terça-feira, 1 de dezembro de 2009

LUGARES DE CONDEIXA-A QUINTA DE SÃO TOMÉ


A Praça da República,sendo o centro cívico da vila,não era contudo o único local de diversão para a rapaziada do meu tempo,como se calcula.

Principalmente durante o dia utilizávamos outros locais. O Paço,com o respectivo Tanque do Galaitas, a Quinta de São Tomé e às vezes até nos aventurávamos a ir às Ruínas de Conímbriga,na altura sem alguém que impedisse a livre entrada e onde achávamos nos canais subterrâneos moedas que depois vendiamos a um comerciante da terra,por meia-dúzia de tostões.
A Quinta de São Tomé era um sítio lindo,apesar de o edifício já nessa altura se encontrar bastante degradado. Para a recordar,fui um destes dias até lá.

Monstros amarelos afadigavam-se a esventrar as úberes terras daquela que foi a mais antiga e caracteristica exploração agrícola de Condeixa! Não lamento! Quem vê o estado de absoluta ruína a que chegou o vetusto edifício,acaba por concordar ser bem melhor derrubar de vez as paredes centenárias e em seu lugar erguer caixotes de cimento e pejá-los de gente,de preferência moradores que não tenham conhecido a mística daquele maravilhoso lugar!

No breve caminho agora interrompido,as silvas tomaram o lugar das sebes de buxo que o ladeavam.Mas também aquelas plantas silvestres têm um particular encanto,porque dão uns frutos pequeninos,tão minusculos que quase se não notam,tal a sua humildade. Distraidamente colhi um deles e levei-o à boca. É curioso como os sabores se mantêm na memória através do tempo! Ao sentir o gosto agridoce da pequena amora,recuei cinquenta anos na idade e ergueu-se diante de mim a velha propriedade. Era guardada pela familia Pinto e os três imponentes portões de ferro eram abertos de manhã,às Trindades e fechados à noite,pelas Trindades do fim do dia solar.Dentro,apenas ficavam os moradores, a referida familia Pinto,que cuidava como podia da manutenção da casa e a familia Ameixoeiro,que porfiava para que o velho moinho se mantivesse operacional.

Todo o espaço envolvente da Quinta se multiplicava em sítios agradáveis e misteriosos.

A causa de toda essa beleza era o rio que,vindo de Alcabideque,bordejava a Quinta pelo lado nascente e seguia o seu curso rumo a Condeixa,passando ainda por Alfarelos,até se casar com o Mondego.

Este rio,belo em toda a sua extensão,tinha para nós particular encanto,mormente a partir de um local,logo após a Atadoa,o Marachão.Nesse ponto,alargava-se,permitindo espaço para nadar.Uma árvore,salgueiro,suponho,estendia os seus ramos quase a rasar a água,formando trampolim baloiçante para mergulhos.

Mais junto à Quinta,do seu lado sul. o rio dividia-se por necessidade de formação de um nutrido canal que atravessava a propriedade a fim de pôr em funcionamento o moinho.Esta divisão do curso de água motivou um espaço de terreno de forma triangular,rodeado de água por todos os lados,embora na parte mais larga do triângulo o elemento divisor não passar de insignificante riacho.

A este lugar,chamávamos "A Ilha"! Junto a esta,um súbito alargamento e aprofundamento do rio originou a Baixeira-(Bajeira,na gíria popular), outro óptimo local para nadar e onde ainda vi fazer represas para apanhar ruivacos e barbos,ao calcão,quando o peixe abundava! Depois,na passagem contornando a Quinta,caramanchões de figueiras bravas e loureiros,quase encobriam o rio. Não tanto que nos impedisse de nadar,junto ao Olho.

Com tanta água por todo o lado,quem sentia sede? "Água corrente não mata gente,nem de noite nem de dia,nem à hora do meio-dia,Padre-Nosso,Avé-Maria". Afastavam-se as ervas,fazia-se o sinal da cruz e bebia-se na concha da mão!

Quando vinhamos de nadar,da Baixeira ou do Marachão,sentávamo-nos à sombra dos grandes eucaliptos da Ilha,a fumar cigarros de barba de milho embrulhada em papel pardo.Confesso não me recordar do gosto desses improvisados cigarros.Devia ser horrível,misto de palha e papel queimado.No entanto,dava-nos uma agradável sensação de adultos,a deitar fumo pela boca. O nariz não entrava nessas funções,pois fazia chegar as lágrimas aos olhos!

Depois,íamos brincar no pequeno jardim abandonado,na "árvore dos macacos" cujos ramos,(ou raizes?),formavam um interessante entrelaçado,permitindo-nos saltitar,imitando peripécias do Tarzan. Esta árvore,espécie vegetal parece que única no país,foi abatida e vendida como madeira,perante a indifereça e irresponsabilidade de quem devia ter autoridade para o impedir.

Como já referi, a Quinta de São Tomé está hoje totalmente arruinada. A bela Capela,parte integrante do edifício,já não possui os antigos e valiosos azulejos e o telhado ruiu.Porém no seu solo estão ainda os túmulos de alguns dos seus antigos senhores,pessoas que fizeram parte da história desta vila.

Com grande desgosto,tenho vindo a assistir ao progressivo degradar daquela bela construção. Será com maior desgosto que brevemente verei as grandes máquinas do progresso irracional destruírem de vez as centenárias paredes,derrubando inclusivamente a Capela,sem respeito por quem ali repousa!

Por tudo quanto acabo de escrever, a Quinta de São Tomé faz parte do meu imaginário! E querem que lhes diga? Lamento,claro que lamento a sua destruição!


(este texto foi escrito e editado em livro,em 1999.Daí para cá,todo o local descrito foi completamente transformado.Nada hoje faz lembrar o que acabei de descrever. O prédio está irremediávelmente perdido.É pena! Assim desaparece um dos mais importantes monumentos da nossa terra!)
(imagem representada - reprodução de um quadro pintado por Minita, em 2008).