O título é enganoso, pois presume que os condeixenses tinham hábitos higiénicos diferentes de toda a gente, o que não é verdade. Ainda nos anos quarenta do século XX, vi em Lisboa os moradores de algumas ruas (pelo menos as menos expostas) lançarem das janelas embrulhos de jornais que se estatelavam na calçada espalhando o conteúdo por todo o lado, e que aí ficava até à passagem do varredor. Se recuarmos um pouco mais na época, era comum o grito “Aí vai áuga”, aviso de quem imediatamente atirava para a via pública o líquido emporcalhado.
Em Condeixa, terra de muitos ribeiros, nada melhor para transportar a porcaria produzida diáriamente. E quando falo em porcaria, refiro-me quase exclusivamente à que a função digestiva considerava inútil ao bom funcionamento do organismo. Porque a outra era aproveitada, quer para alimentar porcos e galinhas, quer para aumentar o monte de estrume para adubar as terras. Aliás, todos os detritos organicos faziam parte dessa forma de obter nutrientes para o solo arável. Na falta de retretes (eufemisticamente designadas agora “casas de banho”), o depósito dos penicos caseiros juntava-se ao monte onde já estava o resultado da limpesa das capoeiras e coelheiras que todas as casas possuiam. E, se nas habitações do povo assim acontecia, nas casas ricas só diferia porque o trabalho era executado pelos serviçais. O resultado, no fim de contas era o mesmo. Conheci bastante bem três dos palácios da vila. Em todos, as casas de banho resultaram da adaptação de antigos quartos ou dependências com dimensões adequadas à nova função. Quer dizer, nenhuma dessas moradas senhoriais foi construida privilegiando instalações sanitárias. No Palácio dos Figueiredos, actuais Paços do Concelho, ao fundo do corredor da ala sul existia um pequeno compartimento onde, no meio de um estrado de madeira havia um buraco ligado directamente às cavalariças e de onde eram vertidos os detritos que caiam mesmo em cima do monte de estrume. Mais tarde, já no tempo de Artur Barreto, este aproveitou um quarto da mesma ala sul e adaptou-o a casa de banho, mas expressamente dedicado a esta função. O tal compartimento sobre as cavalariças continuou a ser usado, agora ligado ao cano que conduzia a uma linha de água, porque as cavalariças deixaram de ter essa função e passaram a... armazém de mercearias!
É curiosa a maneira como um subdelegado de saúde do século dezanove propunha a solução do problema sanitário. A obra “Subsídios para a História de Condeixa”, de Fernando Rebelo e Isac Pinto, conta-nos como foi, numa carta enviada ao Vice-Presidente da Câmara, Wenceslau Martins de Carvalho, em 13 de Agosto de 1898, pelo Subdelegado de Saúde de Condeixa:
“O assunto para que V. Exª. chama a minha atenção, é de tal modo importante e presta-se a tão longas considerações que mal cabiam elas nos limites de uma simples resposta a ofício. É muito para lastimar que Condeixa, a qual pelas suas condições topográficas poderia ser uma população modelo com relação à sua limpeza e à sua higiene, esteja desde há muito tanto e tão descurada nesse sentido, parecendo até ter sido votada a um ostracismo completo. Condeixa, disposta num declive em forma triangular, apresentando a base desse triângulo na sua parte superior, pela qual poderia entrar a água a jorros por diferentes pontos e percorrer toda a povoação, vindo sair no seu ponto inferior onde está colocado o vértice do triângulo, encontraria em si todas as condições de lavagem perfeita e de limpeza completa, se fosse envolvida por um sistema de canos de esgoto por onde a água pudesse circular à vontade. Realizada essa rede de esgotos, o canto de saida de todos os detritos não podia deixar de ser o cano construido na Rua da Assunção que faz parte da estrada municipal de Condeixa ao Casal da Légua, a desaguar ao fundo da ladeira do Amparo