terça-feira, 1 de julho de 2014

             AI QUE PRAZER,TER UM LIVRO PARA LER...E LER! 


Sou um leitor compulsivo!
Esta minha condição teve particular importância em toda a minha vida.
Aprendi a ler um bom bocado antes de ir para a escola e até recordo, a esse propósito, um episódio,teria aí pouco mais que seis anos.



À noite,enquanto esperávamos a hora do jantar,o meu Pai,como sempre fazia ao regressar a casa,lia o jornal “O Século”.Junto dele,peguei na primeira página e fui soletrando:”director:João Pereira da Rosa”.Só que,na minha inocência,o S tinha o valor de Esse,o que dava,foneticamente, João Pereira da Rossa-ou Roça!
A gargalhada de meu Pai e a troça de meus irmãos serviram para aprender o valor daquela consoante assim colocada.
Às quintas-feira “O Século” trazia um suplemento infantil intitulado “Pim-Pam-Pum”.Talvez isso tivesse uma certa influência na minha vontade de aprender a ler.Os “bonecos”estimulam a imaginação das crianças!
Era o tempo de uma infância descuidada,num local na altura ermo,a Senhora das Dores.
Ermo,mas não isento de atractivos.O sítio onde se situa o depósito da água,era uma velha pedreira abandonada.Mesmo ao cimo,estava a casa do Zé Pato,que tinha uma ranchada de filhos.Dois deles,o Zé e o António,foram meus companheiros de escola.Lá mais ao longe,à Espadaneira,na estrada para Alcabideque,morava também outro condiscípulo,o António Nogueira,ou melhor, para efeitos de identificação,o António Prior.Era com eles que me deslocava para a escola da vila,passando pela Quinta de S.Tomé,se os portões estivessem abertos,ou atalhando pelo Olho,que dava para a estrada da Serrada. _ Evidentemente,a Quinta não apresentava o aspecto actual,com a circular externa a passar-lhe junto à porta.
Era linda,a Quinta de S.Tomé!
Tinha um rio que a contornava e lhe conferia sempre,mesmo no pico do verão,aquele ar de frescura agradável.Era difícil perceber o aspecto exterior do prédio do lado nascente,porque uma cortina de loureiros e figueiras bravas o encobriam totalmente.Até o Jardim da Árvore dos Macacos,debruçado sobre o rio,mal se descortinava para quem vinha de fora.Três magestosos portões em ferro,resguardavam a moradia,a abrir num grande pátio onde se alojavam as estrebarias,o celeiro e a casa de habitação do caseiro,esta mesmo em frente à imponente escadaria de pedra de acesso ao primeiro andar.Por baixo passava o ribeiro que atravessava todo o pátio e ia alimentar o moinho.
Havia apenas um senão,na velha Quinta.Dizia-se que estava assombrada.Durante o tempo em que um dos últimos donos lá viveu,a casa tinha electricidade e telefone,mas ao partir,mandou cortar ambas as ligações.No entanto,murmurava-se que o telefone tocava de vez em quando e,da mesma forma ,se acendiam luzes.Pessoalmente creio que isso foi um subterfúgio para afastar visitantes indesejáveis.
A Senhora das Dores,naquele tempo,tinha uma escassa meia-dúzia de moradores.Mas bastante curiosos.
Num pequeno morro ,havia a barraca do Ti David Vila Franca,fogueteiro.No fim do ano escolar os cachopos iam lá trocar os cadernos usados por bombas, bichas de rabiar e,se os cadernos eram suficientes,também por “paus-verdes” que lançavam lindo fogo de artifício.Em frente,morava o Daniel Martinho que,diziam,era perito em construir máquinas de fazer dinheiro,aparatos rudimentares com os quais conseguia enganar alguns papalvos.Era um homem simpático,característica indispensável para enrolar os trouxas.Diametralmente oposto no feitio,era o João Lobo,que vivia um pouco mais acima.Quando eu tinha sete ou oito anos,já ele era velho e revelho. Sorumbático,cara de poucos amigos,dizia-se que tinha morte de homem às costas.Não me admirava nada.Foi “caceteiro”dos fidalgos do Palácio dos Lemos,tradicionalmente miguelistas!
O mesmo morro onde viveu o David Vila Franca,também tem uma história para contar.Diz a lenda que ali existia a habitação de um homem que foi carrasco oficial em Coimbra.O povo fugia a sete pés daquele lugar e quando o homem morreu,queimaram-lhe a casa.Durante muito tempo o lugar era considerado maldito.Para quebrar a maldição,colocaram num velho cipreste existente uma imagem de Nossa Senhora das Dores,em memória das dores sofridas pelos justiçados às mãos do carrasco.Mais tarde,em 1906,o Padre Dr.Antunes mandou construir a capela,devotada à Virgem.
A Senhora das Dores foi,em tempos recuados,local de peregrinação,mas não tenho memória disso.Recordo sim uma grande festa lá realizada,com quermesse,barracas de comes-e-bebes e um pavilhão onde vi um rancho de Condeixa a bailar.Tenho bem na memória o “vira de quatro” e dois magníficos dançadores:a Soledade Cavaca e o Miguel Preces.

