sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

LUGARES DE CONDEIXA-O OUTEIRO(1ª parte)

…que a vida no bairro lindo
Dos altos e dos recantos
Dos jardins e das Escolas
Passa cantando e sorrindo,
Nos lábios e no encanto
Na graça das “espanholas”.

- Marcha do Outeiro, letra de Ramiro de Oliveira e música de António de Oliveira, composta para abrilhantar as Festas de Condeixa, em 1950, quando elas se realizavam em Junho e não a 24 de Julho, uma data inventada há relativamente pouco tempo.
O Outeiro é assim, e muito mais. Embora se possa pensar que o bairro está limitado à Rua Dr. Simão da Cunha, ele começa ainda na Feira das Galinhas (Jardim da Câmara), espraia-se no Largo de S. Geraldo, mira agora, desconsolado, o nicho vazio, sobe ao Alto, desce até à Fonte e visita o Paraíso, trepa as escadas até à Costa e dirige-se ao Hospício, deixando para trás o Hospital que já não é, nem sequer Centro de Saúde (o que era a unidade hospitalar, senão um centro onde toda a gente tratava a saúde?), e a velha Escola Conde de Ferreira, onde o professor Galo (João Correia) mandava os alunos com aproveitamento dar reguadas nos colegas menos estudiosos, o professor Mateus mordia os lábios quando castigava com a fina cana-da-índia e o professor Pita, rigoroso nos antigos (e cruéis) métodos pedagógicos, distribuía lambadas a torto e a direito.
Ao cimo, no bico da Quinta, ainda está a fonte que há muito secou e onde, segundo escritos antigos, as moçoilas namoriscavam enquanto a cantarinha enchia (não era essa uma das funções, quiçá a mais agradável, de todas as fontes?)
O Outeiro está na génese de Condeixa, a nova, porque a outra é muito mais idosa, avó talvez.
Quando Conímbriga foi assolada pelas hordas bárbaras e, posteriormente, ocupada pelos muçulmanos do Almançor, os pobres indígenas foram sobrevivendo refugiados nas grutas e buracos locais. Depois, vieram as tropas de Fernando Magno e do seu valido, D. Sesnando, Conde de Tentugal, ocupar o território. Desse tempo, reza um documento guardado no Mosteiro do Lorvão, indicando uma “Villa Cova Condesa Donna Onega”que, presumo, estaria localizada numa área actualmente ocupada pelas Piscinas Municipais, Pavilhão Desportivo, quartel da G.N.R. e mais casario, tendo a nascente o promontório do Hospício e a norte as velhas casas da Costa.
Estas terras, muito produtivas, teriam resultado da sedimentação de primitiva lagoa, como é possível vislumbrar no estrato geológico do corte efectuado quando da abertura da via IC3. (curva da ferradura, ao pé do viaduto). As várias camadas, separadas por sedimentação mais escura (lodo) e pedras de leito, são perfeitamente visíveis. Já debaixo do viaduto, o areal da margem.
O nome “Donna Onega” pressupõe ascendência galega, (há uma neta de Vímara Peres, o responsável pela reconquista do território entre Douro Minho e fundador de Guimarães, com o nome Onega Lucides. Será a mesma?) De notar que no local existem várias referências curiosas: “Pinhal de Espanha” (em frente à Junta de freguesia de Condeixa-a-Velha); “Vala da Galega” e, mais concretamente ao Outeiro, cuja designação de Espanha sempre lhe foi atribuída.
No início do século XVI, quando o rei D. Manuel efectuou a peregrinação a Compostela, passou por aqui. Acerca dessa passagem, diz o Padre António Carvalho da Costa: “…o lugar de Condeixa-a-Nova, não sendo mais que um casal chamado Outeiro…” (Santos Conceição, Condeixa-a-Nova). Tudo provas da ancestralidade do Outeiro
Mas estas considerações, só superficialmente e apenas como curiosidade têm lugar nesta crónica. Na realidade, interessa-me mais escrever sobre o bairro de há mais de meio século, com descrição de locais, pessoas e episódios, levando os meus contemporâneos a recordar e os mais novos a conhecer, aquele característico local.
