quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

LENDAS,ADÁGIOS E CRENÇAS POPULARES

                              

Portugal possui um património rico em lendas e tradições,forma de cultura popular que utiliza o maravilhoso e o fantástico como veículo para difundir ideias,quase sempre com intenção moralizadora-a eterna disputa entre o Bem e o Mal.Serviam também as histórias para ocupar o tempo e a imaginação com breves ou longas narrativas contadas,sobretudo à noite,tanto dentro do aconchego da casa onde a lareira fornecia o necessário calor para combater o frio invernal,como também nas noites cálidas de verão,com os ouvintes sentados à roda do "contador de histórias",regra geral alguém idoso que conservava o segredo de velhas lendas,transmitidas através de gerações.São particularmente interessantes as lendas que envolvem motivos religiosos,de tal forma que ainda hoje continuam a fazer parte dos feitos atribuidos a muitos dos santos.Algumas das histórias são puramente fantasiosas,servindo apenas para incutir nos espíritos a noção de algo que nos transcende,raiando muitas vezes o inverosímil.É o caso,por exemplo,da padroeira de Condeixa,Santa Cristina,cuja lenda refere ter sido lançada ao mar com uma pesada mó de moinho presa no pescoço,à ordem de seu próprio pai,mas que se salvou pela intervenção divina.
No entanto,algumas crenças podem conter algo de verdade.
No século XVIII,o Bispo do Porto,D.Fernando Correia Lacerda introduziu nas lendas da Rainha Santa Isabel,por ele contadas,a hstória de um pagem que inventou uma acusação mas acabou castigado,por intervenção divina,no trama que ele próprio urdira.
"Na corte de D. Dinis havia um pagem protegido da Rainha,pois a ajudava nas muitas obras de caridade por ela feitas,sem o conhecimento do Rei.Um outro pagem,invejoso da maneira como o seu companheiro era tratado na corte,insinuou junto ao Rei que havia algo de estranho naquela relação da Rainha com o seu pagem.O monarca,movido pelo ciúme,recomendou ao dono de um forno de cal que quando lhe mandasse um pagem para saber se determinada ordem sua fora cumprida,o lançasse imediatamente no forno.Ordenou então ao pagem protegido da Rainha que fosse junto do forneiro com o recado.Ao passar junto da Igreja de S.Francisco da Ponte e ouvindo os sinos que anunciavam o início do ofício divino,o mensageiro,que era muito devoto,lá entrou e asssitiu à missa,demorando assim mais tempo que o necessário para cumprir a missão ordenada.O Rei,pensando que o pagem já estaria a arder,enviou o outro para confimar a ordem que dera.Ora isso era a senha que o Rei dera ao forneiro.Quando o pagem intriguista se apresentou ao homem do forno,foi imediatamente lançado às chamas!"
Mas não só a temática religiosa ou de simples crença popular servia para alimentar o imaginário dos ouvintes.São por demais conhecidas as chamadas "histórias da carochinha",narrativas ingénuas onde os animais representavam também o seu papel no desenrolar do enredo.
A par destas maneiras de contar histórias,surgem ainda os prolóquios ou adágios populares,tais como:"Pelo andar da carruagem,se vê quem lá vai dentro",frase que parece antiquada mas que ainda continua a utilizar-se como manifestação cultural popular.
Estou a recordar-me de um rifão popular bastante usado.É a história contada na nossa região de um camponês que foi a Coimbra vender os seus produtos transportados no dorso de um jumento.Ao chegar à ponte,dois estudantes resolveram pregar uma partida ao aldeão.Um deles retirou sorrateiramente o cabresto do burro enfiou-o no próprio pescoço,enquanto o outro se afastava com o animal e a respectiva carga.O dono do asno,sentindo que este não estava a caminhar com a desenvoltura que desejava,voltou-se para trás disposto a castigá-lo.Qual não foi o seu espanto ao deparar com um homem,em vez do burro.Logo o estudante lamuriou:"Não me bata,meu amo.Eu sou um pobre estudante que estava encantado,mas ao entrar na minha cidade o encanto desvaneceu-se  e sou novamente homem.Agora só peço a sua generosidade para me livrar deste maldito cabresto".O camponês logo o libertou pedindo-lhe muitas desculpas pela pancada que dera a quem pensava ser um animal.Depois disso,partiu para a feira de gado disposto a comprar outro animal que substituisse o burro feito estudante.Aconteceu porém que os estudantes,depois de venderem a mercadoria roubada,foram também à feira para vender o burro.O aldeão,ao ver o seu asno à venda,chegou-se-lhe às orelhas e disse:Olhe,senhor estudante,"quem não o conhecer,que o compre!"
Perdeu-se o salutar convívio das reuniões familiares e,com isso,perdeu-se também o hábito de "contar histórias":
Infelizmente,nenhum dos meios modernos de comunicação têm capacidade para substituir o sortilégio das velhas lendas e contos populares!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012


                     Crónicas de Um Tempo Passado--O Rio


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre,bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa,essa
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo,não tem pressa.
Livros são papeis pintados com tinta,
Estudar é uma coisa indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor,quando há bruma,
Esperar D.Sebastião,
Quer venha,ou não!
Grande é a poesia,a bondade,as danças...
Mas o melhor de tudo são as crianças,
Flores,música,o luar,e o sol,que peca
Só quando,em vez de criar,seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

de: Fernando Pessoa


Ler,é uma das actividades que mais tempo ocupam o meu desocupado tempo de aposentado.Leio compulsivamente,em casa,no carro,onde o tempo tenha de ser ocupado por qualquer coisa que me ocupe o espírito.
Desistindo,por várias razões,nas quais a financeira tem lugar de destaque,de comprar livros,utilizo geralmente a Biblioteca Municipal,na frequência de semana e meia,mais ou menos.
Mas também alguns amigos,conhecedores do meu “vício”,se dispõem a facultar-me livros.E foi exactamente esse facto que originou a presente crónica.
Até mim chegou um volume intitulado “Água doce,Mar salgado”.O seu autor,Manuel do Amaral,era quase um conterrâneo.Oriundo de uma família muito antiga e altamente conceituada de Condeixa,mais propriamente da aldeia de Atadôa,Alcabideque,Condeixa-a-Velha,era lá que passava as suas férias de menino.Neste livro,que escreveu em 1983,aborda no primeiro capítulo um tema que me é muito querido e familiar,pois também utilizei os mesmos sítios para as minhas brincadeiras da infância e juventude.
O Alcabideque é o nome desse primeiro capítulo,que passo a descrever na integra sem necessidade de apôr qualquer observação,tal a realidade como está descrito.
Não conheço a lei que defende os direitos de autor,mas quero deixar bem explícito que não pretendo fazer plágio.Sendo o livro pouco conhecido,apenas achei que tem interesse este seu primeiro capítulo,principalmente para quem utilizou o rio desta maneira que o Autor descreve.Para quem pretenda ler todo o volume de «Água Doce Mar Salgado»,deixo a seguinte informação:«Edição Revista “Diana”-R.da Barroca,78-r/c-1200 Lisboa.


