domingo, 17 de janeiro de 2010

O TEATRO EM CONDEIXA

O teatro português,pensa-se,nasceu em 1502 pela mão de Gil Vicente,quando representou perante a corte de D.Manuel I o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação,festejando assim o nascimento daquele que viria a ser o rei D.João III.
A Europa saía da longa noite da Idade Média e entrava decididamente na era renascentista.
Em Portugal,após o descobrimento do caminho marítimo para a Índia e o "achamento" do Brasil,operaram-se fundas transformações,tanto a nível cultural como arquitectónico.
O jovem príncipe que Gil Vicente homenageou,depois de coroado rei,fixou definitivamente a Universidade na cidade de Coimbra,em 1537.E essa radicação muito veio influenciar a cultura da região.
Condeixa,que em tempos não passava de simples freguesia de Coimbra,desde longa data recebeu benéfica influência,no plano arquitectónico,com o aparecimento de belos palácios e solares.
Culturalmente,data do século XIX a fundação de um agrupamento de teatro amador.
Em 1814,mais de trinta anos antes de a vila ser elevada à categoria de sede de Concelho,por carta régia de D.Maria II,um pequeno grupo de pessoas decidiu iniciar uma actividade que lhe permitia ocupar os tempos livres,recreando o espírito.
Na Rua de S.João(actual R.Francisco de Lemos),possívelmente num prédio que existia entre a Capela da Senhora da Piedade(Capela do Palácio) e a casa da família do Dr.João Ribeiro(outra hipótese é uma casa em frente ao portão de serviço do palácio,um velho prédio actualmente desabitado),na residência de Salvador Pena,este líder do grupo de amadores teatrais criou o 1º Agrupamento de Teatro Amador de Condeixa. O local era exíguo e,para além do palco,pouco mais restava para acomodar o público.Mesmo assim,o pequeno teatro esteve em funcionamento até 1828,terminando a actividade devido à luta fratricida entre liberais e absolutistas, que dividiu o País e teve também graves repercussões em Condeixa.
Cerca de vinte anos mais tarde,já saradas as feridas de guerra,um novo grupo de entusiastas conseguiu de Fortunato Maria dos Santos Bandeira a cedência do sobrado de uma casa na Rua Nova(R.Venceslau Martins de Carvalho.O prédio do teatro,é hoje um velho barracão situado em frente ao edifício da Santa Casa da Misericórdia).Este pequeno teatro,de condições precárias,foi inaugurado com a comédia "Barba Roxa" e manteve-se em actividade até 1865,data em que Fortunato Bandeira cedeu os restantes compartimentos da casa.Logo se iniciaram obras que tiveram como efeito o aparecimento de uma casa de espectáculos bastante aceitável para a época.A sala comportava cerca de 200 espectadores e à sua volta foi construída uma galeria à altura de dois metros,no centro da qual,ao fundo, se fez um camarote para o dono do prédio e sua família,única exigência de quem,durante muitos anos, não foi dono da sua própria casa.
Para a inauguração deste teatro,foi escolhida a obra de Almeida Garrett,"O Camões do Rossio",peça dirigida pelo Dr.António Simões dos Reis.Posteriormente outros encenadores assinaram mais grandes êxitos.Entre eles,destacam-se os nomes de António José Pena e António Ferreira Pena,sendo o último considerado o mais competente ensaiador que Condeixa teve.
Entretanto,alguns dissidentes criaram a sua própria casa de espectáculos,curiosamente na mesma rua,o que motivou o aparecimento de uma placa denominando aquela artéria como"Rua dos Teatros".
Evidentemente,a existência de dois agrupamentos teatrais numa pequena vila,gerou grande rivalidade,com a terra dividida nas preferências.A balança pendia para o lado do Teatro do Bandeira,em detrimento do Teatro do Simões, nomes como eram conhecidos os grupos.Apesar da preferência do público, o Teatro do Simões obteve muitos êxitos,tendo inclusivamente tido o mérito de atrair para o elenco a presença de elementos femininos,coisa quase inconcebível para a época.Mas só assim foi possível representar "O Nascimento de Cristo",peça de grande impacto,como se imagina.
Por incrível que pareça, o fim do Teatro do Simões ficou a dever-se a um cortejo carnavalesco.
Um dos maiores êxitos do grupo foi a récita "O Enterro do Catimbau".Esta comédia exigia a presença de um cavalo,mas dada a reduzida dimensão do palco,o ensaiador optou por substituir o equídeo por um asno.Só a passagem do jerico para os ensaios constituía óptima propaganda.
