Crónicas de Um Tempo Passado--O Rio
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre,bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa,essa
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo,não tem pressa.
Livros são papeis pintados com tinta,
Estudar é uma coisa indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor,quando há bruma,
Esperar D.Sebastião,
Quer venha,ou não!
Grande é a poesia,a bondade,as danças...
Mas o melhor de tudo são as crianças,
Flores,música,o luar,e o sol,que peca
Só quando,em vez de criar,seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
de: Fernando Pessoa
Ler,é uma das actividades que mais tempo ocupam o meu desocupado tempo de aposentado.Leio compulsivamente,em casa,no carro,onde o tempo tenha de ser ocupado por qualquer coisa que me ocupe o espírito.
Desistindo,por várias razões,nas quais a financeira tem lugar de destaque,de comprar livros,utilizo geralmente a Biblioteca Municipal,na frequência de semana e meia,mais ou menos.
Mas também alguns amigos,conhecedores do meu “vício”,se dispõem a facultar-me livros.E foi exactamente esse facto que originou a presente crónica.
Até mim chegou um volume intitulado “Água doce,Mar salgado”.O seu autor,Manuel do Amaral,era quase um conterrâneo.Oriundo de uma família muito antiga e altamente conceituada de Condeixa,mais propriamente da aldeia de Atadôa,Alcabideque,Condeixa-a-Velha,era lá que passava as suas férias de menino.Neste livro,que escreveu em 1983,aborda no primeiro capítulo um tema que me é muito querido e familiar,pois também utilizei os mesmos sítios para as minhas brincadeiras da infância e juventude.
O Alcabideque é o nome desse primeiro capítulo,que passo a descrever na integra sem necessidade de apôr qualquer observação,tal a realidade como está descrito.
Não conheço a lei que defende os direitos de autor,mas quero deixar bem explícito que não pretendo fazer plágio.Sendo o livro pouco conhecido,apenas achei que tem interesse este seu primeiro capítulo,principalmente para quem utilizou o rio desta maneira que o Autor descreve.Para quem pretenda ler todo o volume de «Água Doce Mar Salgado»,deixo a seguinte informação:«Edição Revista “Diana”-R.da Barroca,78-r/c-1200 Lisboa.
«O ALCABIDEQUE»
“Foram decerto os olhos da minha infância que fizeram com que o rio Alcabideque não apresentasse grandes diferenças em relação ao Amazonas,nem em caudal,nem em extensão,nem em largura.A imagem que mantenho bem gravada na memória é a de então:a de um rio que embora também corresse para o mar,como o Amazonas,fazia-o ao contrário,isto é,de Leste para Oeste.Esta era,talvez,a maior diferença.Por isso ainda hoje me recuso a modificar a opinião que então formei do rio que passava ao fundo do quintal da casa onde em grande parte cresci.Mesmo quando por lá vou agora,embora raramente,e olho as suas bem modestas proporções,não me abandona,mesmo assim,e perante a realidade dos factos,aquela sensação formulada há muito tempo,de grande,de fundo,de rápido e por vezes tumultuoso quando os invernos atingiam o auge do rigor.Isto tudo me parecia bem real,palpável,verdadeiro,muito embora a distância de uma margem a outra não ultrapassasse,em média,os quatro metros bem medidos.Tão-pouco a profundidade na grande maior parte do seu curso,dava para cobrir um homem de pé,nem mesmo o seu comprimento,no troço que eu abrangia nas minhas deambulações,atingia sequer um escasso quilómetro.A verdade,no entanto,é que o Alcabideque foi,durante alguns anos,o armário dos meus sonhos,o mundo inexplorado das minhas aventuras,o mar da minha vontade de viver.E foi depois,como é ainda hoje,uma peça importante das peças usadas que guardo no baú das recordações.