e, como principio de um sistema de esgotos que a Exª Câmara diz tenciona levar a efeito, não pode deixar de ter uma importância e vantagens incontestáveis para a higiene desta povoação. Dos três pontos diferentes em que poderia ter lugar a abertura de saida deste cano- Vala da Lapa, Regueira Pública de Condeixinha e Várzea de Condeixinha- é este o único ponto possível perante a higiene em que pode ter lugar esse desaguamento. A Vala da Lapa, recebendo já no seu percurso bastantes detritos que, entrando em decomposição, vão encher de miasmas todo o bairro da Lapa e Travaz, não pode nem deve receber a mais os que lhe viriam do cano de receptáculo de toda a povoação; e nem este fim pode ser preenchido pela Regueira Pública de Condeixinha que, atravessando a descoberto toda a comprida rua de Condeixinha iria mimosear os habitantes de toda aquela àrea, com um extenso e comprido foco de infecção; a Varzea de Condeixinha, extenso campo, longe da povoação e separada dela por lindos e magníficos pomares, seria o único ponto admissível para a boca de saida dum cano de esgoto geral e aquele que a higiene aconselharia, rejeitando por completo os outros dois. Sobre isso, repito, muito haveria a dizer, mas termino aqui as minhas considerações, concuindo que é toda a vantagem, debaixo do ponto de vista higiénico, o cano feito com o princípio dum sistema de esgoto e que a boca de saida, colocada ao fundo da ladeira do Amparo desaguando nos campos da Varzea, tem uma supremacia higiénica evidente sobre os outros dois citados sítios. Mas quando o cano em questão não fosse suficiente para dar saida às águas de lavagem, ou a qualquer enxurrada intempestiva, fácil seria abrir canos de derivação para aqueles pontos, ampliando assim a rede de esgotos e, bem mereceria do município a vereação que levasse a efeito obra tão útil e humanitária”.
Nesta interessante carta, há vários e importantes pontos a considerar. Em primeiro lugar, a constatação daquilo que já referi, a intenção de utilizar as linhas de água como principal condutor dos detritos de toda a vila, o que veio a acontecer exactamente como o profissional da saúde propunha. Muitos anos passaram com esse sistema de drenagem. Foi já no final do século vinte que Condeixa instalou a central de saneamento e estação de tratamento de esgotos.
Segundo ponto, a Vala da Lapa é a linha de água que deriva do Caldeirão, junto à Quinta de S. Tomé, passa pela Rua da Água, Rio do Cais e segue pela vertente sudoeste de Condeixinha, Pelomes, Lapa, Entre-Moinhos, Travaz e as terras planas do Espírito Santo, Ribeira, etc. Imagine-se a quantidade de casas abrangidas por este ribeiro! Todas a despejar continuamente lixo para a água! Não admira, pois que, já no século dezanove o responsável pela saúde pública entendesse que “vão encher de miasmas...”.
Em terceiro lugar, a solução preconizada por esse responsável, de considerar a Varzea de Condeixinha, com “os seus agradáveis e magníficos pomares”, ponto de recepção dos despejos de parte importante da vila é, no mínimo, curiosa.
Mas o plano foi adiante e, durante um século, constituiu a drenagem possível da terra. A Varzea e Condeixinha tiveram de aceitar o esterco que outros faziam. O “extenso campo, longe da povoação”, cada vez foi ficando mais perto, obrigando os pobres moradores a suportar o “foco de infecção” desviado do Travaz.
Se em sistema de esgotos a Condeixa de outros tempos era assim, a higiene corporal condizia com a situação. A lavagem corporal estava restringida ao “banho semanal”, que era efectuado numa larga bacia de zinco onde a água, trazida a custo de uma fonte ou poço, servia para lavar quase uma família inteira. Primeiro cada familiar lavava o tronco e a cabeça, e só depois desta fase se passava à seguinte, a lavagem do resto do corpo. Isto, se as condições da água o permitissem!
