sexta-feira, 9 de outubro de 2009

FIGURAS TÍPICAS DE CONDEIXA

Não se pode falar de Condeixa, sem referir as suas figuras típicas. E foram tantas!
A vila, no meu tempo(meados do século XX),tinha fama culinária por três produtos culinários locais,a saber: Escarpiadas;Licor de leite e Cabrito assado. Não raro, deslocavam-se a Condeixa pessoas de outros pontos do país, a fim de saborear estes deliciosos pitéus. Especialmente por ocasião das Festas do Senhor dos Passos, todos os estabelecimentos de comes e bebes da terra fervilhavam de clientes.
E um desses estabelecimentos era o do Zé David, misto de taberna,casa de pasto e mercearia,localizado em frente ao antigo edifício da Câmara.A Ti Celeste,esposa deste comerciante,tinha mãos de ouro para a confecção de cozinhados e a sua especialidade era o cabrito assado. Foi célebre o seu "Cabrito assado com batatinhas porra".
Parece estranha esta designação, mas eu explico: A Ti Celeste fazia sempre e bem o cabrito assado com batatas e grelos.Um verdadeiro manjar do céu! Mulher de genica,quando a clientela era muita , tornava-se brusca.Os clientes,para a ouvir a disparatar,perguntávam-lhe:"Ti Celeste,como é hoje o cabrito?".Ela, agastada com a desnecessária pergunta, respondia"Com batatas,porra!" E assim ficou conhecida e famosa a verdadeira joia da cozinha portuguesa,confeccionada pela Ti Celeste do Zé David,"Cabrito assado com batas porra"!
Esta senhora era sem dúvida uma das figuras da terra. Mas outras existiam.
O João Linhas era aguadeiro,no tempo em que não havia água canalizada.Um dia,João Alcobaça contratou-o para plantar batatas,ou melhor,para meter umas batatas à terra,como certamente lhe terá dito.O João Linhas,malandro como era,levou as palavras à letra e enterrou as batatas todas numa só cova.
O Albino era um cego que vivia na Barreira. Exímio tocador dos sinos da Igreja de Santa Cristina,dava gosto ouvir um repique de casamento ou baptizado e ninguém jamais operou de forma tão magnífica e sentida um dobre de finados.
Embora cego,o Albino deveria ter possibilidade de vislumbrar alguma luz através das pálpebras cerradas,porque quando lhe perguntavam as horas,"olhava"para o céu,colocava a mão abanando sobre os olhos e,invariávelmente,dizia a hora correcta. Ao lado do Café Conímbriga era a loja do Sr. Figueiredo, estabelecimento onde se vendia de tudo,desde jornais até um cálicezinho de bagaço.Já no fim da longa vida,o reumatismo impedia este comerciante de se deslocar.Como era muito engenhoso,inclusivamente reparava relógios,engendrou um complicado sistema de arames e canas da índia,que lhe permitia entregar os jornais sem sair da sua cadeira. Conhecendo o Albino,como toda a gente, a habilidade do senhor Figueiredo,foi fácil convencerem o cego que o velhote também fazia gaiolas para pássaros.Então,o pobre Albino ingenuamente foi à loja e pediu:"Senhor Figueiredo,faça-me uma gaiola,que sou céguinho!"Já se imagina a reacção do senhor Figueiredo,perante este traiçoeiro trocadilho da expressão!
Em frente à Feira das Galinhas,onde hoje é o jardim da Câmara,existiu uma relojoaria/ourivesaria de um senhor também habilidoso,mas excêntrico. Certa vez,construiu duas asas de madeira e tela,disposto a desafiar as leis da gravidade. Foi para uma janela das traseiras da casa,pediu à esposa que lhe levasse o farnel aos Fornos,pois ia voar até lá e lançou-se no espaço,batendo frenéticamente as asas.Infelizmente, ao contrário de Ícaro,nem sequer correu o risco de alcançar o Sol.Mal saltou da janela,estatelou-se no solo,decerto com algumas equimoses mais ou menos graves.
No Outeiro viveu também uma outra figura excêntrica.João da Costa,por alcunha"João Cavaca",era sapateiro de profissão.Certa vez foi atropelado e ficou ligeiramente afectado psicológicamente.Era um homem alto e magro que andava sempre muito direito e ar marcial.De repente parava,levantava os braços e estalava os dedos,dobrando simultaneamente uma das pernas.Depois,seguia imperturbável o seu caminho. Um dia entrou numa loja de ferragens que havia entre a Igreja e o actual edifício da Câmara,estabelecimento da propriedade da familia Pires Machado.À proprietária,D.ª Conceição Pires, que estava ao balcão, ele disse:
-Ó Conceição,dê-me cinco tostões de pregos.
A senhora respondeu:
-Ó Conceição não!Dobre a lingua!
Retorquiu ele:
-Se calhar,quer que a trate por excelência?
Ela respondeu:
- Não sou,mas podia ser!
Ele,fazendo o tal gesto caracteristico e,desinteressando-se dos pregos,respondeu:
-Ora!Também eu...também eu!
De outra vez,um cliente foi à sua oficina buscar um par de sapatos que tinha a reparar. Como não levava dinheiro suficiente para pagar o conserto,disse que pagaria metade e depois iria pagar o resto. Ele entregou apenas um sapato.Perante o espanto do freguês,disse:"Paga só metade?Pois quando pagar o resto,leva o outro sapato!"
O Miguel Atílio,correeiro de profissão,aliás muito habilidoso,era no entanto fiel devoto do deus Baco.Infelizmente para quem necessitava dos seus serviços,e fundamentalmente para ele próprio,passava mais tempo a cozer as bebedeiras que a coser as correias de cabedal.Mas para além disso,era uma figura bastante simpática.Dava a ideia que possuia uma mentalidade adolescente,com toda a irreverência e irresponsabilidade da juventude.Protagonista de vários episódios,conto um que se passou num dia de finados.
O local do cemitério era nesse tempo bastante ermo e escuro.Naquela noite porém brilhava com as luzes de imensas velas,sobre campas e jazigos.No entanto,algumas pobres sepulturas mantinham-se tristes e abandonadas,sem que alguém tivesse a caridade de lhes colocar pelo menos uma flor.Porquê? Não seriam os tristes despojos humanos abrigados nesses pedaços de terra,tão dignos como os restantes,do culto dos vivos? Para esta questão,encontrou o Miguel Atílio a resposta.Retirou algumas das velas e flores que estavam em profusão só em determinadas campas e,reverentemente,colocou-as nas que nada tinham.
Após esta distribuição equitativa,verdadeiro acto de justiça,foi celebrar com considerável quantidade de álcool,indiferente à opinião dos espíritos conservadores que consideraram o seu acto um sacrilégio.
Muitas vezes juntava também um grupo de crianças com o qual ia buscar canas para fazer arcos festivos.Depois percorriam a vila,gritando como se fossem alegre e barulhenta charanga.
É claro que espírito tão livre e indiferente as normas das pessoas sisudas,teria de forçosamente sofrer a incompreensão das autoridades ríspidas.
Junto às grades da cadeia,lá estavam então as suas amigas dilectas,as crianças,conversando alegremente e gizando novas aventuras!
( excerto do livro"Crónicas de um tempo passado",de Cãndido Pereira.)
continua