Quando tinha cerca de dez anos,a minha família mudou-se para a vila.
Pode causar um pouco de confusão a destrinça entre Senhora das Dores e a vila, hoje,que está tudo ligado,mas ela existia mesmo.Basta dizer que eram freguesias distintas:Condeixa-a-Nova e Condeixa-a-Velha.Essa diferença notava-se particularmente na Páscoa,quando éramos visitados só à segunda-feira.Por causa disso criou-se um problema entre o meu Pai e o pároco de Condeixa-a-Velha.A visita pascal num dia de trabalho, impedia que o meu Pai estivesse presente.Quando chegou a ocasião de fazer o baptizado de uma das minhas irmãs mais novas,o padre recusou-se,argumentando que o pai da criança não frequentava a Igreja,nem assistia aos actos religiosos.Parecia que estava criado um problema insolúvel.Nada disso!Depois de uma conversa entre o padre e o meu Pai,este “convenceu” o pároco a realizar o baptismo.Grande “capacidade de persuasão”!
Na vila,fomos habitar uma casa pertencente ao Palácio,pois o meu Pai tinha,por contrato com a entidade patronal,direito a habitação.

Novo lugar,novos horizontes,novos vizinhos e o centro da vila muito mais próximo.Passei o restante período da minha infância e a juventude,até casar,nessa casa,mesmo em frente à Capela da Senhora da Piedade,no caminho para a Barreira.Anos mais tarde,tive conhecimento que se dizia que a casa era assombrada.Os meus pais nunca falavam nisso,para não assustar as crianças,mas parece que se ouviam de noite ruidos estranhos.Sinceramente,nunca me apercebi disso e,durante a juventude, muitas vezes entrei a altas horas em casa.
Os vizinhos,mais numerosos,também tinham características peculiares.Mesmo ao lado,o Ti António Borrega,alcunha que se estendia aos restantes membros da família,era ferreiro e todo o santo dia o ouvia,desde os fundos da casa,a malhar o ferro.Diziam que era especialista a moldar e têmperar os picões,escopros de aço para picar as mós de pedra dos moinhos.Tinha um pequeno quintal ao dobrar a curva,que ele trazia sempre primorosamente cultivado.
Já o sobrinho,João Borrega,na esquina com a Rua Francisco de Lemos,era barbeiro e sofrível tocador de violino.Tocata para eventuais ranchos ou baile de romaria,aí estava ele com o seu violino.Também tinha uma outra alcunha,”alemão”,provavelmente por gostar muito de ler e comentar as revistas nazis que durante a guerra eram profusamente distribuídas na terra.
A minha vivência durante o tempo em que habitei a casa da estrada da Barreira,foi das mais enriquecedoras,talvez o melhor período da vida,porque o da passagem de criança para a idade de adolescente.Foi também a altura em que comecei a embrenhar-me mais na leitura.
Recordo-me do primeiro romance que consegui ler desde o principio ao fim.Naturalmente,com duas irmãs adolescentes,o que abundava lá por casa era literatura romântica da Colecção Azul, Max du Veuzit ou Magali.Até me atrevi a comentar o enredo de um desses romances com a minha saudosa irmã Lucinda!
Mais tarde,já em Coimbra e porque a Biblioteca Municipal ficava mesmo ali à porta da Escola Industrial,tornei-me sócio.Devorei Emílio Salgari e,tal como ele,naveguei dentro de uma sala pelos mares das Caraíbas,acompanhando Sandokan na sua conquista de Mompracem ou na recuperação do ceptro de Rei dos Corsários.
Durante um largo período de tempo em que estive retido,por doença,foram ainda os livros que serviram para empurrar os preguiçosos ponteiros de um relógio que teimava em demorar o tempo de reabilitação e devolver-me ao convívio dos companheiros de brincadeiras.
Mas não se pense que eu era um rato de biblioteca!Afora esse pequeno percalço de saúde,tive uma infância e adolescência perfeitamente normais.Também participei nas “visitas clandestinas”aos pomares e nos jogos de pontapé na bola,na Praça. 