«O ALCABIDEQUE»

“Foram decerto os olhos da minha infância que fizeram com que o rio Alcabideque não apresentasse grandes diferenças em relação ao Amazonas,nem em caudal,nem em extensão,nem em largura.A imagem que mantenho bem gravada na memória é a de então:a de um rio que embora também corresse para o mar,como o Amazonas,fazia-o ao contrário,isto é,de Leste para Oeste.Esta era,talvez,a maior diferença.Por isso ainda hoje me recuso a modificar a opinião que então formei do rio que passava ao fundo do quintal da casa onde em grande parte cresci.Mesmo quando por lá vou agora,embora raramente,e olho as suas bem modestas proporções,não me abandona,mesmo assim,e perante a realidade dos factos,aquela sensação formulada há muito tempo,de grande,de fundo,de rápido e por vezes tumultuoso quando os invernos atingiam o auge do rigor.Isto tudo me parecia bem real,palpável,verdadeiro,muito embora a distância de uma margem a outra não ultrapassasse,em média,os quatro metros bem medidos.Tão-pouco a profundidade na grande maior parte do seu curso,dava para cobrir um homem de pé,nem mesmo o seu comprimento,no troço que eu abrangia nas minhas deambulações,atingia sequer um escasso quilómetro.A verdade,no entanto,é que o Alcabideque foi,durante alguns anos,o armário dos meus sonhos,o mundo inexplorado das minhas aventuras,o mar da minha vontade de viver.E foi depois,como é ainda hoje,uma peça importante das peças usadas que guardo no baú das recordações.
Aquele rio era límpido e transparente.Tirando nos tempos de invernia em que com as enxurradas se tornava lodoso e opaco,de uma forma geral o fundo deixava-se ver,e também se podiam observar,por quem tivesse interesse e paciência,os inúmeros habitantes das águas.Porque no rio havia ruivacos,barbos e enguias.Passeavam sangessugas pouco mais pequenas que o dedo mindinho,que se agarravam à pele das pernas quando andávamos na água.À superfície,nadavam insectos pretos e pernaltas chamados alfaiates,e acima da superfície andavam sempre as libélulas de cores chamativas e asas transparentes,a que apelidávamos de tira-olhos,não sei bem porque razão.Também alguns bezouros zuniam em voos rápidos,enquanto os juncos badalavam constantemente accionados pela corrente.Accionadas pela corrente eram as rodas de tirar água,com alcatruzes e as mós do moinho e da azenha.
No inverno a água do rio era represada em diversos pontos,e atirada para as terras limítrofes que acabavam por passar a estação das chuvas alagadas e cheias de erva alta que depois era cortada para o gado comer.Era um nateiro,como o Nilo no Egipto.Nessa altura do ano eu não via os peixes,nem os alfaiates,nem os tira-olhos,nem os bezouros.Nem mesmo uns ratos enormes que,chegada a Primavera,enxameavam as margens do rio,passando de uns buracos para outros por entre as raízes dos salgueiros e dos choupos postas a nu pela erosão da água.Também as águas eram desviadas por canais e condutas tão bem feitas que o rio chegava a passar por cima dele próprio,de atravessado,já se vê,num desses milagres da ciência hidráulica que se fosse hoje,se calhar,já não me faria abrir tanto a boca de espanto como então fazia.E teria sido assim,levado por esses canais e essas condutas,que ele se dava a beber a escravos e senhores naqueles tempos recuados da ilustre Conímbriga.
Os escassos mil metros a que atrás me refiro deram algumas vezes para eu fazer viagens arriscadas na descida da corrente,com as perigosas passagens de fundões e mesmo com uma difícil transposição do açude da azenha.O retorno fazia-se à sirga,puxando penosamente a improvisada jangada,rio acima,como se eu e os meus habituais companheiros fôssemos barqueiros do Volga.Afinal,tudo era o desbravar de um eterno desconhecido,e o empenho e ânimo com que me lançava repetidamente naquela descida nunca terminada davam-me redobrada sensação de uma aventura infinda.
Desses poucos anos passados a iniciar o estreito contacto com uma natureza ainda em grande parte livre,nasceu em mim a paixão pelo campo,pela água,pelas ervas e pelas árvores,pelos pequenos e grandes animais que por toda a parte nasciam,viviam e morriam.O tempo havia de me levar depois a outras terras,a conhecer outras águas,até mesmo à imensidão do mar,mas sempre e de cada vez me lembrava do Alcabideque,das cachoeiras,dos poços,dos peixes e dos insectos que habitavam as suas águas,das aves e dos outros animais que faziam parte integrante do sistema que ele comandava.Porque um rio é tudo,e dele se forma tanta coisa que onde ele não existe não há quase nada.Aquele ali era um mundo,correndo pela várzea,deixando-se comandar,desviar,utilizar,dando de beber,molhando as raízes das plantas,oferecendo oxigéneo aos peixes,borrifando as penas dos pássaros para humedecer os ovos no choco dos ninhos,e mantendo a flutuar ervas e detritos por entre os quais as libélulas e outros insectos alados iam fazendo posturas na renovação da Primavera.E depois continuava,continuava sempre,e quem sabe se por caminhos ocultos nas profundezas dos oceanos fazia ao contrário a peregrinação das enguias que chegavam em viagem secreta do Mar dos Sargaços.A água daquele rio,transformada em água de outro rio maior, e de outro ainda,e assim até ao mar,fazia sempre o mesmo percurso que a minha imaginação fazia.Tinha muitos anos,o rio.Os franceses tinham abandonado as margens do Alcabideque na miséria,na morte e na desolação,na pilhagem da retirada.Depois da derrota de Massena na batalha da Redinha.Um pouco mais de cem anos tinham decorrido desde então.Mas daí até à revolução liberal foram os frades que voltaram a instalar as suas agriculturas aplicadas à exploração da terra.Continuaram a desenvolver os princípios da irrigação e drenagem das parcelas da várzea,e desenvolveram também naturalmente os primitivos equipamentos industriais:os moinhos,as adegas,os lagares.Depois desse tempo,e mesmo antes,a aldeia bordejava o rio no meio do seu percurso pela várzea,não tinha mais notícias do Mundo do que as que lhe eram trazidas por um ou outro homem que se deslocava à vila ou à cidade, mais próximas.Assim nunca chegaram a saber que Napoleão tinha perdido a batalha de Waterloo,e que o grande cabo de guerra que mandara para lá os franceses conseguia comunicar de Paris com Roma em apenas quatro horas,usando um sistema de semáforos contínuos.Nem tão pouco lhes passou pela cabeça que pouco mais de um século depois esse seria mais ou menos o tempo necessário a um homem para ir,de avião,de uma cidade à outra.Quando eu andava lá pela aldeia o que os homens sabiam do Mundo era o que alguns deles tinham trazido das terras de França depois da Grande Guerra.Outros não tinham de lá trazido nada porque tinham por lá ficado mortos debaixo da terra..Outros ainda nada contavam porque os gases nunca mais os deixaram pensar direito.
No tempo quente,no intervalo de uma ida aos ninhos tomava-se banho num dos marachões do rio.Todos sabiam nadar,o que hoje muito me espanta.O banho era em nu,praticava-se o mergulho em lançamento da margem,em corrida,ou saltando do ramo de uma árvore,com maior emoção.Víamos os peixes mas nem sequer fazíamos tenções de os perseguir.No entanto,na aldeia havia pescadores de rede que armavam nassas de malha estreita nas saídas dos desvios,ou nos fundões.Havia outra maneira de apanhar peixe:desviava-se o curso do rio ou contornavam-se os bordos de um pego com um muro de barro.Depois secava-se o pego com baldes e gamelas.Barbos,ruivacos e enguias apanhavam-se com cestos de vime.No fim,punha-se tudo como antes.O rio continuava a correr,o pego enchia-se,o peixe que ficava recuperava o seu ambiente.Os alfaiates,as libélulas e os bezouros voltavam aos bailados e sinfonias reflectidos no espelho da água.À tarde quando voltavam dos campos os homens metiam os carros no rio,e os bois que os puxavam dessedentavam-se sorvendo com ruído,levantando de vez em quando a cabeça,deixando escorrer a água pelos cantos da boca.Abriam ritmadamente as narinas à medida que bebiam.Sacudiam os moscardos que os picavam,com as caudas franjadas,espalhando em redor borrifos de água.Além da rega de pé que o rio proporcionava,também os homens tiravam a água do rio com cabaços de lata e cabos de madeira compridos para dornas colocadas sobre os estrados dos carros de bois.Com ela regavam as hortas,bacelos e árvores novas em pontos altos e distantes. Faziam caldas de sulfato e levavam a água para as adegas e lagares para ser utilizada nos trabalhos em que fazia falta.Nós os garotos seguíamos atrás dos carros e,no tempo quente já se vê,aproveitávamos para refrescar o corpo com a água que ia transvasando a cada tranco que os carros davam nas covas dos caminhos e das ruas.Com a água do Alcabideque apagavam-se incêndios,com a participação dos homens, mulheres e crianças da aldeia,naquilo que hoje se chamaria um trabalho colectivo.Um dia o fogo fugindo do forno da broa da casa da Senhora minha Avó pegou em carqueja e lenha armazenadas na mesma dependência e quando se deu por ele já o fumo e as labaredas que fazia,apareciam por cima do telhado de telha vã.Logo na capelinha do Santo o sino tocou a rebate e em pouco tempo um vaivém humano cobria a distância entre o rio e o local do sinistro.Baldes e cântaros passavam de mão em mão,cheios para cima,vazios para baixo.Aquilo era como os holandeses a colmatar a brecha num dique.Solidariedade humana.Convém esclarecer que o Santo era S.Sebastião com o seu tronco nu crivado de flechas,e a capelinha onde era venerado,e que guardava as sua imagem quase em tamanho natural,ficava mesmo junto ao rio,dando a frente para um largo sobranceiro à zona mais espraiada do curso de água.O largo e o lago que o rio formava,e que era onde os homens iam carregar a água e dar de beber aos bois, impunham um espaço genéricamente conhecido por «O Santo».Como se fosse um Terreiro do Paço pequenino,o «Santo» constituia um ponto de referência,um local de encontro,muito embora não fosse o Rossio da aldeia.O Rossio da aldeia era simplesmente «O Largo» e estava localizado a uns cinquenta metros contados para o sul na parpendicular do rio.Pode ser que a memória me falhe,mas julgo que o Alcabideque nascia ,como ainda nasce,metade junto à povoação do mesmo nome,e a outra metade mais acima.Uma vez corria em dois ramos,outras talvez em três,para se juntar de vez em quando.Tinha sido trabalhado pela técnica agrícola que foi surgindo no decorrer dos tempos,e apurada pelos frades das ordens que se espalharam um pouco por toda a parte.Não espanta que os romanos tenham por lá deixado os seus conhecimentos no domínio da hidráulica.O rio perdeu já a sua importância aparente.A água para abastecimento das populações está canalizada,e a energia que ela proporcionava,livre,não mais faz andar as mós dos moinhos,nem as galgas e as prensas dos lagares de azeite.