No Domingo Gordo de 1870,um grupo de brincalhões teve a ideia de parodiar a peça.O cortejo começou na Faia e atravessou a vila em direcção ao Paço.Todos os intervenientes da comédia eram troçados o que,como se calcula,acabou por ferir a susceptibilidade de alguns ,que resolveram acabar com a brincadeira.À força,claro,com cabeças partidas e prisão para os desordeiros.Embora na altura se apontasse o dedo aos elementos do Teatro do Bandeira,parece que isso não correspondia à verdade.Seja como for,certa foi a dissolução do elenco e encerramento do teatro.
Agora o Teatro do Bandeira,sem outro a fazer-lhe sombra,prosseguia calmamente o caminho,sempre semeado de êxitos,mas também de episódios deveras curiosos.Um dia,representava-se o drama"Santo António",com a sala cheia.A meio do espectáculo gerou-se um conflito na assistência,tendo alguns espectadores timoratos abandonado a sala e os actores obrigados a interromper a função.Então,Santo António com o seu hábito de franciscano e o Diabo,vestido de vermelho,foram para o meio do público.Lúcifer,de mãos postas,pedia por amor de Deus que acabasse a desordem e Santo António,que fora de cena era o empresário do teatro,gritava palavrões e distribuia generosamente alguns tabefes.Quando o público se apercebeu do ridículo da situação,desatou às gargalhadas e o espectáculo prosseguiu em boa ordem.
De outra vez,António José Pena ensaiou um dramalhão de faca e alguidar,tipo de peça muito ao gosto desse tempo.No dia da estreia a sala estava apinhada.Porém,logo que começou o espectáculo,o público,em vez de se comover com as cenas dramáticas representadas,ria desalmadamente,para desespero do ensaiador.Só ao intervalo é que alguém explicou o mistério.O ponto,um velhote muito alegre e simpático,reagia ao desenrolar da peça como se estivesse a representar.Ria,chorava,fazia esgares e gestos e até indicava as entradas e saídas de cena.Tudo isto passaria despercebido se não fosse a existência de um grande espelho colocado no fundo do palco e que reflectia a actividade do ponto no seu buraco!É claro que os espectadores divertiam-se mais com essas cenas do que com o dramalhão.
O Teatro do Bandeira,apesar do êxito das representações,teve o seu fim 1905.Vale a pena contar as razões que motivaram o término deste notável agrupamento.Dou a palavra aos autores de"Subsídios para a História de Condeixa",Isaac Pinto e Fernando de Sá Viana Rebelo:
«Como tudo na vida,o Teatrinho do Bandeira teve o seu fim.Em 1 de Março de 1905,foram levadas à cena duas peças:"Máscara Verde",comédia em dois actos e "Inquilinos do Sr.Pantaleão",em 1 acto.Foi o último espectáculo que lá se realizou.Os louros conquistados nas últimas representações envaideceram demasiado alguns "artistas" que passaram a notar no teatro defeitos e falhas,como falta de conforto,lotação demasiado pequena,palco exíguo,etc.E tudo virou costas à casa que tão hospitaleiramente e sem interesse recebera a rapaziada de Condeixa.Esta terra é de extremos,ora apoia vibrantemente,ora cai em mórbida apatia.Na hora da debandada,poucos se recordam das noites plenas de emoção que os condeixenses viveram no velho teatro,como por exemplo a inauguração do Orfeão,em 1903,a dos espectáculos da Tuna constituída por sócios da Sucursal do Real Instituto de Lisboa e tantos outros...»
O facto de ter acabado o Teatro do Bandeira,não significa que tenha terminado o interesse pela arte de Talma em Condeixa.
Na verdade,quatro anos depois,António Júlio Monteiro e Joaquim Augusto Simões construíram um barracão,mais ou menos no local onde hoje se situa a firma Coelho&Viais. Tinha vasto palco,camarins e plateia com capacidade para 300 pessoas.
Muitas foram as peças ali representadas,não só por amadores da terra,mas também por grupos profissionais de teatro itinerante,muito vulgares na época.
Também a primeira projecção cinematográfica a que Condeixa assistiu,foi lá apresentada.
Com a implantação da República,o salão passou a servir apenas para sessões políticas.Depois,um incêndio destruiu tudo.
Em 1932,por breve espaço de tempo,funcionou na Quinta de S.Tomé um agrupamento.Mas nesse mesmo ano foi inaugurado o Cine-Avenida e Condeixa passou a usufruir de óptima casa de espectáculos.Embora inicialmente concebida só para cinema,em breve o proprietário a adaptou de forma a poder servir ao teatro.
