quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

LUGARES DE CONDEIXA-O OUTEIRO(2ª parte)

(2ªparte)
À chegada ao Largo de S. Geraldo, o Outeiro divide-se. Para a esquerda, o Canto e o Alto. Em frente, a longa subida, à direita, o caminho para a Fonte e a Cascalheira.
A fonte tem pouca beleza, para quem não considerar belo ver brotar da parede um jorro de água fresquíssima, infelizmente impura. Por cima, uma ponte a ligar as propriedades que foram do Comandante Rocha e hoje pertencem à sua sobrinha, Dr.ª Jesuina Rocha Helena. Lá no fundo, o tanque de lavar roupa, agora quase sem préstimo, desde que as pessoas aderiram às novas tecnologias (vulgo, máquinas de lavar). Antigamente, em dias determinados, juntava-se um rancho de mulheres para lavar a roupa, própria ou de fregueses. Trabalho árduo que forçava a estar várias horas a esfregar e ensaboar, batendo depois os panos nas pedras do lavadouro, até ficarem limpos. Depois, era só estender a corar. (recordam-se do filme Aldeia da Roupa Branca?). Servia também para as lavadeiras desenferrujarem a língua, dissecando a vida de cada um. Ali, falava-se de tudo. E cantava-se! De repente, bastava uma começar, para se generalizar a cantoria. Verdadeiro coro espontâneo brotava das gargantas afinadas das lavadeiras. Condeixa, terra de muita água, benza-a Deus, tinha vários lavadouros públicos: a referida fonte, o rio da palmeira na Rua Manuel Ramalho, comprido espaço onde se juntava um grande rancho de lavadeiras, o ribeiro da Serrada e o lavadouro da Lapa. Na primeira metade do século vinte, foi levada à cena no Cine-Avenida, uma revista musical (Secas e Picadas) que obteve enorme êxito local, onde havia um interessante quadro alusivo às Lavadeiras de Condeixa.
Depois da Fonte e descendo as breves escadas, encontravam-se as terras do Paraíso (rua Cidade de Breten, Ciclo, etc.), onde costumavam acampar circos e barracas de tiro. Também cheguei a ver lá teatro, em tenda montada por uma companhia itinerante, com a representação do drama “A Rosa do Adro”, de Manuel Maria Rodrigues. Periodicamente, deslocava-se a Condeixa a companhia Circo Amery, da qual fazia parte a Trupe To Ching (estará bem escrito o nome?), grupo de chineses, -acrobatas ou manipuladores de varinhas com pratos, não recordo bem- constituído por pai, mãe e filhos. Estes, creio serem actualmente os donos do Circo Chen. A família ficava invariavelmente instalada em casa do Zé Galhardo (José Moita), que na altura morava no antigo prédio da casa do Povo. De volta ao Largo, ao domingo de manhã podia assistir-se a uma sessão de corte de cabelo ou barba, a céu aberto, se o tempo permitia, mas ameaçando chuva, dentro do curral da mula. Para isso bastava uma vulgar cadeira, tesoura, navalha de barba, pincel e um recipiente onde misturar com água o sabão em pó que se vendia em caixas de cartão, coloridas. Depois, a paciência e coragem para resistir às mãos do “Ti Picaroto”, (Francisco Caridade), mais habituadas aos trabalhos rurais. De qualquer forma, a pedra- úme (alúmen), estancava o sangue dos golpes mais que prováveis.
Antes de subir as escadas da Costa, uma breve visita à oficina de bicicletas do João da Costa, só conhecido por Nicolau porque era incondicional admirador do antigo campeão das Voltas a Portugal. Homem muito poupado, chegava ao extremo de levar ao rubro no rebolo de afiar, um raio de bicicleta, para acender o cigarro. A pedra de esmeril tinha a meio um fundo vinco motivado pelo atrito do aço que quase a tornava imprestável para outras tarefas.”Vai-te lucro, que me dás perca”.