Aquele rio era límpido e transparente.Tirando nos tempos de invernia em que com as enxurradas se tornava lodoso e opaco,de uma forma geral o fundo deixava-se ver,e também se podiam observar,por quem tivesse interesse e paciência,os inúmeros habitantes das águas.Porque no rio havia ruivacos,barbos e enguias.Passeavam sangessugas pouco mais pequenas que o dedo mindinho,que se agarravam à pele das pernas quando andávamos na água.À superfície,nadavam insectos pretos e pernaltas chamados alfaiates,e acima da superfície andavam sempre as libélulas de cores chamativas e asas transparentes,a que apelidávamos de tira-olhos,não sei bem porque razão.Também alguns bezouros zuniam em voos rápidos,enquanto os juncos badalavam constantemente accionados pela corrente.Accionadas pela corrente eram as rodas de tirar água,com alcatruzes e as mós do moinho e da azenha.
No inverno a água do rio era represada em diversos pontos,e atirada para as terras limítrofes que acabavam por passar a estação das chuvas alagadas e cheias de erva alta que depois era cortada para o gado comer.Era um nateiro,como o Nilo no Egipto.Nessa altura do ano eu não via os peixes,nem os alfaiates,nem os tira-olhos,nem os bezouros.Nem mesmo uns ratos enormes que,chegada a Primavera,enxameavam as margens do rio,passando de uns buracos para outros por entre as raízes dos salgueiros e dos choupos postas a nu pela erosão da água.Também as águas eram desviadas por canais e condutas tão bem feitas que o rio chegava a passar por cima dele próprio,de atravessado,já se vê,num desses milagres da ciência hidráulica que se fosse hoje,se calhar,já não me faria abrir tanto a boca de espanto como então fazia.E teria sido assim,levado por esses canais e essas condutas,que ele se dava a beber a escravos e senhores naqueles tempos recuados da ilustre Conímbriga.
Os escassos mil metros a que atrás me refiro deram algumas vezes para eu fazer viagens arriscadas na descida da corrente,com as perigosas passagens de fundões e mesmo com uma difícil transposição do açude da azenha.O retorno fazia-se à sirga,puxando penosamente a improvisada jangada,rio acima,como se eu e os meus habituais companheiros fôssemos barqueiros do Volga.Afinal,tudo era o desbravar de um eterno desconhecido,e o empenho e ânimo com que me lançava repetidamente naquela descida nunca terminada davam-me redobrada sensação de uma aventura infinda.
Desses poucos anos passados a iniciar o estreito contacto com uma natureza ainda em grande parte livre,nasceu em mim a paixão pelo campo,pela água,pelas ervas e pelas árvores,pelos pequenos e grandes animais que por toda a parte nasciam,viviam e morriam.O tempo havia de me levar depois a outras terras,a conhecer outras águas,até mesmo à imensidão do mar,mas sempre e de cada vez me lembrava do Alcabideque,das cachoeiras,dos poços,dos peixes e dos insectos que habitavam as suas águas,das aves e dos outros animais que faziam parte integrante do sistema que ele comandava.Porque um rio é tudo,e dele se forma tanta coisa que onde ele não existe não há quase nada.Aquele ali era um mundo,correndo pela várzea,deixando-se comandar,desviar,utilizar,dando de beber,molhando as raízes das plantas,oferecendo oxigéneo aos peixes,borrifando as penas dos pássaros para humedecer os ovos no choco dos ninhos,e mantendo a flutuar ervas e detritos por entre os quais as libélulas e outros insectos alados iam fazendo posturas na renovação da Primavera.E depois continuava,continuava sempre,e quem sabe se por caminhos ocultos nas profundezas dos oceanos fazia ao contrário a peregrinação das enguias que chegavam em viagem secreta do Mar dos Sargaços.A água daquele rio,transformada em água de outro rio maior, e de outro ainda,e assim até ao mar,fazia sempre o mesmo percurso que a minha imaginação fazia.Tinha muitos anos,o rio.Os franceses tinham abandonado as margens do Alcabideque na miséria,na morte e na desolação,na pilhagem da retirada.Depois da derrota de Massena na batalha da Redinha.Um pouco mais de cem anos tinham decorrido desde então.Mas daí até à revolução liberal foram os frades que voltaram a instalar as suas agriculturas aplicadas à exploração da terra.Continuaram a desenvolver os princípios da irrigação e drenagem das parcelas da várzea,e desenvolveram também naturalmente os primitivos equipamentos industriais:os moinhos,as adegas,os lagares.Depois desse tempo,e mesmo antes,a aldeia bordejava o rio no meio do seu percurso pela várzea,não tinha mais notícias do Mundo do que as que lhe eram trazidas por um ou outro homem que se deslocava à vila ou à cidade, mais próximas.Assim nunca chegaram a saber que Napoleão tinha perdido a batalha de Waterloo,e que o grande cabo de guerra que mandara para lá os franceses conseguia comunicar de Paris com Roma em apenas quatro horas,usando um sistema de semáforos contínuos.Nem tão pouco lhes passou pela cabeça que pouco mais de um século depois esse seria mais ou menos o tempo necessário a um homem para ir,de avião,de uma cidade à outra.Quando eu andava lá pela aldeia o que os homens sabiam do Mundo era o que alguns deles tinham trazido das terras de França depois da Grande Guerra.Outros não tinham de lá trazido nada porque tinham por lá ficado mortos debaixo da terra..Outros ainda nada contavam porque os gases nunca mais os deixaram pensar direito.