O Amazonas tem mais de um milhar de afluentes.Ao Alcabideque só conheci um,e pequeníssimo.Um regato com meio metro de largo que conduzia até ele a água de uma nascente localizada a muito curta distância,num sítio chamado o Sardão.No Saramagal o regato encontrava o rio,e nessa confluência caí eu de uma figueira abaixo com o que arranjei uma cicatriz num joelho que ainda perdura.O rio também alargava o suficiente para que as andorinhas tivessem o espaço necessário para panhar mosquitos sobre a água em voos acrobáticos.Tenho ideia que hoje já não se vêem por lá as andorinhas,nem os morcegos que nós tentávamos por vezes derrubar com canas de pontas ensebadas,declamando a lenga-lenga:«Morcego,morcego,vem à ponta desta cana que tem sebo».A mudança na cor da água do rio processava-se não só ao longo do ano como também ao longo do dia.Assim,conforme as chuvas ou o sol,ele ia do castanho barrento no topo do Inverno ao branco prateado no topo do Verão.De dia,da Primavera ao Outono,passava por vários tons de azul,reflectindo o azul do céu,ou espelhava o cinzento das núvens ou o verde mutante das folhas das árvores que o vento agitava..Na casa ao lado da da minha família vivia um Senhor muito delicado e simpático,mas de comportamento assaz bizarro.Baixo e magro,nunca o vi que não estivesse vestido de branco da cabeça aos pés,como acontecia com os chamados «brasileiros» que voltavam à pátria.Também usava chapéu de palha de abas largas.No entanto,este vizinho um tanto ou quanto fantasmagórico,nunca teria atravessado o oceano.Aquela inclinação para o branco no trajar,era mais uma faceta da sua bizarria e não a reacção característica de um qualquer emigrante regressando das terras do Amazonas às terras do Alcabideque.Embora em casas separadas,vivia paredes meias com uma Senhora,julgo que irmã,tipo dama antiga,com uma gargantilha de veludo e um permanente vestido de cerimónia.Talvez por causa desta suave presença feminina,o vizinho de branco escusou-se a autorizar o tráfego pelo troço do rio que atravessava as suas propriedades.Ao pedido limitou-se a responder:«Atrás de uma embarcação vem outra embarcação...Homens nus a pescar!».No entanto,eu e a minha tripulação conseguimos por mais que uma vez fazer aquele percurso proíbido com as cautelas de que se rodeavam os grandes exploradores que na América do Norte desbravavam os rios em território de peles-vermelhas.
Quando os salgueiros que bordeavam o rio cresciam,as nossas viagens fluviais tornavam-se mais difíceis.Os vimes quase atravessavam de uma margem à outra,e a navegação era tão complicada como nos rios da selva amazónica,guardadas as devidas proporções.Os salgueiros pareciam-me árvores do outro mundo,estranhas,com troncos atarracados,raízes que se assemelhavam a cabelos de espantalho,e uma multitude de vimes folharentas,flexíveis e fortes.Na devida altura que recordo dever ser por fins de Agosto,aparecia um homem vindo da serra que durante duas ou três semanas fazia poceiros em série.Aquela fabricação feita com uma mestria que me impressionava,dava origem a que minha atenção ficasse presa horas sem fim nos movimentos das mãos e dos dedos do homem da serra que trabalhava de joelhos,manhãs e tardes inteiras,curvado na sujeição dos vimes de salgueiro à sua forma de os domar.Era com estes poceiros que se carregava o milho,a uva,a azeitona,e com eles também se apanhava peixe ao calcão.Muito antes de o fazedor de poceiros aparecer na aldeia já muitos salgueiros estavam despidos de vimes,e estes aos molhos,postos a remolhar à mistura com os sacos de tremoço.O tremoço era,como ainda hoje é,o grande aperitivo para uns copos de tinto ou de branco.A medida para o copo era o marquês,como hoje para a cerveja há o fino,e para a manzanilha,em Espanha,há o chato.
A minha atracção pela água incluia-se naquilo que eu pensava ser a lei da atracção universal.Sim,porque eu era atraído não só pelo rio como também por tudo quanto fazia parte da Criação Divina,do Universo.Por isso,naqueles anos em cada Primavera eu conseguia criar uma quantidade de pássaros,quase todos eles apanhados nas árvores que tinham crescido perto das margens do rio.Era para esse efeito que os garotos iam aos ninhos,para criar afinal,e não para destruir.Até porque aos pássaros,quando crescidos,era dada a liberdade.Eram rolas e pintassilgos os que melhor aprendi a alimentar,como também aprendi com eles o apego aos filhos que os pais mostravam:vendo nas gaiolas os pássaros pequenos roubados dos ninhos os pais vinham dar-lhes de comer por entre as grades.Os trabalhos da criação desviavam-me a atenção do rio e das suas águas,mas a partir de Agosto voltava-me abertamente para os fenómenos fluviais.Era então em plena altura da rega do milho,e do feijão.A água ia penetrando nas fendas do solo de onde se escapava o ar em bolhas de efervescência aparente.E eu seguia a água que a pouco e pouco ia vencendo a secura e sobrava,corria,passava por cima da parte já molhada e por fim,cansada de rolar por si própria,encontrava de novo o rio.
Atadôa chamava-se a aldeia que com o rio perfazia o centro da existência.Na altura podiam-me dar três capitais em troca por essa aldeia que eu não trocava.E talvez não troque ainda.Ou talvez muito menos troque agora.
Geográficamente a Atadôa ficava a nascente de Condeixa-a-Nova,no ângulo menor do triângulo rectângulo cujos extremos do mais pequeno lado a aldeia ocupava com Condeixa-a-Velha.Pelo menos esta era a ideia que eu tinha,porque a primeira Condeixa era a sede do Concelho e a segunda a sede da Freguesia,e o sol chegava a estas duas ao mesmo tempo,mas um bocado depois de ter passado pela Atadôa.
Em Condeixa-a-Nova compravam-se as costelas para armar aos pássaros,armadilhas para prender os ratos,e anzóis empatados em sedela e iscados com minhoca apanhavam peixe.Na maior parte dos casos ruivacos.Os mais artistas também apanhavam barbos.
A um quilómetro de Condeixa-a-Nova,terra que o Alcabideque atravessava,quase toda,sempre por debaixo do chão,e mais ou menos para Sueste,ficava Condeixa-a-Velha que por sua vez,tal como a primeira,ficaria a dois quilómetros de Atadôa.Em Condeixa-a-Velha passava o grande rival do Alcabideque,o famoso e terrível rio-dos-Mouros.Era famoso porque corria muito perto de uma antiga muralha romana,referenciada como pertencendo a Conímbriga,e era terrível por ter umas margens em falésia muito alta que faziam vertigens,e por no Inverno levar um correntâo de água espumante e furiosa.Em compensação,no Verão não levava água nenhuma,estava habitualmente seco e árido,com um leito de pedras enormes quese percebia terem sido talhadas pela terrível acção da torrente invernal e violenta(*).Naquela altura soube,e aliás eu vi,que investigadores especializados começaram a encontrar na margem norte do rio-dos-Mouros,pedrinhas coloridas e ossos romanos.Senti na verdade que alguma coisa estava então a sair do silêncio dos séculos.No entanto,na água límpida do Alcabideque havia semanas e semanas que eu colocava, num fundão,uma nassa em forma de tronco de cone cuja parte mais larga,a boca,era armada por um aro de madeira,e o fundo era esticado por dois paus iguais que partiam em «V»dos bordos do aro.Como o conjunto era mais leve do que a água,em conformidade com o que vim a saber mais tarde ser a lei de Arquimedes,coloquei-lhe duas pedras a fazer lastro.Punha a nassa no lugar ao fim do dia,e ao amanhecer,mal saltava da cama,ia pé ante pé levantar a nassa.Dias e dias seguidos,mas nada saía do silêncio das águas.Até que uma manhã aconteceu.O rio desvendou um segredo na figura de uma enorme enguia que nas convulsões para se libertar tinha já feito a nassa num oito e tinha enchido as malhas da rede de um pegajoso,viscoso e consistente garro esbranquiçado.O monstro não me assustou embora fizesse o possível por isso.Era quase da grossura do meu pulso,tinha a pele escura e a cabeça afunilada,e uma boca grande com a qual atirava botes terríveis nas paredes da sua prisão.Hoje pergunto-me se aquele ser não seria uma remanescência de algum espantalho vivo deixado ali pelos franceses na pressa da retirada,ou pelos liberais para assustar os frades.Pobre enguia.Tinha-me dado uma trabalheira,mas também uma vitória sobre o desconhecido das águas.Vitória que de resto não saboreei..Era o último dia de férias,e poucas horas depois deixava a Atadôa,as margens do Alcabideque.E com o decorrer do tempo acabei por abandonar também aquele armário dos meus sonhos,mundo inexplorado das minhas aventuras,mar da minha vontade de viver.Estou agora a mexer nele.
Junho de 1983
Nota:Só há dias soube que era Alcabideque o nome do rio da Atadôa.Naquele tempo,para toda a gente ele era,simplesmente,o rio.Mas um documento oficial que há pouco encontrei,datado de 1899,diz que é concedida licença para«construir um açude no rio denominado Alcabideque,junto ao lugar de Atadôa,freguesia e concelho de Condeixa,a fim de obter queda de água para mover um motor hidráulico para a indústriade moagem...».O requerente era o Dr.Pedro Teixeira,meu avô.
(*) A este rio os romanos davam um nome feio que não me permito reproduzir agora.

