Após ter publicado a 2ª parte de «Lugares de Condeixa, a Avenida», fui surpreendido com um comentário deveras curioso: “Se algum dia houver paciência e vontade…” Desafiava-me o comentador a escrever sobre os hábitos e tradições dos condeixenses em épocas festivas: Natal, Ano Novo e Carnaval.
A primeira reacção foi manifestar incapacidade para tal empresa, mais adequada a quem tenha formação etnográfica, habilitação que infelizmente não possuo. A minha “especialidade” resume-se a contar coisas de outros tempos, o “meu tempo”.
Porém, nunca fui homem de resistir a um bom desafio. E, numa noite em que o João-pestana se atrasou, dei comigo a imaginar como seria possível responder satisfatoriamente ao simpático repto. Assim, o que vou contar é afinal mais um exercício de memória, minha e de outros que, como eu, se preocuparam em deixar para a posteridade registos desta Condeixa em constante mudança e perda da identidade que a caracterizava.
Tanto quanto me parece, não há conhecimento de que na vila se festejasse o Natal, Ano Novo e Reis, da maneira ancestral de muitas outras terras do País. É evidente que a feitura do presépio, com musgo e bonecos de barro passando por pontes sobre rios de bocados de espelho, pastores, vaquinha, burrinho e reis magos adorando a Sagrada Família, mais toda a parafernália de outros participantes, sempre existiu. Mas isso, já é tradicional, dizem, desde S. Francisco de Assis. No Ano Novo, em tempo de mais brandas leis das armas, era comum ir à janela disparar para o ar, tentando atingir um velho que rapidamente se afastava, deixando o lugar a outro ano, acabado de nascer e que trazia promessas de melhor vida, o que nem sempre se concretizava. Já as Janeiras, confesso que as ouvi a primeira vez pelas vozes dos cantadores do Rancho Folclórico da Casa do Povo.
Quanto ao Carnaval, as coisas mudam de figura! “É Carnaval, ninguém leva a mal”.
Pois sim! Gostava de ver qualquer um dos meus eventuais leitores a aceitar de cara alegre uma das “brincadeiras” preparadas pelos foliões condeixenses!
Mas vamos lá por partes. O Domingo Magro dava a partida para “deitar o badalo”, um gancho enfiado na fechadura da porta, uma corda sustendo razoável pedra e um longo cordel que, de um lugar distante e seguro, era puxado ritmicamente, provocando contínuo martelar na porta. Ah! Falta dizer que no meu tempo não havia televisão e as pessoas se deitavam ao “toque das almas”, sinal dos sinos da torre para recordar os familiares e amigos falecidos. O dia seguinte começava ao romper da aurora, com ”o toque das Trindades”, início dos trabalhos na lavoura.
Voltando ao badalo, em pleno primeiro sono uma pessoa era acordada pelo martelar monótono do calhau. Acham que ficava com cara de quem está muito feliz por ter sido o escolhido dos foliões?
Virando as páginas dos cadernos de «Subsídios para a História de Condeixa» escritos por Isac Pinto e Fernando de Sá Viana Rebelo, encontramos esta descrição: “…João Ramos, primeiro-oficial de diligências do Tribunal da Comarca de Condeixa, bom chefe de família, cumpridor dos seus deveres e muito trabalhador, tinha um “fraco”: não gostava de badalos. E esse fraco exteriorizava-o em termos incendiários, mesmo explosivos. Chegava a dizer que se mandasse, encarcerava na Penitenciária todos os garotos que pusessem badalos nas portas dos cidadãos pacíficos. Ora os rapazes abusavam desta fraqueza e nos oito ou dez dias que antecediam o Entrudo, não lhe largavam a porta e ele, durante tão cruciante período, passava-o por detrás da janela ou da porta da rua, pronto a derrear o atrevido ou atrevidos que ousavam achincalhá-lo. E era homem para o fazer! Como os rapazes lhe conheciam o génio, valiam-se de todas as habilidades e manhas para dependurarem na fechadura o estafermo do pedregulho. Feito isto, que era o mais importante e arriscado, escondiam-se na Rua de S. Jorge, de onde puxavam o badalo. Era então digno de se ver o Sr. João Ramos, com os nervos descontrolados, absolutamente desorientado. Até que uma noite conseguiu agarrar um e justamente o que puxava a guita, fazendo vibrar o embirrante badalo. Agarrou-se a ele, frenético, vibrando de alegria e espírito de represália mas…logo o largou com um berro de espanto: era o seu Chefe, o Juiz da Comarca, Dr. Castro de Almeida que com outros altos funcionários conhecedores do fraco do Sr. João Ramos, de quem eram amigos, se lembraram de lhe pregar aquela partida.”