Em tempos remotos, o caminho desde a Fonte até ao Hospício, fazia-se pela estreita vereda da Costa. Ainda cheguei a conhecer alguém (terá sido o Florêncio Azevedo Branquinho?), que dizia ouvir a mãe contar que se assustava com os tiros de dinamite utilizados para abertura da que é hoje a R. Dr. Simão da Cunha. Não teria sido, portanto, tão remotamente.
Mesmo ao cimo das escadas, morava o “Ti Chico Cavaca” (Francisco da Costa), pai do Chico e do Daniel “Carrula” (Francisco e Daniel Ramalho da Costa). Este último, meu condiscípulo na primária, habilidoso jogador de futebol, no tempo do Campo dos Silvais, morreu com apenas vinte anos, vitimado por um tumor cerebral.
Ao lado, era a casa de Joaquim Melâneo, funcionário judicial e inspirado pintor de arte, característica que seu filho Frederico herdou. Tinha um hábito curioso: de muito bom ouvido musical -comum a todos os genuínos condeixenses- quando regressava a casa, ia assobiando por entre dentes, uma qualquer melodia. Mas só entrava, após a ter concluído. Manias!
Na Costa, moravam também os Salicús! O patriarca, António Melâneo, era pedreiro. Tinha dois filhos, que foram meus condiscípulos, o Vergílio e o António.
No meu tempo, quando saíamos da escola, não nos arriscávamos a descer o Outeiro, porque os moradores da Costa, especialmente os atrás referidos, corriam à pedrada quem invadisse o seu território. Por isso, íamos beber água ao telheiro do armazém de Alcobaça, Peça & Companhia, onde havia uma bomba que aspirava a água do poço. Desta forma, evitava-se a temível descida à fonte do Outeiro!
Três monumentos caracterizam o Outeiro: A Escola Conde de Ferreira; o Hospital Dona Ana Laboreiro d’ Eça e o Palácio dos Condes de Podentes (Hospício).
O primeiro, a Escola, masculina para a distinguir da outra, a Escola Feminina. Meninas e rapazes, no entender retrógrado dos mandantes da época, não podiam coabitar. A escola delas era outro mundo, que nós só visitávamos quando lá íamos obrigatoriamente fazer os exames da 3ª e da 4ª classe.
O edifício foi construído graças à participação de um mecenas. Joaquim Ferreira dos Santos, Conde de Ferreira, era um antigo emigrante em África e no Brasil, onde angariou imensa fortuna. Tendo testemunhado as dificuldades passadas pelos seus patrícios em terra estranha, bons trabalhadores mas analfabetos, incapazes de enviar meia-duzia de letras à família que em Portugal aguardava ansiosamente notícias, quando regressou ao seu país legou em testamento um fundo para a construção de 120 Escolas Primárias. Em todas elas foi inserida a data 24 de Março de 1866, dia da sua morte. Encontra-se sepultado no Cemitério de Agramonte, num mausoléu construído pelo escultor Soares dos Reis.
Em 10 de Setembro de 1867, realizou-se o lançamento da primeira pedra para a construção. Em termos monetários, contabilizava-se 1200$000 (mil reis) da Fundação Conde de Ferreira; 800$000 (mil reis) doados pela Confraria do Santíssimo Sacramento e o restante, da responsabilidade da Câmara Municipal.
(Dados históricos destinados a facilitar a quem pretenda conhecer melhor Condeixa, a inclusão nestes exercícios de memória têm apenas o valor da informação que se pode obter em trabalhos literários, nomeadamente “Condeixa-a-Nova, de Augusto dos Santos Conceição” e “Subsídios Para a História de Condeixa-de Fernando de Sá Viana Rebelo e Isac Pinto.)
A Escola, no meu tempo era dirigida por dois professores: João Correia e António Mateus. Em 1946 faleceu João Correia e foi substituído por António de Jesus Pita.
