domingo, 16 de outubro de 2011

AS PROFISSÕES E OS ARTISTAS DE CONDEIXA

"Da minha terra vejo o quanto se pode ver no Universo
 Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
 Porque eu sou do tamanho do que vejo
 E não do tamanho da minha altura...

 Nas cidades a vida é mais pequena
 Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro
 Nas cidades as grandes casas fecham a vista à chave
 Escondem o horizonte,empurram o nosso olhar
 Para longe de todo o Céu,
 Tornam-nos mais pequenos porque nos tiram
 O que os nossos olhos nos podem dar
 E tornam-nos pobres,porque a única riqueza é ver!"

Alberto Caeiro em "O Guardador de Rebanhos"


Em todas as profissões há artistas e "sapateiros"!Esta expressão designa geralmente o profissional que executa a sua obra sem perfeição,"atamancada",daí outra maneira de dizer que tem a ver com tamancos,objectos de uso para os pés,mas de feitio tosco.
Entendo que o apodo é injusto,pois a arte de sapateiro exige conhecimento e habilidade manual!
Actualmente o calçado é produzido em unidades industriais com maqinaria sofisticada.Antigamente porém,os sapateiros faziam as botas ou os sapatos, a partir das medidas tomadas aos pés do freguês.
A primeira fase da obra correspondia à feitura das gáspeas,a parte superior do calçado,em calfe,que o sapateiro talhava e depois mandava coser em máquinas próprias,geralmente operadas por mulheres,as "ponteadeiras".Após isto, numa peça de madeira com o formato do pé,colocava o sapateiro as gáspeas,esticáva-as e prendia-as com pequenos pregos,colava as palmilhas e procedia à aposição das solas,préviamente batidas a martelo para lhes dar a espessura e consistência adequadas.Isto era importante,pois quanto mais comprimidas estivessem as solas,maior era a sua durabilidade.O passo seguinte consistia em coser as solas às gáspeas,com fio de linhol embebido em cera,para lhe dar mais   resistência e maneabilidade para passar nos buracos que um furador chamado sovela ia abrindo no material.
O sapateiro trabalhava num banco baixo,com os joelhos dobrados em ângulo com o corpo para poder prender o calçado entre as pernas e assim produzir a obra.À frente,tinha uma banca onde estavam   as ferramentas necessárias ao seu mister: sovela e sovelão;formas de ferro e de madeira;torquês;pica-ponto;buxete e manípulas,estas em cabedal,para protecção das mãos no manuseamento das linhas de coser.
"Grosso modo",pois nunca fui sapateiro e sei apenas o que via fazer,era assim que se desenrolava o trabalho daqueles profissionais.
Em Condeixa existiam muitos sapateiros.Uma razão para esse facto talvez se prendesse com a existência na vila de duas pequenas unidades de produção de calçado:José Lopes Cardoso e Manuel António Nunes.Essas "fábricas"foram responsáveis também pela vinda de sapateiros e ponteadeiras que acabaram por se radicar na vila.
A vida,há mais de 60 anos, tantos quanto a minha memória alcança,era difícil.Numa terra pequena,escassamente desenvolvida, vivendo quase exclusivamente da agricultura e do comércio,as necessidades familiares obrigavam a grande economia.Por isso,não é de estranhar que uma das "fábricas"mencionadas,José Lopes Cardoso,tivesse criado uma curiosa maneira de comercializar os seus produtos.Cada par de sapatos vendido a crédito,era acompanhado por uma caderneta numerada,onde se registavam as prestações mensais.Entretanto,se os últimos algarismos da Lotaria Nacional (a chamada "terminação")correspondiam aos números da caderneta,o cliente recebia como prémio o calçado comprado,sem necessidade de continuar a pagar as prestações.Há sempre uma maneira inteligente de dar a volta às dificuldades!
É curioso o facto de existirem tantos sapateiros em Condeixa,se pensarmos que naquele tempo muita agente andava descalça.Mas os sapateiros não estavam vocacionados apenas para o fabrico.Também,e mais frequentemente,faziam reparações como "deitar umas trombas",isto é,substituir a parte dianteira do calçado,aquela que estava mais sujeita aos embates com as pedras das ruas mal calcetadas.Ou "metiam meias-solas e saltos"e,se isto estava em bom estado,até substituiam as gáspeas,aproveitando tudo o resto!
A instalação em Condeixa de um posto da GNR,em 1947,fez cumprir a proíbição de andar descalço.Mesmo assim,recordo-me de ver muita gente que vinha ao mercado nos dias de feira,só utilizar o calçado quando chegava ao perímetro urbano da vila.Desta forma poupavam os sapatos na longa caminhada por estradas poeirentas e mal cuidadas.
Eu também muitas vezes percorri as ruas da vila,sem calçado.Era uma forma de me sentir mais livre.Além de evitar os ralhetes em casa,por ter estragado os sapatos nos desafios de futebol em plena rua ou na Praça!
A profissão de sapateiro,sendo uma das mais vulgares em Condeixa,tinha também figuras peculiares.São interessantes os episódios tendo como protagonistas os sapateiros ou os seus clientes.
Ao Ti Nero foi incumbida a tarefa de reparar umas botas.Era inverno e o sapateiro sem mais nada para calçar,serviu-se das botas do freguês.Quando este ljhe perguntava se as botas estavam prontas,respondia apenas:"estou com elas",percebendo o cliente que ele estava "com elas em mãos".Mas na verdade,ele estava com elas calçadas!
O Ti João Cavaca costumava gastar o produto do seu trabalho,na taberna.A mulher,tentando que,pelo menos,algum dinheiro sobrasse para as despesas,pediu a um cliente que apenas pagasse metade e lhe desse a ela o restante.Não lhe serviu de nada o expediente!Quando o cliente disse que só pagava uma parte e depois levava o resto,respondeu-lhe calmamente o sapateiro:"Só paga metade?Pois leva apenas um sapato.Quando pagar o resto,leva o outro!"
Era assim o quotidiano desta terra que,sendo pequena,era enorme na quantidade de profissionais nos diversos ofícios.Artistas que pretendo recordar,respeitosamente,nesta rubrica.