Bem, o Carnaval de Condeixa não era composto só de badalos. Até 1980, o mercado fazia-se na Praça da República. Na noite de segunda para terça, tudo o que fosse traste ou velharia era transportado para a Praça. Calhambeques, carroças e um dia, até para lá levaram uma velha cabine de camioneta que estava num terreno a servir de …retrete!
Mesmo a meio da Praça, ladeando o chafariz, estavam dois altos candeeiros em ferro, os apelidados “nabos”, pela forma cónica (mas artística) dos emissores de luz. Os rapazes estendiam um arame de um candeeiro a outro. Lançavam um cordel com um gancho, por cima do arame. Quando algum incauto se distraía, o chapéu saltava-lhe da cabeça e era forçado a dar saltos para o apanhar, perante o gáudio dos mirones. Devo confessar que não apreciava nada a brincadeira. Já nessa altura tinha consciência do que isso representava em termos de humilhação para os apanhados na situação.
Deixemos as filosofias baratas e vamos ao baile. Condeixa, viveiro de músicos, nunca perdia a oportunidade para fazer festas musicais de rua e bailes. Era no Natal, no Ano Novo, na Páscoa, só escapava a Quaresma porque a educação religiosa não permitia e nem as autoridades estavam pelos ajustes. Vá lá, pelo meio ainda se aproveitava a Micaréme, apenas um dia no roxo das sete semanas.
Embora sendo uma vila tão próxima de Coimbra, pressupondo determinada forma de comportamento social, Condeixa, no meu tempo, era retrógrada. O relacionamento entre jovens de sexos diferentes tinha regras definidas. Por exemplo: o pedido de namoro, normalmente feito por carta, não era respondido à primeira declaração. Mandava o código de bom comportamento feminino, que a pretendida apenas respondesse ao candidato após a insistência deste. A negativa não merecia sequer resposta. No caso afirmativo, começavam por se encontrar apenas na rua, para conversa informal e à vista de todos. Depois de obtidas algumas garantias das boas intenções do moço, este já ia namorar à porta, em dias convencionais, a quarta e o domingo, sempre discretamente vigiados. Até para o passeio dominical eram sempre acompanhados pelo “pau-de-cabeleira”, um irmão ou uma amiga relativamente atentos às mãos dadas e beijos furtivos.
Por isso, os bailes tinham importância no comportamento da malta. Era uma oportunidade nunca perdida para o aproximar de corpos, num enlace mais ou menos cingido, consoante a permissão dela e o arrojo dele. No Entrudo, as regras de convivência eram mais brandas, dando lugar a situações que noutra época se podiam considerar abuso. Eu estou a analisar o tema sob o prisma masculino. Mas, era capaz de jurar, as raparigas pensavam exactamente da mesma forma.
Baixinho como sou, pouco mais de centena e meia de centímetros (dito assim, até parecem mais!), tinha duas hipóteses: ou maroto, ou bailarino! Como a segunda me dava muito maior gozo, optei e ainda bem!
Naquele tempo, os lugares de eleição para grandes bailes, eram: o Clube de Condeixa; a Casa do Povo; o salão de ensaios da Música Nova no palácio do Paço e até o Cine-Avenida, depois de retirada parte das cadeiras. E não ficava por aqui! Bastava juntar-se um grupo de rapazes ansiosos por dar à perna, conseguir-se um espaço, pequeno ou grande, arranjar-se música e aí estava o forrobodó.
