terça-feira, 19 de abril de 2011

TEMPO DE RECORDAR

A palavra tempo é muito curiosa. Da forma como é usada, depende o sentido a entender. Se nos queremos referir à meteorologia, dizemos que o tempo está bom para a agricultura, porque choveu o tempo suficiente para regar os campos, mas está mau para quem tinha umas férias planeadas à beira-mar e não teve tempo para cancelar a marcação. Em termos desportivos então, a palavra assume designações complexas. O bom tempo não é bom para essas práticas, nomeadamente o futebol que é exactamente quando o tempo aquece que entra em defeso. Durante os noventa minutos do jogo (mais os descontos de tempo), também o factor tempo é muito importante. Se a nossa equipa está a ganhar, desejamos que o tempo passe depressa. Pelo contrário, parece que o tempo se esgota demasiado depressa.

Ainda há outro tempo! Aquele que já vivemos. Costumamos chamar-lhe bons tempos, embora por vezes, ao analisarmos bem, alguns desses tempos foram os piores da nossa vida. Até já cheguei a ouvir pessoas que passaram imensas dificuldades, inclusivamente fome, a dizerem “noutro tempo é que era bom”! Só se justifica a boa evocação, porque éramos mais novos.

Cá por mim, quando era novo tive as mesmas experiências de todas as crianças desse tempo. Vivi alegremente até dois meses antes de completar sete anos. Em Outubro, no dia sete, (sempre este místico número!), entrei para a Escola. E aí, começaram os sarilhos!

A Escola, no meu tempo, era algo complicada. Não na forma de aprender a tabuada, que a cantilena até servia de entretenimento: “Dois vezes um, dois; dois vezes dois, quatro; dois vezes três, seis…”, o Professor dizia e os cachopos repetiam, cadenciadamente. Já a cópia, com as letras arrumadinhas naquelas duas linhas paralelas do caderno, provocava reacções iradas do mestre, porque a escrita transbordava as linhas, ou porque a tinta tirada com o aparo metálico do tinteiro cerâmico colocado ao centro da carteira resolvia pingar nas folhas brancas, deixando feio borrão. Mas maçador, mesmo maçador, era aprender por onde viajavam os comboios, donde vinham e para onde iam os rios, saber o nome de todas as serras e serrinhas deste pequeno Portugal, que assim se tornava muito grande. As falhas deste importante conhecimento de cultura geral, eram punidas através do uso de maldita ripa que estalava dolorosamente nas mãos. Às vezes era tão fortemente utilizada que perdia toda a sua rijeza e quebrava-se de encontro às palmas bem evidentes, com os dedos virados para trás. No meu caso pessoal, ela teve pouca utilização, porque o mestre era mais adepto de uma boa chapada, dada a tempo, nas bochechas desprevenidas. No tempo das férias, havia tempo para tudo. Então nas Grandes, o tempo era enorme, porque multiplicado por dias e dias sem preocupações escolares, noites mais curtas porque a hora de fazer ó-ó passava a ser outra. Paradoxalmente, também parecia que o tempo passava a correr.

No meu tempo, dividíamos o tempo entre os jogos de futebol, à noite na Praça e os banhos tomados no tanque do Galaitas, no Marachão ou na Bajeira, junto à Quinta de S. Tomé. À luz dos actuais conhecimentos higiénicos, com as piscinas de água tratada, ainda é difícil compreender como era possível não apanhar doenças graves naquelas águas sujas, cheias bicharada de toda a espécie. No Marachão, as cobras de água picavam as pernas, e os alfaiates, animaizinhos que parecem aranhiços de longas pernas passeando levemente sobre a água, cobriam toda a superfície e obrigavam a gente a afastá-los para poder nadar. E bebia-se água por todo o lado! Nas fontes, se estavam à mão, mas também numa qualquer “rigueira”. Havia até uma cantilena destinada a purificar a água:”Água corrente, não mata gente, nem de noite, nem de dia, nem à hora do meio-dia, Padre-nosso, Avé Maria”. Depois da benzedura, podia matar-se a sede à vontade, que não havia micróbio incomodativo! Vá lá, de vez em quando aparecia uma dor de barriga com a consequente diarreia. Que se aliviava junto a qualquer muro, sem usar papel higiénico (quem sabia o que era isso?), servindo as ervas para o efeito. O pior é se vinha juntamente alguma urtiga!

As brincadeiras prosseguiam sem cuidado. Vícios, não havia. Claro, aqui não se contam os “cigarros” de barba de milho fumados às escondidas! Apenas nos podiam acusar de roubo de fruta pelos quintais. De vez em quando, lá havia um assalto às laranjas alheias ou aos melões madurinhos escondidos sob uma camada de palha.”Crimes” menores, executados mais pelo espírito aventureiro. Aventura, era o maior incentivo à imaginação dos miúdos. Sem as formas de diversão actuais, apenas restava o recurso a expedientes que mantivessem ocupada a energia da juventude. Sempre “no fio da navalha” mas nunca ultrapassando os limites do aceitável, éramos crianças sem problemas sociais. Nem a ida de vez em quando ao posto da guarda manchava a reputação, porque motivadas pela transgressão das jogatanas na Praça. Já mais “velho” (aí com 17 ou 18 anos!) fomos um dia chamados ao posto no fim de um cortejo de carnaval que organizámos. Parece que as frases usadas num determinado cartaz estavam fora dos parâmetros exigidos pela censura. Coisa de pouca monta, castigada com monumental reprimenda e consequente lição de moral e bons costumes.