O Outeiro, repito, começa no largo da Câmara, a antiga Feira das Galinhas. A propósito, não consigo compreender a causa da atribuição deste nome. Tanto quanto recordo, realizava-se ali uma das quatro feiras que compunham o tradicional mercado de Condeixa (os três outros locais eram: Praça da República; Feira da Sardinha, (mercado municipal na Avenida, onde se vendia peixe e carne, no local do actual Quartel dos Bombeiros) e Largo de S. Geraldo), mas onde agora é o jardim da Câmara, não se vendiam exclusivamente galináceos. Mais, a maior percentagem de coisas à venda, era de barro vermelho: cantarinhas, caçoilas, etc.
Em meados do século XX, além dos bissemanais mercados, no pequeno terreiro costumavam exibir-se trupes de saltimbancos, acrobatas itinerantes que realizavam espectáculos, fazendo no fim o peditório ao público presente.
Já na estrada, na parte de baixo do monumento aos Mortos da Grande Guerra, há uma loja de ferragens que foi, em tempos, a residência e oficina de José Maria Ventura, latoeiro e aferidor municipal. Dotado de capacidades artísticas verdadeiramente admiráveis, foi durante muitos anos amador de teatro, participando em várias peças e revistas musicais. A sua presença em palco e a graça inexcedível, transformavam qualquer vulgar comédia, em êxito. Na década de 1950, o Clube de Condeixa apresentou em cena a alta-comédia “O Conde Barão”, de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, encenada por João Pimentel das Neves. Depois da exibição em Condeixa, o grupo deslocou-se à Marinha Grande, onde representou no Teatro Stefano. Desse espectáculo, disseram na altura que José Ventura era comparável ao grande actor profissional, Chaby Pinheiro, protagonista na apresentação nacional da peça, no Teatro Politeama, em 1918.
Tendo muita consideração pela capacidade teatral e, fundamentalmente, pela personalidade de José Ventura, em 1980, quando era encenador na Casa do Povo, propus em Assembleia Geral a atribuição do nome “Tejove”, para o grupo cénico. Correspondia a “Teatro José Ventura”, a homenagem devida a quem tanto fez pelo teatro amador em Condeixa. A proposta foi aceite e lançada em acta. José Ventura tinha um filho, com o mesmo nome, artista plástico amador de fina sensibilidade, ao qual se devem algumas telas de belas imagens da Condeixa antiga.
Na casa seguinte, esteve instalada a Casa do Povo, desde a fundação, em Julho de 1940, por iniciativa do Comandante Fortunato Pires da Rocha, até à inauguração, em Fevereiro de 1956, das instalações actuais. O 1º andar tinha um salão onde se jogava pingue-pongue e damas ou dominó. Numa vila demasiado provinciana, sem locais de ocupação dos tempos livres (tempos livres? Algumas horas à noite, poucas, porque no dia seguinte era dia de trabalho!), a Casa do Povo oferecia o espaço público possível para entretenimento da juventude. Além dos jogos porém, a oferta literária resumia-se à leitura da revista Flama e do jornal Amigo do Povo, publicações afectas ao estado novo.
Na frontaria, foram mandadas pintar a vermelho, (perdão, encarnado, porque a palavra vermelho era tabu, não fosse a designação da cor motivar confusões com os “abomináveis comunistas!), as palavras Casa do Povo, em semi-círculo. O pintor incumbido do trabalho, da parte da manhã apenas pintou Casa do P, deixando para depois de almoço o resto do trabalho. Condeixa, tradicionalmente sempre disposta a atribuir alcunhas, imediatamente apelidou, não só o pintor, como toda a família, de “os Pês”.