No tempo quente,no intervalo de uma ida aos ninhos tomava-se banho num dos marachões do rio.Todos sabiam nadar,o que hoje muito me espanta.O banho era em nu,praticava-se o mergulho em lançamento da margem,em corrida,ou saltando do ramo de uma árvore,com maior emoção.Víamos os peixes mas nem sequer fazíamos tenções de os perseguir.No entanto,na aldeia havia pescadores de rede que armavam nassas de malha estreita nas saídas dos desvios,ou nos fundões.Havia outra maneira de apanhar peixe:desviava-se o curso do rio ou contornavam-se os bordos de um pego com um muro de barro.Depois secava-se o pego com baldes e gamelas.Barbos,ruivacos e enguias apanhavam-se com cestos de vime.No fim,punha-se tudo como antes.O rio continuava a correr,o pego enchia-se,o peixe que ficava recuperava o seu ambiente.Os alfaiates,as libélulas e os bezouros voltavam aos bailados e sinfonias reflectidos no espelho da água.À tarde quando voltavam dos campos os homens metiam os carros no rio,e os bois que os puxavam dessedentavam-se sorvendo com ruído,levantando de vez em quando a cabeça,deixando escorrer a água pelos cantos da boca.Abriam ritmadamente as narinas à medida que bebiam.Sacudiam os moscardos que os picavam,com as caudas franjadas,espalhando em redor borrifos de água.Além da rega de pé que o rio proporcionava,também os homens tiravam a água do rio com cabaços de lata e cabos de madeira compridos para dornas colocadas sobre os estrados dos carros de bois.Com ela regavam as hortas,bacelos e árvores novas em pontos altos e distantes. Faziam caldas de sulfato e levavam a água para as adegas e lagares para ser utilizada nos trabalhos em que fazia falta.Nós os garotos seguíamos atrás dos carros e,no tempo quente já se vê,aproveitávamos para refrescar o corpo com a água que ia transvasando a cada tranco que os carros davam nas covas dos caminhos e das ruas.Com a água do Alcabideque apagavam-se incêndios,com a participação dos homens, mulheres e crianças da aldeia,naquilo que hoje se chamaria um trabalho colectivo.Um dia o fogo fugindo do forno da broa da casa da Senhora minha Avó pegou em carqueja e lenha armazenadas na mesma dependência e quando se deu por ele já o fumo e as labaredas que fazia,apareciam por cima do telhado de telha vã.Logo na capelinha do Santo o sino tocou a rebate e em pouco tempo um vaivém humano cobria a distância entre o rio e o local do sinistro.Baldes e cântaros passavam de mão em mão,cheios para cima,vazios para baixo.Aquilo era como os holandeses a colmatar a brecha num dique.Solidariedade humana.Convém esclarecer que o Santo era S.Sebastião com o seu tronco nu crivado de flechas,e a capelinha onde era venerado,e que guardava as sua imagem quase em tamanho natural,ficava mesmo junto ao rio,dando a frente para um largo sobranceiro à zona mais espraiada do curso de água.O largo e o lago que o rio formava,e que era onde os homens iam carregar a água e dar de beber aos bois, impunham um espaço genéricamente conhecido por «O Santo».Como se fosse um Terreiro do Paço pequenino,o «Santo» constituia um ponto de referência,um local de encontro,muito embora não fosse o Rossio da aldeia.O Rossio da aldeia era simplesmente «O Largo» e estava