O Grupo Cénico Dr.João Antunes,recentemente criado,ali representou várias peças e revistas musicais,nomeadamente:"Noites de Santo António","O Solar dos Barrigas" e"Secas e Picadas",esta uma revista de grande êxito,já pela graça dos seus quadros,como pelas músicas admiráveis do Maestro António de Oliveira,canções que continuam a ser escutadas com muito prazer.
Durante mais de três dezenas de anos de existência activa,o Cine-Avenida,a par das projecções cinematográficas,foi inúmeras vezes utilizado para os mais diversos tipos de espectáculos.
O teatro constituiu sempre uma preocupação e uma necessidade cultural de Condeixa.Porém,nunca foi uma actividade constante,antes pelo contrário. Cíclicamente,surgiam arroubos de grande entusiasmo,seguidos de períodos de apatia..Por isso,não é de estranhar,o aparecimento ao longo dos anos,de diversos grupos teatrais.
No princípio da década de 1950,teve preponderância o Clube de Condeixa que criou um agrupamento cénico.Com a direcção de João Pimentel das Neves,encenador com grandes responsabilidades no renascimento do teatro,foi levada à cena uma peça que imediatamente obteve êxito.Tratava-se da comédia em três actos "O Conde Barão".
Também nesse ano,o Externato Infante D.Pedro,recentemente instalado na vila sob a direcção do Dr.Luís Cardoso do Vale,apresentou no Cine-Avenida um espectáculo com duas peças:"D.Filipa de Lencastre",de Almeida Garrett e "Todo o Mundo e Ninguém",de Gil Vicente.Ambas foram protagonizadas pelos alunos do Colégio.
Em 1954,para comemoração do 1º Centenário da morte de Almeida Garrett,reapareceu o grupo do Clube para registar a efeméride, com uma "Semana de Garrett".
Os espectáculos tiveram lugar no pátio do palácio Sotto Mayor,em Agosto de 1954.
Abriu o evento o grupo da terra com a peça em três actos,"O Camões do Rossio"de Garrett.Durante a semana,decorreu um recital de poesia pelo crítico de teatro Goulart Nogueira,uma palestra pelo Dr.António José Saraiva e,a fechar, uma representação do drama de Almeida Garrett,"Frei Luís de Sousa,pelo Grupo de Instrução Tavaredense.
Após esta manifestação cultural,novo interregno até 1956,data da inauguração da Casa do Povo.Novamente o Clube de Condeixa em cena,com duas peças de um acto:"O Tio Simplício",de Ramada Curto e "O Desporto Rei" de Romeu Correia.Por doença súbita do escolhido ensaiador,João Pimentel das Neves,quem dirigiu o grupo foi o Dr.Manuel Deniz Jacinto.
Outra vez a história a repetir-se! Mais uma paragem,sem futuro definido. Novamente Isaac Pinto e Fernando Rebelo,a dizerem:«...Até quando?Não sabemos!As manifestações de colectivismo em Condeixa surgem sempre de repente,pletóricas de entusiasmo e de projectos,mas também morrem depressa e, se vingam,lembram quase todas, pela efémera duração,as celebradas "Rosas de Malherbe"! Porque havia o teatro de fugir à regra?..."
Mas em 1959,por ocasião da homenagem ao Maestro António de Oliveira,decorreu na Casa do Povo uma série de três saraus de música e teatro,fazendo parte deste último, vários quadros da antiga revista"Secas e Picadas".
Já no final da década de 1960,novo agrupamento pertencente ao Clube,apresentou peças por mim,Cândido Pereira,ensaiadas .
Entretanto chegou a Condeixa um animador da então designada Junta de Acção Social,organismo ligado à F.N.A.T.(Fundação Nacional para Alegria no Trabalho),o actor profissional Nunes Vidal,antigo elemento do Teatro Experimental do Porto.Dramaturgo e profundo conhecedor da arte teatral,criou um agrupamento chamado Teatro do Povo,que realizou muitos espectáculos dentro e fora de Condeixa.
Após esta experiencia,outra paragem! Só em 1979 é que foi retomada a actividade teatral,ainda na Casa do Povo.Uma revista e várias peças de teatro foram apresentadas,com a particularidade da criação de um grupo de teatro infantil.
Como essa actividade foi da minha responsabilidade como encenador,prefiro que sejam outros a registar o facto.
Condeixa,Janeiro de 2010-Cândido Pereira