Virada a curva ascendente, logo surgia a oficina de bicicletas do Augusto Braga. Naquele tempo, a bicicleta era um veículo bastante utilizado. Em Condeixa, quase se podia contar pelos dedos das mãos o número de automóveis existentes e, mesmo assim, incluindo as camionetas de carga! Por isso, andar de bicicleta, ao contrário de agora, não era simplesmente um meio de fazer exercício físico, mas forma de “tratar da vida”. Nesse contexto, uma oficina onde se pudesse mandar reparar correntes partidas, furos nas câmaras ou raios deslocados, assumia grande importância. Além das reparações, também era possível alugar os velocípedes.
Os garotos de então, ao contrário de agora, que os papás, ainda as crianças são pequeninas, logo tratam de comprar bicicletas com rodas suplementares, trocando estas à medida do crescimento do fedelho, se queriam dar uma voltinha, reuniam-se em grupos e alugavam o veículo. Se não estou demasiado esquecido, esse aluguer custava dez tostões à hora. Mas não se contentavam com o limite de tempo por “tão alto preço”. Então, a hora durava mais que os normais sessenta minutos. É claro que a entrega já não era feita pelo alugador! Entregava-se a bicicleta a um garoto mais novo, com a incumbência de a ir levar. O pior é que esse miúdo também fazia uso do “prémio” colocado nas suas mãos. Finalmente, quando o dono da oficina recebia o velocípede, já tinham passado para aí algumas duas horas.
Ao lado da oficina, morava a senhora Assunção, parteira que, a par da senhora Cecília, de Condeixinha, tinha a “obrigação” de aparar todas as crianças do seu bairro, e não só. Porém, um facto curioso sucedia com esta “aparadeira”: tinha um negócio de venda de caixões. Assim, recebia para a vida um novo ser, mas também se encarregava de prestar os serviços para a última viagem.
Junto à sua casa, uma alfaiataria, coisa bastante comum numa vila onde abundavam os barbeiros, sapateiros e alfaiates.
Naquele tempo, a miséria não se manifestava apenas na falta de alimentos. O dinheiro era tão escasso, que também não chegava para comprar roupas. O alfaiate que refiro, quando jovem, era bem-apessoado, quer dizer, tinha bonita figura. Naturalmente, era vaidoso e se, para a roupa, como profissional podia dar um jeito, não sabia fazer as peúgas. Dizia-se que, certa vez descobriram que usava apenas os canos das meias, porque o resto já se tinha gasto há bastante tempo.
Em frente, no largo agora justamente atribuído ao artista plástico condeixense, Manuel Filipe, existia um barracão onde o proprietário, negociante de galinhas, guardava os apetrechos do seu mister. Possuía uma velha carrinha, a “cacharra”, onde transportava as grades com os galináceos que ia vender nas feiras da zona. Quando regressava, esquecia-se que a altura das grades ultrapassava a cimeira do portão. O barulho dos aparatos a cair, anunciava a sua chegada.
Ao lado, o edifício da cadeia. Pertenceu a D. Maria de Vilhena, que o doou ao Convento de S. Marcos. Mais tarde foi adquirido pelo município, tendo sido a primeira sede própria da Câmara. No rés-do-chão/cave, foi instalada a cadeia municipal. O calabouço, de janelas grossas em ferro, tinha apenas duas ou três celas. Em fins da década de 1960, os prisioneiros serraram facilmente as grades e evadiram-se. Este prédio fechava a curva da estrada de acesso à Lousã e a Tomar. No local, naturalmente bastante perigoso, o acidente mais grave deu-se quando uma camioneta desgovernada colidiu com dois prédios, destruindo-lhes as fachadas, mas felizmente sem danos pessoais. Este prédio foi demolido, com o fim de alargar a curva, a única justificação para destruir tão valioso património.
A partir daqui é que começa verdadeiramente o bairro do Outeiro.
(fim da 1ª parte)