localizado a uns cinquenta metros contados para o sul na parpendicular do rio.Pode ser que a memória me falhe,mas julgo que o Alcabideque nascia ,como ainda nasce,metade junto à povoação do mesmo nome,e a outra metade mais acima.Uma vez corria em dois ramos,outras talvez em três,para se juntar de vez em quando.Tinha sido trabalhado pela técnica agrícola que foi surgindo no decorrer dos tempos,e apurada pelos frades das ordens que se espalharam um pouco por toda a parte.Não espanta que os romanos tenham por lá deixado os seus conhecimentos no domínio da hidráulica.O rio perdeu já a sua importância aparente.A água para abastecimento das populações está canalizada,e a energia que ela proporcionava,livre,não mais faz andar as mós dos moinhos,nem as galgas e as prensas dos lagares de azeite.
O Amazonas tem mais de um milhar de afluentes.Ao Alcabideque só conheci um,e pequeníssimo.Um regato com meio metro de largo que conduzia até ele a água de uma nascente localizada a muito curta distância,num sítio chamado o Sardão.No Saramagal o regato encontrava o rio,e nessa confluência caí eu de uma figueira abaixo com o que arranjei uma cicatriz num joelho que ainda perdura.O rio também alargava o suficiente para que as andorinhas tivessem o espaço necessário para panhar mosquitos sobre a água em voos acrobáticos.Tenho ideia que hoje já não se vêem por lá as andorinhas,nem os morcegos que nós tentávamos por vezes derrubar com canas de pontas ensebadas,declamando a lenga-lenga:«Morcego,morcego,vem à ponta desta cana que tem sebo».A mudança na cor da água do rio processava-se não só ao longo do ano como também ao longo do dia.Assim,conforme as chuvas ou o sol,ele ia do castanho barrento no topo do Inverno ao branco prateado no topo do Verão.De dia,da Primavera ao Outono,passava por vários tons de azul,reflectindo o azul do céu,ou espelhava o cinzento das núvens ou o verde mutante das folhas das árvores que o vento agitava..Na casa ao lado da da minha família vivia um Senhor muito delicado e simpático,mas de comportamento assaz bizarro.Baixo e magro,nunca o vi que não estivesse vestido de branco da cabeça aos pés,como acontecia com os chamados «brasileiros» que voltavam à pátria.Também usava chapéu de palha de abas largas.No entanto,este vizinho um tanto ou quanto fantasmagórico,nunca teria atravessado o oceano.Aquela inclinação para o branco no trajar,era mais uma faceta da sua bizarria e não a reacção característica de um qualquer emigrante regressando das terras do Amazonas às terras do Alcabideque.Embora em casas separadas,vivia paredes meias com uma Senhora,julgo que irmã,tipo dama antiga,com uma gargantilha de veludo e um permanente vestido de cerimónia.Talvez por causa desta suave presença feminina,o vizinho de branco escusou-se a autorizar o tráfego pelo troço do rio que atravessava as suas propriedades.Ao pedido limitou-se a responder:«Atrás de uma embarcação vem outra embarcação...Homens nus a pescar!».No entanto,eu e a minha tripulação conseguimos por mais que uma vez fazer aquele percurso proíbido com as cautelas de que se rodeavam os grandes exploradores que na América do Norte desbravavam os rios em território de peles-vermelhas.