Para os tais grandes bailes, em “salão” de boas dimensões, contratava-se uma orquestra. Nos outros, aqueles de ocasião, servia uma “salinha” e a música dos discos de 45 ou 78 rotações, tocados num gira-discos e com o som ampliado pelo rádio.
Passados os dias de euforia carnavalesca, acordava-se em Quarta-Feira de Cinzas, com o longo período de luto da Quaresma.
Em Condeixa, no terceiro fim-de-semana após o Entrudo, realiza-se a Procissão do Senhor dos Passos. Carregada de tradições com cerca de três séculos, tem alguns aspectos que estão em risco de desaparecer. Por enquanto, ainda se mantém a penitência de joelhos, ao sábado, no percurso entre a Igreja e a Capela da Senhora da Piedade. Na passagem do andor sobre a linha de água do Rio do Cais, uma pequena paragem permitia aos crentes colherem a milagrosa água, que depois era utilizada para sarar males do corpo. Um amigo meu, infelizmente já falecido, dizia que o abençoado líquido lhe tinha curado “uma ursela do diódeno”. Sabe-se lá! Não quero ferir susceptibilidades, mas era preciso ser-se bastante crente para pensar que o rio, emporcalhado por toda a espécie de detritos dos esgotos de habitações a montante, tivesse
virtudes miraculosas. Boa ou má tradição, terminou! A água para o Rio do Cais foi desviada com um colector subterrâneo e só volta à luz do dia, nos Pelomes. Vai ser quase impossível coordenar a paragem do andor e o momento de colheita da água. Isto, no caso de ainda existirem pessoas fieis ao costume!
Outra tradição do mesmo acto religioso, diz respeito ao “Pendão”, um mastro que abre a Procissão e tem de ser transportado por pessoa com fortes braços pois o comportamento é semelhante ao mastro e vela de um barco. Sempre ouvi dizer que se um dia o transportador deixar cair o Pendão, devem passar-se 4 anos sem realização da Procissão. Julgo que até hoje, isso nunca aconteceu.
Com a Páscoa, voltavam os bailes. Primavera, tempo de renovação, também período de amores a sobressaltar os corações jovens.
Divagava Ramiro de Oliveira:
”…Estás entre nós? Sê bem vinda…
Mas fica, que é cedo ainda
Para partir!...
Dizes que o Céu te requer?
Não! Não vás enquanto houver
Um coração por florir!
O auge da Primavera era alimentado com as fogueiras dos santos populares, de velha tradição. Já António Nobre, o atormentado poeta do «Só», dizia no poema “Cartas a Manoel”
«…Condeixa? Vamos ao arraial que ali há!
- Sol, poeira, tanta gente! É o mesmo, vamos lá!»
12, 23 e 28 de Junho, a vila iluminava-se de ponta a ponta com dezenas de fogueiras. Tudo o que ardesse era lançado às chamas. Indispensável é que durasse toda a noite. Mesmo em tempo de fome, a gorda sardinha assada e o tintol marcavam presença, a estimular as cantigas de Ramiro de Oliveira:
Ardem fogueiras
E em volta as raparigas
Rezam terços de cantigas
Cada uma com seu par
Anda Maria
Enfia o braço no meu
Marcha e canta como eu
Vamos nós também dançar!
Ou então:
Cá vai Condeixa
Toda vestida de chita
Vai alegre e tão bonita
Ver e saltar as fogueiras!
Que até S. Pedro
S. João e Santo António
Par’ a livrar do demónio
Perdem três noites inteiras!
Menina e moça
Nunca se deixou tentar
Não é cabeça no ar
Mas presa por tal encanto
Foi ao terreiro
E embalada nas cantigas
Do peito das raparigas
Fez um trono a cada Santo
Das grutas de Condeixinha
Ao Outeiro, com seus altares
Passa Condeixa Inteirinha
Agora feita rainha
Destas festas populares!
Eram os poetas, sensibilidade apurada, atentos às coisas comuns da vida, aquelas que iam ao encontro do sentir do povo!
Depois disto, será que correspondi ao desafio lançado? Se calhar, até não! Enfim! Os meus conhecimentos não permitem voos mais largos. E, “Quem dá o que tem…”
Condeixa, Fevereiro de 2011
Cândido Pereira