O Autor chama ao rio de Atadôa,«Alcabideque».A Câmara Municipal de Condeixa,na construção do Parque Verde,empedrou o curso de água,desde o lugar vulgarmente conhecido como “Marachão”,a jusante de Atadôa, e deu novo nome ao rio.Chamou-lhe Ribeira de Bruscos,título que nem os mais antigos recordam.As águas vindas da nascente de Alcabideque,são engrossadas no percurso por ressurgências,sendo a mais importante a do Ramo.No entanto,talvez não esteja de todo errada a designação.Uma ribeira com origem em Bruscos,corre paralelamente à estrada de Condeixa-Miranda,atravessa a via e dirige-se para Alcabideque,sendo ainda visível uma pequena ponte romana.Já perto da aldeia,no local da antiga captação de água para abastecimento do concelho,as margens dessa ribeira têm alguma profundidade,denotando um caudal razoável,mas só no inverno.Simultâneamente,os terrenos próximos são designados como «terras da Ribeira».
De qualquer forma,para quem se aventurou no mesmo mundo de Manuel do Amaral,o rio será sempre «Alcabideque»!

Condeixa,Setembro de 2012

Cândido Pereira

sexta-feira, 6 de julho de 2012



IGREJA DE SANTA CRISTINA



A LENDA 

Diz a lenda que Cristina, filha de um oficial do exército da Toscânia, se recusou a adorar os deuses pagãos e abraçou o cristianismo.Urbano,seu pai,rude inimigo dos cristãos,mandou que a chicoteassem.Foi nesse momento que começou o longo martírio de Cristina.Como não conseguiu demover a filha,Urbano ordenou o seu lançamento às chamas,que não a queimaram. Decidiu então mandar atar uma pedra de moinho ao corpo da filha e que a lançassem ao lago.A pesada mó flutuou e Cristina não pereceu.Mas seu pai, apoplexo com estes acontecimentos,morreu súbitamente.Dio,seu substituto,continuou a martirizar Cristina,sempre sem conseguir os seus intentos e só sendo atingida por inúmeras setas é que Cristina sucumbiu,tendo assim alcançado a glória eterna. A jovem virgem toscana morreu no ano 300 d.C.,passando ao Calendário Geral Romano, Martirológico, como Santa Cristina.