Quando os salgueiros que bordeavam o rio cresciam,as nossas viagens fluviais tornavam-se mais difíceis.Os vimes quase atravessavam de uma margem à outra,e a navegação era tão complicada como nos rios da selva amazónica,guardadas as devidas proporções.Os salgueiros pareciam-me árvores do outro mundo,estranhas,com troncos atarracados,raízes que se assemelhavam a cabelos de espantalho,e uma multitude de vimes folharentas,flexíveis e fortes.Na devida altura que recordo dever ser por fins de Agosto,aparecia um homem vindo da serra que durante duas ou três semanas fazia poceiros em série.Aquela fabricação feita com uma mestria que me impressionava,dava origem a que minha atenção ficasse presa horas sem fim nos movimentos das mãos e dos dedos do homem da serra que trabalhava de joelhos,manhãs e tardes inteiras,curvado na sujeição dos vimes de salgueiro à sua forma de os domar.Era com estes poceiros que se carregava o milho,a uva,a azeitona,e com eles também se apanhava peixe ao calcão.Muito antes de o fazedor de poceiros aparecer na aldeia já muitos salgueiros estavam despidos de vimes,e estes aos molhos,postos a remolhar à mistura com os sacos de tremoço.O tremoço era,como ainda hoje é,o grande aperitivo para uns copos de tinto ou de branco.A medida para o copo era o marquês,como hoje para a cerveja há o fino,e para a manzanilha,em Espanha,há o chato.
A minha atracção pela água incluia-se naquilo que eu pensava ser a lei da atracção universal.Sim,porque eu era atraído não só pelo rio como também por tudo quanto fazia parte da Criação Divina,do Universo.Por isso,naqueles anos em cada Primavera eu conseguia criar uma quantidade de pássaros,quase todos eles apanhados nas árvores que tinham crescido perto das margens do rio.Era para esse efeito que os garotos iam aos ninhos,para criar afinal,e não para destruir.Até porque aos pássaros,quando crescidos,era dada a liberdade.Eram rolas e pintassilgos os que melhor aprendi a alimentar,como também aprendi com eles o apego aos filhos que os pais mostravam:vendo nas gaiolas os pássaros pequenos roubados dos ninhos os pais vinham dar-lhes de comer por entre as grades.Os trabalhos da criação desviavam-me a atenção do rio e das suas águas,mas a partir de Agosto voltava-me abertamente para os fenómenos fluviais.Era então em plena altura da rega do milho,e do feijão.A água ia penetrando nas fendas do solo de onde se escapava o ar em bolhas de efervescência aparente.E eu seguia a água que a pouco e pouco ia vencendo a secura e sobrava,corria,passava por cima da parte já molhada e por fim,cansada de rolar por si própria,encontrava de novo o rio.
Atadôa chamava-se a aldeia que com o rio perfazia o centro da existência.Na altura podiam-me dar três capitais em troca por essa aldeia que eu não trocava.E talvez não troque ainda.Ou talvez muito menos troque agora.
Geográficamente a Atadôa ficava a nascente de Condeixa-a-Nova,no ângulo menor do triângulo rectângulo cujos extremos do mais pequeno lado a aldeia ocupava com Condeixa-a-Velha.Pelo menos esta era a ideia que eu tinha,porque a primeira Condeixa era a sede do Concelho e a segunda a sede da Freguesia,e o sol chegava a estas duas ao mesmo tempo,mas um bocado depois de ter passado pela Atadôa.
Em Condeixa-a-Nova compravam-se as costelas para armar aos pássaros,armadilhas para prender os ratos,e anzóis empatados em sedela e iscados com minhoca apanhavam peixe.Na maior parte dos casos ruivacos.Os mais artistas também apanhavam barbos.