O que é que se pode mais dizer sobre a Escola? Os anos da infância, são, incontestavelmente, os melhores da vida de uma pessoa. Os problemas resumem-se a conseguir cumprir as determinações dos pais, professores e outros agentes de formação. Mas no meu tempo, as preocupações eram substancialmente acrescidas com o medo de desagradar aos mestres. Porque os castigos eram pesados. Por exemplo: no ditado, cada erro correspondia a uma reguada. Esta, já não era a falada “menina dos cinco olhos”, mas apenas uma vulgar tábua que doía que se fartava, ao bater com toda a força na palma das mãos! Os cachopos de vez em quando inventavam meios de minorar a dor, coisas que, diga-se de passagem, não surtiam qualquer efeito. Lembro-me de uma hipótese que consistia em colocar na mão uma crina de cavalo, crendo a criança que isto provocava a quebra da régua. O pior era se o professor descobria o inocente e ineficaz estratagema, pois redobrava a pena a aplicar.
Como qualquer outra criança, também sofri bastantes castigos. A maior parte merecidos, alguns escusados. Apenas um ficou mais gravado na memória, porque foi inteiramente injusto!
Ao sábado de manhã, havia uma sessão de treino paramilitar, da Mocidade Portuguesa, ministrada pelo Tenente Pires Beato. Imagine-se: garotos dos sete aos dez ou pouco mais anos, aprumados em formatura e a marchar! Que ridículo!
No tempo do professor João Correia, havia uma outra actividade bem mais interessante: um coro formado por todas as crianças da Escola. Aliás, creio ter sido essa a mais valiosa prestação do “temido” professor João Galo.
Em frente, o Hospital!
Foi construído graças à generosidade do condeixense Dr. Simão da Cunha D’ Eça Azevedo, que legou toda a sua fortuna à Câmara de Condeixa, para…”Fundar em edifício próprio, e que satisfaça todas as condições exigidas pela ciência actual, um Hospital para nele serem tratados doentes dos dois sexos, preferindo sempre os da minha freguesia e concelho e custear todas as despesas que para tal sejam exigidas.” (Subsídios Para a História de Condeixa). Era assim que estava determinado no testamento daquele benfeitor.
O Dr. Simão da Cunha faleceu em 1919, mas só em 1921 estava tudo preparado para dar início às suas disposições testamentárias. Só que entretanto a desvalorização da moeda, comprometia a efectivação da obra. Mas, como diz o médico Dr. Evaristo Cerveira de Moura na sua obra ”Nascimento, vida e morte do Hospital D. Ana Laboreiro D’ Eça”, -“então, surge o inesperado. Em 13 de Outubro de 1925, morre em Lisboa, Artur Barreto, senhor de grande fortuna e institui seu principal herdeiro o Hospital. Todos os seus bens nas comarcas de Condeixa e Ansião…mais de cem mil escudos…entraram na Câmara Municipal, em Agosto de 1926. Este facto permitiria vida mais desafogada à obra…assim, em 1926, estava concluído o edifício. Resolveu a Câmara que o pessoal da enfermagem pertencesse a alguma Ordem Católica, sendo contactada a Ordem Franciscana de Hospitaleiras Portuguesas, que em Março aceitou o convite.”
Diz ainda o Dr. Evaristo Cerveira de Moura: “O Hospital teve sempre grandes beneméritos. Não se pode esquecer essa grande Senhora que foi a Ex.ª Sr.ª D. Maria Elsa Franco Sotto Mayor, que chamou a si todo o encargo de comprar e mandar instalar todo o material da sala de operações e esterilização, bem como o valioso arsenal de material cirúrgico para qualquer tipo de operações.”
Em 1976 foi firmado um acordo com a Secretaria de Estado da Saúde, com vista à utilização do Hospital, como instalações do Centro de Saúde. Modificou-se nessa data a forma inicial de funcionamento da velha unidade hospitalar. Mais tarde, com a construção do novo Centro de Saúde, acabou de vez o Hospital D. Ana Laboreiro D’ Eça!