A VILA

Condeixa é terra de muita água.Embora não possua rios de grande caudal,está implantada nas faldas de montes de pouca altitude que fazem parte do maciço rochoso onde se situam as Serras de Sicó. Daí,através de linhas subterrâneas,a água tem ressurgimentos significativos em Alcabideque, Arrifana e em muitas fontes. A configuração geográfica da zona,de pequeno desnível,permite a lenta condução das águas em direcção à foz, criando condições para a montagem de engenhos hidráulicos de moagem de cereais ou lagares de azeite,uma industria que,durante vários séculos, se manteve altamente produtiva.Para se ter ideia,Condeixa chegou a possuir cerca de 300 moinhos e mais de 30 lagares de azeite.
Facilmente se depreende que uma das mais activas profissões era a de moleiro.A escolha de Santa Cristina com a mó presa por uma corda ao pescoço,para padroeira da terra,é perfeitamente justificada. 
No século XVI, Condeixa era um pequeno povoado quando D.Manuel I fez a tradicional peregrinação a Santiago de Compostela.Ao passar no local que alguns historiadores referem ser “um pequeno casal chamado Outeiro”,mas que já seria a actual Condeixa,a nova,pois outra existia,mais antiga e,por esse motivo, chamada Condeixa-a-Velha,alguns notáveis do lugar mostraram-lhe a igreja(seria talvez apenas uma capela)muito velha e quase em ruínas,tendo o rei ordenado que novo templo fosse edificado.Disso encarregou o Mosteiro de Santa Cruz,de Coimbra,senhor de vastos terrenos nas proximidades.A nova Igreja deve ter sido acabada de construir só em 1543,já no reinado de D.João III, por ser de 7 de Julho desse ano a carta em que Frei Braz de Braga dá ordem para que se faça “o contrato de mudança da Igreja de Côdeixa,como havia sido determinado”.

A passagem do Rei por Condeixa teve também o efeito de concessão do foral,lavrado em 1514.( Na Monografia de Condeixa,do Capitão Augusto dos Santos Conceição descreve-se assim a criação da Igreja de Condeixa-a-Nova:
Três anos depois da concessão do foral,em 2 de Novembro de 1517 Condeixa-a-Nova é erigida em curato,por escritura lavrada nas notas de Afonso Mancelos,presbítero e notário apostólico,na qual foi combinado entre o cónego da Sé de Coimbra,o prior do Sebal,Fernão Pires e Pero Afonso,procuradores dos habitantes de Condeixa-a-Nova,mas pertencentes à freguesia do Sebal:

“que os de Condeixa ouvissem missa na Igreja de Santa Cristina e recebessem nela os sacramentos,com a condição de irem ao Sebal à missa,três vezes por ano,domingo de Páscoa,dia de S.Pedro e Fieis de Deus,mas isto sem prejuízo das benesses e o que não cumprisse estas condições pagaria um arrátel de cera para a Igreja do Sebal



A IGREJA



Da primitiva Igreja de Santa Cristina,hoje pouco resta.Muitas foram as razões que motivaram sucessivos restauros a modificar-lhe a traça original.Uma descrição muito antiga refere que:”...a Igreja é toda feita em pedra de Ançã curiosamente lavrada e as paredes interiores forradas com azulejos dourados.Tem duas sacristias,ambas bem providas de ricos ornamentos e pelo corpo da Igreja muitas capelas de boa pedra e todas com os seus retábulos dourados.A capela do Santíssimo Sacramento é de muito culto e asseio e prata para o seu serviço,tem por ano de renda 250 mil réis,tendo capelão.A de Nossa Senhora do Rosário tem capelão com missa todos os domingos e dias santos.Há nesta Igreja três capelas particulares,sendo a das Almas de D.Lourenço de Almada,Governador de Angola e Mestre-Sala de D.PedroII;outra de João de Sá Pereira,fidalgo de S.Magestade e Senhor do Palácio dos Sás,outra de invocação de Jesus que tem jazigo dos Morgados Morais Botelho com carneiro bem lavrado com as suas armas e um padrão gravado na parede da parte da epístola em que declara que o Dr.Heitor de Morais Teixeira,cidadão de Coimbra,aplicara certas missas por sua alma”. 

“...a Igreja tem onze capelas,a maior dedicada a Santa Cristina.Do lado da Epístola,vêem-se cinco:a primeira,na colateral,dedicada a Nosso Senhor Jesus Cristo,onde se venera uma devota imagem de perfeita escultura.A segunda é dedicada ao Santíssimo Sacramento e de perfeita arquitectura,com meia-laranja abatida ,muito galante,com entrada em que se elevam duas colunas torneadas de galante obra, encontradas ao pé direito e sobre os capiteis descansam umas represas que fazem uma comprida arquitrave.É tudo em pedra de Ançã,como também o retábulo e o sacrário e outras imagens.A terceira é dedicada à Senhora da Piedade e é uma preciosa escultura em pedra,tamanho natural,de manto azul,com valiosa coroa de prata.A quarta é dedicada a Nossa Senhora da Conceição e a quinta a S.Sebastião.Da parte do Evangelho,a primeira é dedicada a Nossa Senhora do Rosário e tem uma imagem de grande devoção(talvez fosse colateral).A segunda é da Ordem Terceira e igual em tudo à do Santíssimo Sacramento.A terceira é das Almas.A quarta é de outra invocação e a quinta é da Pia Baptismal.Do segundo estilo há o arco da capela de S.Francisco,que foi da Ordem Terceira.” 
A descrição refere cinco capelas do lado da Epístola.Contando com a colateral,hoje dedicada a Nossa Senhora da Soledade,existem apenas mais três capelas.Sabe-se que junto à porta lateral sob o púlpito,existia outra capela,que foi entaipada durante obras antigas de restauro.Seria essa que Santos Conceição afirma ser a de Nossa Senhora da Piedade?E que foi feito da “preciosa escultura em pedra,tamanho natural,de manto azul,com valiosa coroa em prata”?Na capela do Palácio dos Lemos,existiu um imagem em pedra polícroma, da Senhora da Piedade.Quando a família Lemos vendeu a propriedade,levou consigo essa imagem, substituida pelos novos donos por uma Pietá em madeira,obra do escultor espanhol José Planes.

Não existe qualquer descrição,mas é possível que tivesse existido também uma imagem em pedra,de Santa Cristina.Na Capela de Póvoa de Pegas,segundo informação do senhor Padre Idalino Simões,pároco de Condeixa,há uma linda imagem de Santa Cristina.



Como já referi,as várias obras sofridas,modificaram bastante a estrutura geral da Igreja.O mais importante motivo relaciona-se com as invasões francesas,quando as tropas de Ney e Massena,em movimento de fuga da batalha das Linhas de Torres,acamparam uma vez mais em Condeixa e,numa política de terra queimada,incendiaram mais de quarenta prédios.A Igreja foi totalmente destruída pelo fogo.

Nas obras de restauro,efectuadas no reinado de D.Maria I ,por manifesta falta de verbas,mas também porque não houve a necessária sensibilidade artística,quase tudo foi alterado.A própria fachada foi modificada e,no frontespício,em baixo relevo foi colocado o escudo e a coroa usados no reinado de D.Maria. Encima a fachada um cruz trevada,ladeada por esculturas de pedra em forma de facho.


Desta restauração,nos fala A.Santos Conceição:
“Apesar dos estragos do incêndio e deste primeiro restauro,apresenta ainda bons espécimes de arquitectura manuelina e renascença italiana,conservando do primeiro estilo a capela-mór,quadrada,de contrafortes angulares no extremo e cobre-se de abóbada manuelina em forma estrelada,com cinco chaves de ornatos renascentistas,vendo-se uma cabeça de velho ao centro.O arco cruzeiro é do tipo coimbrão de meados de quinhentos,e nele os pés direitos e a volta são cortados de perfil em S”. 