Estes factos são tão surrealistas, que parecem pura invenção. Porém, compreenda-se que o conceito de higiene era muito diferente de agora.
Já noutro local do meu blogue fiz referência ao Tanque do Galaitas, no Paço, como local privilegiado para a higiene dos homens e rapazes de Condeixa, até meados do século XX. A inauguração do sistema de abastecimento domiciliario de água, em 1950, veio terminar com as práticas colectivas de banho. Agora sim, as casas dispunham de água limpa a correr das torneiras. Pouco a pouco, melhoraram os hábitos, felizmente. As habitações foram adquirindo espaços destinados à higiene.
Porém, a rede esgotos continuava a “desaguar” nos ribeiros. O aumento de utilização da água e o progressivo abandono da recolha de residuos para estrumar as terras, motivou o aparecimento das famigeradas fossas sépticas, o que contribuiu para contaminar as linhas subterrâneas de água. As fontes deixaram de poder matar a sede a quem passa, porque as suas águas ficaram impróprias para consumo. E se eram agradáveis as fontes de Condeixa!De água fresquíssima, mesmo em tempo de prolongado estio, poucas foram as que secaram. Condeixa tinha várias fontes, cada uma com as suas próprias caracteristicas. Em Condeixinha curiosamente a Fonte das Bicaspossui apenas uma saída de água. Num outro local do meu blogue “Lugares de Condeixa-Condeixinha” descrevo as razões que motivaram a mudança do local da fonte, então com três bicas, para onde agora se encontra e a remodelação a que foi sujeita em 1930.
Na Faia (R.D.Elsa Franco Sotto Mayor) existiu uma fonte, inexplicávelmente designada Fonte da Caraça
. Localizada em frente às instalações da Casa do Povo, ficava em plano inferior ao nível da estrada. Possuia um lindo painel de azulejos que foi retirado quando a fonte foi desactivada e não se sabe onde foi parar.
No Outeiro, descendo para as terras do Paraíso, sem qualquer adorno, surge um cano a sair do muro. É a Fonte do Outeiro
com a água a ser aproveitada para o lavadouro, escorrendo depois em regueira abençoada a alimentar as pequenas, mas produtivas hortas. Daí, certamente, a designação de Paraíso.
Já a fugir da vila, no meio-termo a caminho da Barreira, a Fonte dos Amores
, lindo local outrora rodeado de altas nogueiras que lhe conferiam o estatuto de espaço fresco e agradável. Possui ao lado um tanque de pedra que recebe a água das bicas e servia para dessedentar os animais vindos da Feira dos Quatro, na Barreira. Por ser local recatado, era também preferido pelas moças no encontro com os namorados.
Longe também, nas ricas terras das Fontaínhas, uma gruta de estalagtites orlada de avencas, a Fonte da Costa, com a água muito fresca a brotar do seio de areia branca. E, mais adiante, ao fundo da ladeira da capelinha da Senhora da Lapa, a Fonte da Lapa
com o seu belo painel de azulejos.
Eram as Fontes de Condeixa, tantas vezes citadas pelos poetas locais. Ramiro de Oliveira e Álvaro Pedro Augusto escreveram uma letra para canção, afinal uma ode às lindas fontes:
Se vais à fonte sozinha
Olhas tanto para trás
Que quebras a cantarinha
A pensar no teu rapaz
Se quebrar o meu asado
Santo António vou jurá-lo
A pensar no namorado
É capaz de consertá-lo!
Não corras cachopa
Que eu te quero falar
Co’a pressa até podes
O asado quebrar
Olha lá não quebre
Ora diz-me então
Palavras que alegrem
O meu coração!
Meu amor fazias bem
Se me desses, uns golinhos.
Na boca como também
Assim fazem os pombinhos!
Não corras cachopa...
Condeixa, Junho de 2011.
Cândido Pereira