A um quilómetro de Condeixa-a-Nova,terra que o Alcabideque atravessava,quase toda,sempre por debaixo do chão,e mais ou menos para Sueste,ficava Condeixa-a-Velha que por sua vez,tal como a primeira,ficaria a dois quilómetros de Atadôa.Em Condeixa-a-Velha passava o grande rival do Alcabideque,o famoso e terrível rio-dos-Mouros.Era famoso porque corria muito perto de uma antiga muralha romana,referenciada como pertencendo a Conímbriga,e era terrível por ter umas margens em falésia muito alta que faziam vertigens,e por no Inverno levar um correntâo de água espumante e furiosa.Em compensação,no Verão não levava água nenhuma,estava habitualmente seco e árido,com um leito de pedras enormes quese percebia terem sido talhadas pela terrível acção da torrente invernal e violenta(*).Naquela altura soube,e aliás eu vi,que investigadores especializados começaram a encontrar na margem norte do rio-dos-Mouros,pedrinhas coloridas e ossos romanos.Senti na verdade que alguma coisa estava então a sair do silêncio dos séculos.No entanto,na água límpida do Alcabideque havia semanas e semanas que eu colocava, num fundão,uma nassa em forma de tronco de cone cuja parte mais larga,a boca,era armada por um aro de madeira,e o fundo era esticado por dois paus iguais que partiam em «V»dos bordos do aro.Como o conjunto era mais leve do que a água,em conformidade com o que vim a saber mais tarde ser a lei de Arquimedes,coloquei-lhe duas pedras a fazer lastro.Punha a nassa no lugar ao fim do dia,e ao amanhecer,mal saltava da cama,ia pé ante pé levantar a nassa.Dias e dias seguidos,mas nada saía do silêncio das águas.Até que uma manhã aconteceu.O rio desvendou um segredo na figura de uma enorme enguia que nas convulsões para se libertar tinha já feito a nassa num oito e tinha enchido as malhas da rede de um pegajoso,viscoso e consistente garro esbranquiçado.O monstro não me assustou embora fizesse o possível por isso.Era quase da grossura do meu pulso,tinha a pele escura e a cabeça afunilada,e uma boca grande com a qual atirava botes terríveis nas paredes da sua prisão.Hoje pergunto-me se aquele ser não seria uma remanescência de algum espantalho vivo deixado ali pelos franceses na pressa da retirada,ou pelos liberais para assustar os frades.Pobre enguia.Tinha-me dado uma trabalheira,mas também uma vitória sobre o desconhecido das águas.Vitória que de resto não saboreei..Era o último dia de férias,e poucas horas depois deixava a Atadôa,as margens do Alcabideque.E com o decorrer do tempo acabei por abandonar também aquele armário dos meus sonhos,mundo inexplorado das minhas aventuras,mar da minha vontade de viver.Estou agora a mexer nele.
Junho de 1983
Nota:Só há dias soube que era Alcabideque o nome do rio da Atadôa.Naquele tempo,para toda a gente ele era,simplesmente,o rio.Mas um documento oficial que há pouco encontrei,datado de 1899,diz que é concedida licença para«construir um açude no rio denominado Alcabideque,junto ao lugar de Atadôa,freguesia e concelho de Condeixa,a fim de obter queda de água para mover um motor hidráulico para a indústriade moagem...».O requerente era o Dr.Pedro Teixeira,meu avô.
(*) A este rio os romanos davam um nome feio que não me permito reproduzir agora.
O Autor chama ao rio de Atadôa,«Alcabideque».A Câmara Municipal de Condeixa,na construção do Parque Verde,empedrou o curso de água,desde o lugar vulgarmente conhecido como “Marachão”,a jusante de Atadôa, e deu novo nome ao rio.Chamou-lhe Ribeira de Bruscos,título que nem os mais antigos recordam.As águas vindas da nascente de Alcabideque,são engrossadas no percurso por ressurgências,sendo a mais importante a do Ramo.No entanto,talvez não esteja de todo errada a designação.Uma ribeira com origem em Bruscos,corre paralelamente à estrada de Condeixa-Miranda,atravessa a via e dirige-se para Alcabideque,sendo ainda visível uma pequena ponte romana.Já perto da aldeia,no local da antiga captação de água para abastecimento do concelho,as margens dessa ribeira têm alguma profundidade,denotando um caudal razoável,mas só no inverno.Simultâneamente,os terrenos próximos são designados como «terras da Ribeira».
De qualquer forma,para quem se aventurou no mesmo mundo de Manuel do Amaral,o rio será sempre «Alcabideque»!
Condeixa,Setembro de 2012
Cândido Pereira