A RESTAURAÇÃO DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Em finais do século XIX,chegou a Condeixa um homem que veio dar nova vida ao panorama cultural da vila.Ordenado padre e licenciado em direito,o Dr.João Augusto Antunes veio para esta vila como Conservador do Registo Predial.
Homem culto,reparou que algo na Igreja não estaria conforme os documentos que entretanto lera.Herdeiro de grande fortuna (seus pais eram ricos talhantes em Coimbra e possuidores de vastos terrenos na insua, cerca do local onde hoje está situado o Parque Dr.Manuel Braga)dispôs-se a restaurar a Igreja de Santa Cristina.Para tal,contratou o conhecido escultor de Coimbra, João Machado e,auxiliado nos conhecimentos de história por António Augusto Gonçalves e Isac Pinto,ordenou a restauração de altares e capelas.Ainda citando A.Santos Conceição:”Do segundo estilo há o arco da capela de S.Francisco,que foi da Ordem Terceira e mostra,entre estuques,elemento do velho arco de renascença do século XVI e duas capelas postas a descoberto,por iniciativa do padre Dr.João Antunes,que restaurou à sua custa a capela de S.Teresa e,por subscrição pública,a actual capela do Senhor dos Passos.Esta possui abóbada do século XVI,formada por dois arcos cruzados...”. 

“Fica sob a torre o baptistério,no qual se vê um arco do século XVI-XVII.A pia baptismal é obra manuelina,bem moldurada e com alguns ornatos naturalistas.A capela do Santíssimo teve arco semelhante ao da de S.Francisco,mas encontra-se cheio de estuques,segundo fórmulas clássicas,muito usadas aquando da reconstrução da Igreja.As janelas da capela-mór são do século XVIII,com cabeceiras de recorte mistilínio”.



A IGREJA DE S.CRISTINA,NA ACTUALIDADE



O que até agora referi,baseia-se em documentos registados na obra de António Augusto da Conceição,”Monografia de Condeixa-a-Nova” e nos cadernos “Subsídios para a História de Condeixa”,coordenação de Fernando de Sá Viana Rebelo e Isac Pinto.

No início da segunda metade do século XX,a Igreja apresentava-se bastante maltratada.O tecto,em abóboda e com afrescos,tinha forte infiltração de água da chuva.Nas obras então efectuadas,repararam o telhado e cobriu-se todo o tecto com paineis de madeira.Na parede norte foram abertas duas janelas em arco geminado.A nível das capelas,algumas foram restauradas e descobriu-se uma outra,do lado da epístola,que estava entaipada. Foi também retirada a grade que dividia a nave.
A última restauração,ocorreu já no final do século XX.Profunda remodelação que envolveu a substituição total do telhado,no qual foi colocada uma tela protetora contra infiltrações.Todo o soalho da nave foi retirado, substituido por tijoleiras,renovadas ou acrescentadas as pedras dos rebatos e colocado um lambril em azulejo.

Fazendo uma visita à Igreja de S.Cristina,na actualidade,podemos observar alguns pormenores curiosos que não são descritos na sua história e nem sequer chamam a atenção imediata dos visitantes.

São alguns desses pormenores que passo a descrever,advertindo que se trata apenas meros exercícios de curiosidade e como tal devem ser entendidos.



AS CURIOSIDADES




Na face lateral esquerda do exterior da igreja,há uma porta que dá acesso à capela de S.Francisco. Numa cantaria foi gravado um A,encimado por coroa de visconde. Entrando pela porta lateral do templo,encontra-se à esquerda a pia de água benta,logo seguida do arco da capela do Senhor dos Passos.Penso tratar-se do arco primitivo,restaurado por João Machado.No entanto,é intrigante notar-se à altura da cabeça de um homem,vários buracos na pedra, dando a ideia de terem sido provocados por impactos de projécteis de arma de fogo.Será que,durante a ocupação pelo exército francês, ali foi alguém fuzilado? 
Entre a capela do Senhor dos Passos e a capela de S.Francisco,há uma tribuna,descrita em “Subsídios para a História de Condeixa”desta forma:«Aos 9 dias do mês de Dezembro de 1715,na Igreja de Santa Cristina deste lugar de Condeixa-a-Nova,em mesa com o Juiz e mais oficiais da Irmandade do Santíssimo Sacramento onde todos estavam presentes,chamados pelo Andador ao som da campainha tangida como é antigo costume,pelo senhor João de Sá Pereira,foi mandado apresentar uma petição com visto de Sua Ilustríssima em que lhe concede licença para abrir uma tribuna no corpo da Igreja,consentindo o povo,na parte onde se acha o púlpito ou ficar mais decente para o púlpito ficar com mais decência e sendo necessário recorrer a dita Irmandade lhe desse licença para pôr o dito púlpito da outra parte defronte de onde estava antigamente e como acharam não resulta detrimento à Irmandade,antes dá mais utilidade para o ornato e compostura da Igreja concederam os ditos Irmãos a dita licença que pedia,do que se fez este termo que Juiz e Procurador e mais oficiais assinaram e mandam se lançasse este termo no L.º da Irmandade.Cristovão de Almeida,Juiz;João Dias,Escrivão,e Frutuoso Dias.»
A transcrição diz ainda que a tribuna pertence à casa dos Condes de Anadia.

A grade de ferro que protege a tribuna,tem um reposteiro preto em cujo centro se acha bordado um escudo de armas curioso.Muito semelhante ao emblema do Boavista Futebol Clube,apenas difere deste porque tem uma coluna no meio do quadriculado e nele não existirem as letras BFC (Boavista Futebol Clube)sob a coroa de marquês. Do mesmo lado da igreja,e logo a seguir,é a capela de S.Francisco.Esta, a encimar o arco já anteriormente descrito,tem uma pedra de armas e a coroa de conde em relevo. 




Três símbolos heráldicos diferentes numa propriedade que a Casa dos Sás,viscondes de Alverca,reivindica como sua!


No lado da Epístola, há a capela de de Santa Teresa (actualmente é dedicada a Rainha Santa Isabel),a mesma que foi mandada restaurar pelo padre Dr.João Antunes,como de resto se pode comprovar numa pedra colocada do lado de dentro. O lindo arco,executado por João Machado,tem alguns motivos lavrados.O mais interessante será uma cara em baixo relevo que parece ser a do próprio Dr.João Antunes. 

A TORRE SINEIRA

A torre tem quatro arcos sineiros,cada um com o respectivos sino, virados aos pontos cardeais.O sino de poente é o maior,datando de 1807.Vulgarmente,é conhecido como “panela de cozer batatas”porque é tangido durante a Procissão do Senhor dos Passos.O seu som grave tocado ritmicamente,dá solenidade ao acto que se recorda nessa época da Quaresma.Para dobrar o sino,é necessário mais que uma pessoa.Antigamente,levava-se o sino à posição vertical invertida(cozer batatas)e só depois se deixava tombar,numa sequência de volta completa.O sino pequeno,do lado nascente, é simultâneamente o mais antigo e data de 1778.Do lado norte,o sino é de 1879 e do lado sul,de 1825.
Tem ainda a torre um relógio mecânico/eléctrico de dois mostradores,com frentes para norte e poente.Este relógio esteve longos anos parado.Possuía um sistema eléctrico que martelava nos sinos os quartos de hora e as horas.Na impossibilidade de recuperar esse sistema e porque entretanto já tinha sido adquirido um relógio com aparelhagem electrónica reprodutora de vários sons,apenas se procedeu à reparação do maquinismo electro-mecânico do relógio.Desconheço a razão porque actualmente se encontra desactivado.A encimar a torre,um cata-vento em ferro simbolizando uma bandeira, sobreposto por cruz de ferro trevada.

