Parque Infantil na Praça da República, a “menina Otília” foi lá colocada como encarregada, tomando conta das crianças e de uma estante com livros da Colecção Tonecas. Li-os todos! A Otília, para mim sem “menina”, há tantos anos a conheço e tão querida me é, continua a ser participativa. Aí está ela agora, membro integrante do agrupamento “Cantares de Condeixa”.
Logo acima, e no lado oposto, existe ainda um velho prédio cheio de história porque esteve lá instalado o primeiro teatro a sério, da vila. O edifício pertencia (pertence) à família Bandeira e foi adaptado a casa de espectáculos. Noutro ponto do meu blogue, refiro a actividade teatral em Condeixa, descrevendo esse local onde inclusivamente ocorreu a estreia do Orfeão criado pelo Dr. João Antunes. Ao findar a primeira metade do século vinte, o sítio foi utilizado também para instalar uma fábrica de mobília, a Mobilândia. A rua Nova chegou a ser chamada rua dos Teatros, porque um outro prédio abrigou também um Grupo Teatral. Não encontrei nos escritos antigos, referência à sua localização mas, presumo, tenha sido onde hoje estão as instalações da Santa Casa da Misericórdia.
Logo a seguir, morava Manuel Couceiro (Cigarra) e a sua numerosa prole. Embora a rua Nova tivesse vários moradores que se distinguiam dos demais habitantes da vila (em todas as terras, em todos os lugares isso acontece), parece-me correcto afirmar que esta família emprestava à vivência quotidiana da rua um carisma especial.
Das características de Condeixa, era significativo o número de pessoas que tocava algum instrumento musical, o que justificava a existência simultânea de duas bandas de música. Há quem afirme dever-se isso ao facto de ser Condeixa um ponto de passagem (e paragem) de colunas militares, sempre acompanhadas pelas respectivas charangas. É possível! Para quem recorde fotografias da Música Velha ou da Música Nova, facilmente comprova que estão recheadas de genuínos condeixenses, de todos os lugares mas, particularmente, pode reparar na foto da Música Nova, onde figuram cinco membros da mesma família: O patriarca Manuel Couceiro (Cigarra) e os filhos, João, Francisco, António e José. Conta-se até uma história curiosa. O João e o Francisco moravam na Rebolia. A paixão musical era tão grande que, numa altura em que um deles teve um problema que o impedia de andar, era o irmão quem o ia buscar às cavalitas, para o trazer aos ensaios da banda!
Além de bons executantes de instrumentos musicais, toda a família Cigarra cantava bem. O Alberto então, era -ainda é, felizmente, creio – voz afinadíssima para cantar o fado de Coimbra (ou balada ou trova, como lhe queiram chamar). Ele e o Ganga (António Pessoa), outra bela voz, percorriam as ruas de Condeixa, acompanhados pelas guitarras e violas de António Pimentel, Álvaro Moura e Silva, o irmão deste, Manuel e o António (Tó) Rocha, a fazer serenatas às bonitas jovens desse tempo.
Com músicos, detentores de lindas vozes e amigos de festas, a rua Nova durante as fogueiras populares, era um perfeito arraial.
Morei na travessa da rua da Água, na casa que tinha ao canto do muro do quintal uma bica, embora a água não fosse de nascente, mas de uma rigueira vinda do lado do Matadouro, e ainda assisti às “fogueiras”. À esquina do pavilhão do Palácio (o tal onde está o cata-vento) os cachopos da rua montavam um altar dedicado a Santo António e à noite era o bailarico, sempre animado musicalmente pelos trompetes, clarinetes e saxofones dos moradores. Mas convém não esquecer, a presença da inconfundível “Ti Caçaneta”, mulher do “Ti Mitério” (Hemitério Pato) e mãe de vários Patos de Condeixa. Pequenina mas enérgica, aos oitenta e muitos, ainda a vi a desafiar outras mais novas para a bailação.
Já entrando pela rua de S. Jorge, ao ângulo recto da rua chamava-se “o motor”. Quando a família Sotto Mayor adquiriu aos Lemos Ramalho o palácio, não havia ainda energia eléctrica em Condeixa. Foi então instalada em edifício próprio, uma central de produção eléctrica. Como o motor necessitava de arrefecimento, do lado de fora havia sempre água a correr. E isto era muito importante para os vizinhos do local, especialmente no verão, porque se tratava de abastecimento de água permanente para a lavagem de roupa.
Há quem considere que a Palmeira é o prolongamento da rua Nova, outros, que é toda a rua Manuel Ramalho, antiga rua da Água, até à junção com a rua anterior e a rua Dr. João Antunes ou, como se dizia no meu tempo, a Avenida Nova. Para mim, Palmeira é tudo isso. Diziam que existia uma árvore dessa espécie no largo em frente ao portão da Quinta do Palácio e do Matadouro Municipal (que agora é uma tipografia mas já foi também quartel dos bombeiros), e por isso a designação genérica.
Do Matadouro, recordo quando nós, garotos, lá íamos pedir o bucho dos animais abatidos para fazer bolas de futebol (bolas de futebol, é uma expressão demasiado optimista), com as quais jogávamos aguerridos desafios na Praça.
Por detrás, era o quintal e a casa-moínho onde morava a família Canudo. É claro que Canudo, Cigarra e muitos mais nomes, não eram apelidos e sim alcunhas. Mas colavam-se de tal forma às pessoas que até os próprios detentores as aceitavam. Quando menciono qualquer uma dessas alcunhas, não tenho a mínima intenção de ofender quem quer que seja. Simplesmente e porque o que escrevo é fundamentalmente dirigido a condeixenses, acho que esta é a melhor forma de situar os relatos.
Já caminhando em direcção ao rio, há uma casa devoluta e em avançado estado de degradação onde, diziam, havia fantasmas. Nem só os castelos escoceses têm direito a essas figuras, imaginárias ou nem tanto. O prédio em questão, verdade (?) ou imaginação, não conseguia manter muito tempo os inquilinos. A findar o mesmo bloco habitacional, outro dos inúmeros moinhos de Condeixa, este explorado por António Canudo, um dos familiares do moinho anteriormente mencionado. Cometeram com este prédio um atentado à arquitectura regional, ao revesti-lo com marmorite. Ainda bem que não lhe retiraram o arco de volta abatida onde estavam os rodízios do moinho. E depois, o rio, pejado de lavadouros onde à semelhança do que acontecia em outros lugares da vila, as lavadeiras de Condeixa ensaboavam, esfregavam e batiam a roupa. “…Dois corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol…”, cantava a Mirita Casimiro no filme “Aldeia da roupa branca”. O “secadoiro”, ou “coradoiro”, era em frente, no empedrado junto às casas de António Preces e da Ti Maria Vasca.
Em 1936, o Grupo Cénico Dr. João Antunes apresentou a Revista-Fantasia de Condeixa “Secas e Picadas”, onde entravam 102 personagens. Tinha cenários pintados expressamente por Joaquim Melâneo e 30 números de música, original e adaptada por António de Oliveira. Um destes números chamava-se “Lavadeiras”. Eis um extracto dos versos:

Herdei da minha avó
A vida de lavadeira
Ela morreu, fiquei só
Penso da mesma maneira.

Qualquer vida tem percalços
E a minha é muito ingrata
Mas aos fregueses mais falsos
Prendo eu pela arreata.

Há freguesas delambidas
Que se dizem asseadas
De quem lavo às escondidas
Muitas calcinhas borradas.

Lavo a roupa a um freguês
De maneiras delicadas
Mas num bolso encontrei três
Camisas emporcalhadas”.

Depois, cantava o coro:

“ Metidas no rio
Ao sol e ao frio
Qualquer lavadeira
Vai lavando mágoas
Que vão com as águas
Vindas da ribeira”
Em 1980, tive o honroso convite do Sr. Ramiro de Oliveira para ensaiar no Grupo de Teatro da Casa do Povo, uma revista escrita por ele e que se intitulava “ Condeixa Sem Máscara”, onde figurava o Quadro das Lavadeiras, retirado da anteriormente mencionada revista.
Hoje, dia em que estou a escrever estas memórias, passei pela Palmeira e vi lá uma solitária lavadeira. Estaria a reviver tempos antigos ou, em tempo de crise, a poupar na energia da máquina de lavar?
Com esta descrição, termino a minha passagem em memória pelo Bairro da Rua Nova.
Tal como aconteceu em “Outeiro” e um pouco mais em pormenor na “Estrada de Pedra”, ou em “ A Rua Principal”, tentei retratar alguns aspectos interessantes da Condeixa do meu tempo, procurando não ser maçador nem inconveniente descrevendo demasiadas situações ou contando episódios que podem não ser do agrado dos familiares. Estes exercícios de memória procuram apenas registar uma determinada época. E, quem sabe, talvez despertar em quem eventualmente leia o que escrevo, recordações agradáveis desse tempo.
Condeixa, 14 de Janeiro de 2011
Cândido Pereira