Hoje, ali está um prédio devoluto, lentamente a degradar-se. Até quando?
Seguindo o percurso do Outeiro, um pouco acima do Hospital, era a loja do “Manel Capado” (Manuel Torres), onde comprei muitos caramelos que tinham a embrulhá-los, as figurinhas dos futebolistas para colocar em cadernetas próprias. Este “Manel Capado” era um homem extrovertido que divertia e se divertia. Em todos os carnavais, lá estava sempre a sua figura, dando corpo a alguma figura cómica da altura. Várias vezes o vi participar nas brincadeiras carnavalescas, cortejos ou representação espontânea de paródias de Entrudo.
Logo acima, o prédio da oficina de Benjamim Ramos, com o seu nome em grandes letras de cortiça na fachada circular e a informação que se realizavam serviços de bate-chapa: pintura; construção de carroçarias, etc.
Benjamim Ramos, o “Fechaduras” era um empreendedor empresário que, além da oficina, também instalou uma fábrica de serração de madeiras e dirigiu o lagar “do Fiscal”, na Avenida. Tinha um automóvel Citroen, modelo “arrastadeira” (ainda pertence à família). Um dia foi passear com amigos e, na passagem de nível da Corujeira (Coimbra), por pouco não foi abalroado pelo comboio, que lhe levou o pára-choques do carro. Devido ao feitio do referido acessório do veículo, dizia ele com graça: “O raio do comboio, apenas me levou o bigode!” Mas, se dessa vez escapou à morte, não sobreviveu alguns anos depois, na sua própria oficina, quando foi esmagado contra a parede por uma camioneta.
A terminar o Outeiro, inicia-se a Quinta do Hospício, com uma pequena mata a dar maior realce ao Palácio dos Condes de Podentes.
Antigo convento de frades Antoninos-Franciscanos, funcionou como hospital para doentes mentais, daí a designação ainda hoje existente e que dá nome a toda aquela zona do Outeiro. Com a extinção das ordens religiosas, o convento foi adquirido ao Estado pela quantia de 1251$000, em 1842, pelo 1º Conde de Podentes, D. Jerónimo de Almeida e Vasconcelos.
A construção é de estilo vagamente barroco, possui valioso espólio de azulejaria, vestuário antigo, louças, vários outros objectos de arte e mobiliário. Uma das filhas do Conde de Podentes, foi casada com Carlos Relvas, abastado lavrador ribatejano, considerado o 1º fotógrafo amador do país.
Um dos últimos herdeiros da Casa Conde de Podentes, foi D. Margarida Relvas Albuquerque que era casada com o médico Dr. Henrique Costa Alemão Teixeira.
E está terminada a curta mas aliciante viagem pela memória de um bairro que faz parte do meu imaginário, quer infantil ou juvenil. Desde o tempo escolar, até ao final da adolescência, vivi intensamente o quotidiano “outeirino”. Foi no prédio da cadeia, no 1º andar, que me apresentei como vim ao mundo, perante a junta militar que decidiu apurar-me para todo o serviço militar, a mim, com uns escassos 160 centímetros de altura e meia centena de quilos em ossos, carne e alguns músculos!
Também foi numa casa do Largo de S. Geraldo que nasceu o meu filho mais novo. Na mesma casa onde a minha mãe fechou pela última vez os olhos. Em frente, instalou o meu pai a primeira oficina de reparações eléctricas em automóveis e construção de baterias para os mesmos, que existiu em Condeixa.
É evidente que o Outeiro não é, ou era, apenas o que descrevo. Nenhum local se resume a referências e recordações, por mais elaboradas que sejam. Resta-me a esperança que a leitura destes escritos estimule a memória de quem viveu nesse tempo e se disponha a contar aos mais novos a forma como vivíamos!
FIM