Um final poético, do Cancineiro de João de Lemos:


Tange,tange,augusto bronze
Teu som alegre e festivo
Despertando ecos do peito
Faz-me ficar pensativo

Era assim que tu cantavas
Quando nasceu minha mãe
Quando a viste ser esposa
E após ter filhos também.

Choraste quando ao sepulcro...
Longe ideia tão funesta!...
Era assim que te alegravas
Todos os dias de festa.

Era assim que te folgavas
Quando fui,débil menino
Mergulhar nas santas águas
O meu corpo pequenino.

Era assim que ao Céu dizias
Acompanhando orações
-Mais um roubo a satanás
Para Deus,mais um cristão.

Vou partir...talvez não volte
Mas levem-me ecos da serra
Estes sons hei-de amar sempre
O sino da minha terra!

Se inda aqui vier morrer
Chora no meu funeral
E se for em terra alheia
Repete o alheio sinal.

Tange,tange,augusto bronze
Teu som,casado comigo
Inda na morte me agrada


Inda ali sou teu amigo!





Esta descrição da Igreja de Santa Cristina,Matriz de Condeixa,não deve ser entendida como trabalho histórico.Tem apenas o valor de tema para blogue.


NOTA: As fotografias que ilustram o texto foram gentilmente oferecidas pelo Sr.º Rui Figueiredo Saraiva. Para ele, os meus agradecimentos.
Cândido Pereira
Condeixa, Julho de 2012.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

SANTOS POPULARES

Pronto!Aí estão as festas aos  Santos Populares!
Correndo Junho,por toda a parte surgem festejos assinalando o orago,ou simplesmente folgando.
Nas grandes cidades,vem à cabeça o Santo António de Lisboa,com Marchas dos bairros mais castiços competindo na Avenida da Liberdade.O fradinho singelo toma assim ares de Rei,nesses festejos.E até fazem dele casamenteiro!
Mas também o circunspecto São João vira folião de traulitadas com o alho porro nas cabeças dos reinadios das ruas do Porto.E vai ver Braga por um canudo,cantando e bailando à boa maneira minhota.
Nas vilas e aldeias,a tradição de construir grandes fogueiras que os rapazes arrojadamente saltavam,a mostrar valentia perante as bonitas moçoilas,foi lentamente desaparecendo,na razão directa da reabilitação de poeirentas ruas em lisos tapetes de asfalto.
Em Condeixa festejava-se alegre e democraticamente a tríade de santos,sem particular predilecção.
Claro que me refiro a Condeixa, local,hoje vila,mas em tempos recuados,freguesia de Coimbra.E,como tal,pertença de D.Pedro,o "das sete partidas",que é como quem diz,o ilustre príncipe, filho de El Rei D.João I e feito Regente por morte de seu irmão D.Duarte e menoridade do sobrinho Afonso.
Desde tempos antigos a vila tem tradição de grandes romarias e festas.
António Nobre,o Poeta da Torre d'Anto dizia assim nas suas "Cartas a Manoel":
"...Vamos por aí fora
Lavar a alma.furtar beijos,velhas flores
Por esses lindos,deliciosos arredores
Que vistos uma vez,ah!Não se esquecem mais.
Torres,Condeixa,Santo António dos Olivais.
Lorvão,Cernache,Nazaré,Tentúgal,Celas!
Sítios sem par!Onde há paisagens como aquelas?
Santos lugares,onde jaz meu coração
Cada um é para mim uma recordação...
Condeixa?
Vamos ao arraial que ali há!
Sol,poeira,tanta gente!É o mesmo,vamos lá!
Olha!Estudantes dando o braço às raparigas
Arrancam-lhes do seio arfando as violetas
Aos ombros delas põem suas capas pretas...
Que deliciosas estudantes elas ficam!"

Talvez tenha sido o Poeta a inspirar muitas quadras populares,ou talvez a alma reinadia deste povo se ilustrasse na graciosidade do ambiente que inspirou também o alemão príncipe Lichonowsky quando afirmou ser Condeixa um cesto de flores,razão da escolha desse lema para brasão da vila.
Com a vinda nos finais do século XIX,do padre Dr.João Antunes,o panorama musical da vila sofreu forte impulso. Homem dado também às manifestações culturais populares ajudou,e de que forma,a desenvolver nestas gentes o espírito folgazão.Diz-se serem dele algumas quadras que antigamente se cantavam nos bailaricos.
As ruas mais propícias para que isso acontecesse,eram o Outeiro,Condeixinha e Rua Nova.Desnudadas,tendo apenas o macadame ou a calçada de seixo rolado,prestavam-se à feitura de alterosas fogueiras,onde todos os trastes serviam para as alimentar.Depois,trompetes e clarinetes das duas filarmónicas,animavam a festa que se esticava noite fora,com o "palhinhas" a dessedentar gargantas sequiosas e salgadas pelas sardinhas fumegantes.
Em Condeixinha,batia-se o vira de quatro,inventado pelo Maestro António do Zé Velho e letrado por seu filho Ramiro:

"Vamos lá dançar o vira
Ai gira que gira
Em volta do par
Que esta canção portuguesa
Tem graça e beleza
Não pode acabar
     Refrão
Bailai mas com graça
Ó moças airosas
Não sejam vaidosas
Dai voltas com siso
E vocês rapazes
Dançai com cuidado
Que um passo mal dado
Transtorna o juízo."

E marchava-se ao som de uma canção feita hino,dos mesmos autores do vira,mas ensaiada pelo Alvarito,da Quinta da Lapa:

"Cá vai a Marcha
 de Condeixinha,
 Traz a Lapinha
Traz o Travaz
Em cada canto
Palra um moinho
Que é um velhinho
Feito rapaz

Bairro das fontes E das levadas
Enamoradas
Que lhe dão vida
Onde o sol reza
Todos os dias
Avé-Marias
De despedida.
        Refrão
Se queres subir a ladeira
Que a água desce a cantar
Sem enfado nem canseira
Vai lá buscar o teu par

Na boca das raparigas
Desse bairro encantador
À mistura com cantigas
Andam promessas de amor!"

Virando para o Outeiro,era no Largo de S.Geraldo,feito mercado às terças e sextas,que se cantava também a Marcha,aqui às ordens do Senhor Ramiro,letrista das músicas do pai:

"Passa o Outeiro na graça
Da sua Marcha garrida
Leva aspecto domingueiro
E na rua quando passa
Deixa a impressão que a vida
É uma graça do Outeiro

Que a avida no Bairro lindo
Dos altos e dos recantos
Dos jardins e das Escolas
Passa cantando e sorrindo
Nos lábios e no encanto
Na graça das espanholas.
     Refrão
Tela de luz e de cor
Tem pinceladas de artista
Cada pedra é uma flor
Cada mulher um amor
Cada habitante um bairrista

O Outeiro é folião
Não há quem lhe leve a palma
Quando entoa uma canção
Canta com o coração
Canta com a própria alma!"