Neste particular,devo confessar que não era lá grande coisa.Ainda hoje li um pensamento curioso : “Os que odeiam o futebol e julgam que isso os torna mais inteligentes,são aqueles que ninguém escolhia para as peladinhas no intervalo das aulas”.Claro que não odeio,nem nunca odiei o futebol e quanto à inteligência,acho que ela passou à minha porta,mas não entrou.A verdade porém é que,na Praça,quando o Luís Pocinho escolhia as “equipas”,eu só entrava quando era necessário completar o número de participantes.E o meu lugar no “time” foi sempre fora da renhida luta,onde não tivesse influência e,sobretudo,não estorvasse.Certa vez,durante um desses desafios, era defesa e estava ali junto ao guarda-redes,quando de repente me vi perante um ataque adversário.Consegui suster a bola e rematei. Marquei um golo monumental... na minha baliza! E ainda hoje estou p'ra saber porque é que o Luís correu atrás de mim,avenida acima!
A Praça era local de muitas brincadeiras,para além dos jogos de bola.Ao sábado à noite lá nos reuníamos à espera da “experimentação”,uma breve sessão cinematográfica proporcionada pelo Sr.Joaquim da Costa,proprietário do cinema.Os temas dos filmes serviam depois para incentivo das nossas brincadeiras.
Como o meu Pai era empregado do Palácio Sotto Mayor,onde existia uma central de produção de energia,eu passei toda a infância e juventude dentro da Quinta.Conheci-a nos mais pequenos pormenores.
E que bela era!
O jardim das magnólias,com lindo rendilhado de buxo a proteger os canteiros de flores, lagos artificiais e sebes de canas da india,o jardim novo,estendendo-se pelo espaço que antigamente pertenceu ao Paço e onde em tempos esteve o Quelhorras,essa figura de pedra que chegou a ser como que um ex-libris de Condeixa,os arruamentos traçados a régua e esquadro,percorrendo toda a quinta,e o tanque com um interesante pavilhão de caça bem no meio,constituiram para mim um apreciável local para ler um bom livro à sombra dos pomares,ou sítio de outros entretenimentos. Para mais,como a propriedade é murada,permitia o uso de espingardas de carregar pela boca,na caça às várias espécies aladas.Mas isso raramente acontecia,apenas quando o meu irmão deixava descuidadamente a arma ao meu alcance.De resto,nunca fui grande atirador.Com as fisgas,que em Condeixa se chamam elásticos,já era mais expedito.Onde punha a vista,punha o projéctil...mais ou menos!
E a vida continuava.
Aos quinze anos,tive o meu primeiro namoro,oficial,com pedido formal por carta e depois pessoalmente.Até com consentimento dos pais da moça!
Mas não foi esse o “primeiro amor”,aquele que só tem comparação com o luar de Janeiro.Como criança precoce que se preza,apaixonei-me mais cedo.
Também comecei com aquela idade a gostar muito de dançar.
Com a minha baixa estatura,só tinha duas hipóteses:maroto,ou bailarino.Maroto,no sentido de gostar da brincadeira,sempre fui.Portanto,escolhi as duas! Porém,era um tempo de poucas liberdades entre rapazes e raparigas.Os bailes serviam então para aconchegar ao peito outro peito mais rechonchudinho.Claro que algumas não permitiam liberdades e colocavam logo a mão esquerda no nosso ombro,assim como quem diz:”olha lá,não te estiques!”.Mas com jeitinho,como quem não quer a coisa,lá se levava a água ao moinho.
Condeixa tinha,nessa altura,alguns locais propícios a grandes bailes:os salões do Paço(o palácio dos Almadas,onde depois foi construída a Pousada de S.Cristina);o salão do Clube de Condeixa e a Casa do Povo.
Voltando à minha paixão pela leitura,que afinal é o tema fundamental deste exercício de memória,acho que é tempo de evocar o Clube de Condeixa e a sua Biblioteca de pouco mais de meio milhar de volumes,adquiridos através de ofertas.Li esses livros todos.A biblioteca,naturalmente,tinha escritores clássicos mas também muitos outros completamente desconhecidos.Curiosamente,grande número de obras eram de autores eslavos.A minha apetência por essa literatura despertou a desconfiança de alguns senhores do regime que faziam parte das diversas direcções e tive um ou outro dissabor.
Naquele tempo não havia muita disponibilidade para comprar livros-nem agora!-e a biblioteca do Clube teve uma importância grande na formação de muitos jovens.
Mais tarde,com melhor estabilidade financeira,fui adquirindo os livros que necessitava.Durante algum tempo,uma irritante catarata ocular impediu-me de ler tanto quanto desejava.Actualmente já compro poucos livros,embora continue a ler com bastante assiduidade os livros que possuo e ainda não li,ou requisitando na Biblioteca Municipal os que necessito.

Se eu tivesse o talento do Raul Solnado,diria a terminar:
«Prontos,é esta a história da minha vida.Muito obrigado e façam o favor de ser felizes».