A vontade de realizar coisas levava por vezes à assunção de projectos superiores às nossas forças. Recordo, por exemplo, as festas dos Santos Populares, que tiveram lugar na Quinta de S. Tomé. O Clube de Condeixa promoveu em 1950 grandes festejos no Campo dos Silvais (actual Casa de Saúde Santa Isabel). Nesse tempo de parcas diversões, uma realização de tamanha monta teve repercussão para além dos limites do concelho. O vasto programa (como se pode ver na reprodução do cartaz), movimentou Condeixa de maneira inesquecível. Nos anos seguintes, outros festejos de menor dimensão tiveram efeito. Mas a memória ficou sempre ligada aos “Grandiosos Festejos”. Os garotos de 1950, seis anos depois e já homenzinhos, deitaram ombros a uma empreitada que suplantasse o êxito anterior. Conseguida a autorização para utilizar a Quinta, que tinha singulares condições para este tipo de eventos, visto ser totalmente vedada, cinco aventureiros deitaram mãos à obra. É justo recordar os nomes: António Aires; Luís Pocinho; Joaquim Fontes e Joaquim Jacinto. O quinto elemento era eu.

É já difícil, mesmo para gente de outro tempo, imaginar o espaço envolvente da Quinta. Isolada no meio de terrenos férteis e rodeada de água, tinha três acessos às terras que outrora lhe pertenciam. Um desses caminhos chamava-se Serrada. Partia da Quinta até se encontrar com a Avenida Visconde de Alverca. Ladeado por sebes de buxo, tinha a meio uma grande eira de piso rígido e cobertura parcial (cerca do local onde actualmente estacionam os circos). Habitações, poucas, depois da casa do Capitão Alves (onde hoje é a Policlínica de Condeixa). Sem casas, também não existia iluminação pública. Um grave problema para a realização dos festejos. Não vale a pena descrever o trabalho insano de colocar postes de madeira ao longo de cerca de 500 metros, os respectivos fios e as lâmpadas para iluminação do caminho. Lá dentro, estava tudo que nem um brinquinho! Nos arcos onde passava o rio e as mulheres do campo punham as canastras com tremoço a demolhar, ficou instalada a tasca. No celeiro, sob a árvore de tília, o bar com esplanada e, sobre o rio, o pavilhão com espaço para a orquestra.

Para recompensar o imenso trabalho realizado, só faltava a adesão do público. No dia 12 de Junho, era grande a ansiedade do bilheteiro, junto ao portão principal, aquele que deita agora para a rotunda. Seria que os dez contos (muito dinheiro, em 1956!) gastos até ao momento, teriam retorno? O programa era aliciante: Ranchos Folclóricos e Orquestra para o baile, quermesse e barracas de “comes e bebes”. Embora o dia de abertura das festas calhasse à terça-feira, a afluência não foi má de todo, porém longe das expectativas. Pensámos: “a coisa vai melhorar nos restantes dias”. Mas não! Os tempos eram difíceis, o dinheiro não abundava e as coisas arrastaram-se sem grandes melhoras. Já fazíamos contas à vida, quando subitamente recebemos uma carta que nos pôs em alvoroço: a Empresa de Espectáculos de Alberto Ribeiro propunha realizar um espectáculo no nosso recinto. Da nossa parte, apenas devíamos proporcionar condições logísticas e eles faziam o resto, inclusivamente tomar conta da bilheteira. Do resultado desta, seria para nós determinada percentagem. Claro que aceitámos imediatamente. E assim foi! No dia 25 de Junho de 1956, um programa recheado de artistas de renome, com fama nos programas de rádio e Serões para Trabalhadores. A televisão só chegaria mais de um ano depois, mesmo assim toda a gente conhecia as canções desses artistas e, no caso especial de Alberto Ribeiro, não só as canções mas também a imagem de galã de cinema, ao lado de Amália Rodrigues.

 

O resultado da bilheteira compensou largamente o investimento feito, cobrindo todas as despesas, de forma que os restantes dias do programa serviram apenas para cumprimento do compromisso assumido. Repito, assumido estoicamente pelos promotores, sem qualquer subsídio. A nossa responsabilidade foi ao ponto de declarar que os lucros seriam totalmente entregues ao Clube, mas em caso de prejuízo, seriamos nós a comportá-lo. Jovens de vinte anos! Rapazes que podiam comodamente esperar a realização das festas por qualquer entidade que a isso se propusesse. Outros tempos!

Um tempo de juventude que se ía rapidamente esgotando a caminho de outras responsabilidades mais sérias. A tropa, primeiro, o emprego e o casamento, depois.

Agora, no fim do tempo, é altura de rememorar esses bons tempos, que afinal não foram maus de todo!