Mas não se pense que era pacífica a coexistência das Marchas!Não sei porquê,a rivalidade destes dois bairros era quase coisa de faca e alguidar.E os cachopos que frequentavam a Escola Primária,que o digam!Descer a ladeira daquele "feudo",era aventura castigada com pedras a tombar nem se sabia de onde!
Se em Condeixinha e no Outeiro havia festa rija,também na Rua Nova o forrobodó era grande.Com a existência de duas filarmónicas na vila,a Condeixa o que não faltavam era tocadores.Que moravam por vários sítios.
Da mesma família,chegou a ter a Rua Nova uma boa dezena de trompetes,clarinetes,saxofones,etc.
Mesmo ao cimo da rua,onde um cruzamento permitia mais espaço,armavam os garotos o trono a Santo António à beira do miradouro do Palácio.À noite,era só esperar a reunião de tocadores par que a função tivesse início.A Ti Caçaneta,com muitas décadas a parecer nem pesar-lhe no corpo miúdo,era a mais activa participante numa festa que durava até às tantas!
Para promover a reconciliação de bairros,cantou-se mais tarde a Marcha de S.João,com letra de Ramiro de Oliveira e música do seu irmão Saul de Oliveira Vaio:

"Cá vai Condeixa
Toda vestida de chita
Vai alegre e tão bonita
Ver e saltar as fogueiras
Que até S.Pedro
S.João Santo António
Para a livrar do demónio
Perdem três noites inteiras

Menina e moça
Nunca se deixou tentar
Não é cabeça no ar
Mas presa por tal encanto
Foi ao Terreiro
E embalada nas cantigas
Do peito das raparigas
Fez um trono a cada santo
        Refrão
Das grutas de Condeixinha
Ao Outeiro,com seus altares
Passa Condeixa inteirinha
Agora feita rainha
Destas festas populares

Há janelas enfeitadas
Manjericos e balões
Há alcachofras queimadas
Nas fogueiras apagadas
A desfazer corações!"

Era desta forma simples,mas autêntica,que se festejavam os Santos Populares em Condeixa!






quarta-feira, 7 de março de 2012

O CASO DO CRIME MISTERIOSO-por Cândido Pereira-Colecção "Eles comem tudo"

   A primeira pessoa a dar com "aquilo",foi a senhora Maria,cozinheira,lavadeira e criada para todo o serviço.
  Gritou horrorizada e fugiu espavorida!
  Vieram os vizinhos e veio o polícia que estava de serviço na rua.
  A porta foi aberta-perdão,já estava aberta,mas tiveram cautela,não fossem desaparecer possíveis impressões digitais.Entraram na cozinha e constataram que o susto da criada era justificado.
  Por toda a parte se via sangue.Os bancos estavam tombados,a loiça partida,uma panela de aluminio amolgada e a "arma do crime",uma faca de cozinha afiada e reluzente,manchada de sangue,no chão,junto à panela.
  O polícia,Cristiano de seu nome,influênciado por inúmeros romances da Vampiro,julgou-se nas docas de Londres,a braços com um abominável crime,quem sabe,perante um novo "Jack,o Estripador"!
  Proíbiu imediatamente que tocassem fosse no que fosse,encarregou um dos presentes de tomar conta da cena e foi telefonar ao "Chefe".
 -Está?É o Senhor Chefe?...daqui fala o Cristiano...não,não!Não é do Real Madrid.Ah!pois,mas eu até sou do Benfica!... Daqui fala o Cristiano,agente três quatro sete.O que foi?...houve aqui um crime.Onde?Na rua dos Candongueiros,Vila Joaquina...sim Chefe,eu espero!-
 Depois do telefonema,o três quatro sete voltou ao "lugar do crime".Passado algum tempo,chegou um carro cheio de polícias que começaram logo a tirar informações,impressões e conclusões.
 E a conclusão do Chefe,foi a seguinte:"Joaquina,uma senhora viúva e que vivia só,proprietária e habitante do prédio,foi assaltada por um ou mais ladrões,para lhe roubarem o "pé de meia"escondido debaixo do colchão.Provavelmente estava na cama,pois esta encontrava-se desfeita e,ao ouvir o barulho vindo da cozinha,(um vidro da janela estava partido)levantara-se e fora surpreendida pelos gatunos que a espancaram(uma tranca da porta estava também suja de sangue)e a mataram!
 -Bravo,Chefe!disse o polícia Cristiano.Mas onde está o corpo?
 -Levaram-no num carro e deitaram-no ao rio,sentenciou o Chefe!Imediatamente ordenou a dois subordinados que fossem fazer buscas no rio.Voltou a interrogar a criada chorosa.
-A minha patroa,coitadinha,era muito boazinha!Até costumava dar-me,de vez em quando,as roupas que já não queria.Eu bem as recusava,porque aquilo nem para panos de limpar o pó servia.Mas ela insistia tanto...
-Deixe-se de conversa fiada e vamos a factos,gritou o Chefe,com o seu vozeirão.
-Sim,meu senhor.Pois ontem ela estava um pouco adoentada.Ofereci-me para cá ficar,mas não aceitou.Ainda bem!
-Ainda bem?
-Sim,porque se eu cá ficasse,também morria,não era, meu senhor?
-Eu sei lá se era!...
 O interrogatório decorreu deste modo,ficando apenas apurado ter a senhora Maria sido despedida de outra casa,por roubar cinco quilos de açucar-aos bocadinhos-como ela dizia.
 O Chefe é que não foi mais em cantigas.Começou logo a desconfiar.E depois de várias contradições da mulher,chegou a uma conclusão-notável inteligência!-:O assassino era o mordomo...ou melhor,a   criada!
 Ninguém,melhor que ela sabia da existência do esconderijo do dinheiro.Quando nessa noite se ofereceu para ficar a fazer companhia à patroa,ao contrário do que disse,aceitou.Então,aproveitou a oportunidade,matou a pobre viúva,escondeu o corpo em qualquer sítio,talvez até o tenha enterrado no quintal e depois fez aquele alarido todo de manhã,como se estivesse inocente.Mas nem sequer tinha um alibi para justificar o tempo decorrido desde que supostamente saiu daquela casa,até que voltou no dia seguinte.
 E o Chefe não esperou mais nada.Toca a ir presa!Lá na esquadra se resolveria tudo e ela seria obrigada a confessar o crime.
 A senhora Maria gritou,esperneou,teve até um fanico,mas o Chefe não se condoeu.Um par de algemas e pronto,aí vão eles.
 Quando chegaram à porta,para sair,aparecer uma senhora,indignada.Trazia um braço e uma perna com grandes ligaduras e no rosto,três ou quatro cruzes de adesivos.
-Que faz esta gente toda na minha casa,senhora Maria?
 Mas a criada não respondeu.Desta vez,desmaiou de verdade!
 O Chefe exigiu à senhora que se explicasse e ficou tudo esclarecido.
 Como se sentisse doente,de manhã quando se levantou,preparou-se para matar um galo e fazer uma canjinha.O pior é que o capão era bravo e a senhora Joaquina tinha pouca prática de degoladora.Meteu a faca à goela do bicho e este,já a sangrar,saltou-lhe das mãos.A senhora Joaquina procurou agarrá-lo,mas partiu um vidro da janela e feriu-se no braço.Agarrou na tranca e só conseguiu partir a loiça.Depois,cortou-se no rosto e na perna.Saiu à pressa para ir fazer tratamento ao hospital,porque os ferimentos deitavam muito sangue.
 E assim ficou esclarecido "O caso do Crime Misterioso",como o polícia Cristiano,o três quatro sete,já intimamente lhe tinha chamado!Diga-se de passagem que não ficou lá muito satisfeito com esta solução,porque o Chefe descarregou nele toda a bílis provocada pela decepção e triste figura.
 A senhora Maria acordou do desmaio e,depois de saber a estória,abraçou-se à patroa e foram fazer a tal canjinha com o maldito galo,que foram encontrar morto,junto à capoeira.
 O polícia Cristiano jurou não voltar a ler romances da Vampiro.E um vizinho mais esperto,sentenciou:
"Nunca julgues os casos,só pela aparência"!