Condeixa e a Implantação da República
Num balanço do ano de 2010 em Condeixa, não podem deixar de ser referidas as Comemorações do Centenário da Implantação da República, iniciadas no dia 5 de Fevereiro e continuadas ao longo de nove meses, sempre no dia cinco de cada mês, até à data chave, 5 de Outubro de 2010, 1º Centenário do dia em que Portugal abandonou o sistema retrógrado da monarquia, absolutista ou liberal, mas sempre uma forma de imposição de alguém que, por nascimento, considerava ter autoridade sobre os seus semelhantes.
Omito as oito primeiras sessões porque, razões de ordem vária, me impediram de estar presente.
Assim, apenas vou dissertar sobre a sessão que finalizou o ciclo, também com o intuito de homenagear os condeixenses que arriscaram o sossego, a posição social e o bem-estar familiar, para lutar por um sonho, por uma forma política que terminasse de uma vez com as discriminações sociais.
Infelizmente, sabemos hoje, nada disso foi conseguido. Mas, no dia 5 de Outubro de 1910, esses valorosos lutadores da liberdade, estavam convencidos que, finalmente, a luta chegara ao fim.
Falar da República, em Condeixa, é evocar o nome ilustre do Dr. Juiz António Pires da Rocha. Aliás, o apelido desta família é sinónimo de prestígio na vila. Desde Fortunato Rocha da Fonseca que em 1877 comprou a Farmácia Gama (actual Farmácia Rocha, o mais antigo estabelecimento condeixense, sempre do mesmo ramo), a seus filhos, Dr. António Pires da Rocha, juiz; Comandante Fortunato Pires da Rocha, oficial superior da Marinha de Guerra e Dr. Júlio Pires da Rocha, farmacêutico e criador de vários medicamentos. Sem esquecer um dos mais jovens membros da família, Manuel Rocha, Director do Conservatório de Música de Coimbra e violinista de craveira, neto do Dr. Juiz.
Com a intenção de homenagear gente da minha terra que …”por obras valorosas se vão para além da morte libertando!”, faço a biografia do Dr. Juiz Rocha, utilizando para isso as informações que, no dia 5 de Outubro de 2010 seu filho, Fortunato Batista Pires da Rocha, leu perante a Assembleia reunida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Condeixa:
“ António Pires da Rocha nasceu em Condeixa no dia 9 de Dezembro de 1884 e aqui faleceu em 31 de Julho de 1954. Era filho de Fortunato Rocha da Fonseca, farmacêutico, e de Teresa Jesuina Pires do Rio.
Frequentou a Escola Primária de Condeixa, sendo seu professor Francisco Maria Simões de Carvalho. Em Outubro de 1896, foi estudar para o Liceu Nacional Central de Coimbra. Com o colega e amigo Carneiro Franco, mais tarde deputado da República, ainda meninos, fizeram-se políticos, entrando para um grupo de livres-pensadores. Em 1904 matriculou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, num período de grande agitação política. Em 1905, inscreveu-se no Partido Republicano Português. Foi co-fundador do Centro Académico de Coimbra e do Centro Republicano de Santa Clara. Fundou e foi professor, gratuitamente, durante três anos, de um curso nocturno no Centro Republicano de Santa Clara, ensinando a ler inúmeros operários de Santa Clara e da cidade. A sua acção política e conspirativa atingiu o máximo durante a greve Académica de 1904, da qual foi um dos intransigentes, e nos anos que se seguiram, até à implantação da República.
Em 6 de Outubro de 1910 esteve presente, assinando a Acta da Proclamação da República em Coimbra, feita pelo Dr. Fernandes Costa, o qual, de seguida, foi ocupar o lugar de Governador Civil.
Em Condeixa, (o Dr. Juiz Rocha) foi Administrador do Concelho desde 7 de Outubro de 1910, a 17 de Março de 1913,data em que pediu a exoneração, por se ter constituído o 1º Governo partidário, chefiado pelo Dr. Afonso Costa. Em 7 de Dezembro de 1913, foi eleito Presidente da Câmara de Condeixa, renunciando aos vencimentos, a favor da autarquia. A 26 de Junho de 1914, pediu a demissão por optar pela carreira da magistratura. (nomeado Delegado do Procurador da República, em Miranda do Douro).
Durante o período em que foi Administrador do Concelho, houve várias tentativas monárquicas para derrubar a República. Nunca prendeu nenhum adversário político, embora fosse instigado a isso. A D. Joana Lemos era acusada de aliciar conspiradores para as hostes de Paiva Couceiro (líder monárquico) e veio um oficial a Condeixa para a prender. Foi aconselhado a ouvi-la em auto, mas que a deixasse em liberdade, o que fez. Assumiu a responsabilidade da manutenção da ordem e de facto nunca houve a mínima alteração. Opôs-se a todas as violências e protegeu a religião e os padres, por entender que a liberdade era para todos. Promoveu a reparação do telhado da Igreja, acabando com a especulação, principalmente da D. Joana Lemos e da D. Marquitas Bicho, que diziam que a República queria acabar com a religião e vender o edifício da Igreja. Assistia às sessões da Câmara e orientava os vereadores no sentido de criarem escolas e fazerem melhoramentos públicos. Acabou com a mendicidade dos “passageiros”, dando-lhes de comer do “rancho” dos presos e pagando as rações do seu bolso.”
Das memórias do Dr. Juiz Rocha, constam vários episódios do período inicial da República. Como esse texto é longo, vou procurar resumi-lo, relatando apenas alguns extractos mais relevantes, ocorridos após a exoneração, a seu pedido, do cargo de Administrador do Concelho. Para o seu lugar, foi nomeado o Dr. José Luís de Almeida que “… se encostou ao Francisco de Lemos e aos seus partidários monárquicos e moveram guerra sem quartel aos antigos correligionários que se haviam passado para a República”.
E continua o Dr. Juiz Pires Rocha:
“Em Condeixa só eu era livre-pensador mas, por isso mesmo, não hesitei em colocar-me ao lado dos padres de Condeixa-a-Velha e Zambujal, os únicos que não pertenciam à facção do Francisco de Lemos (casa Lemos Ramalho) …O padre do Zambujal era Joaquim Augusto da Silva, pessoa tímida e inofensiva. Pois para o assustarem, uns meliantes amigos do Lemos atiraram numa noite uma bomba de morteiro contra a sua janela. Os mesmos indivíduos noutra noite entraram na Igreja, arrombaram a caixa das esmolas e urinaram no pavimento. O padre Silva ficou muito desgostoso com estes actos de vandalismo e eu aconselhei-o a queixar-se à autoridade policial a qual por fim pronunciou alguns deles, sendo condenados, mas ficaram pouco tempo na cadeia porque beneficiaram de uma amnistia. Também se deu um caso bastante grave com o toque do sino às almas. Desde tempos imemoriais, o toque correspondia ao recolher. As pessoas retiravam-se para as suas casas e ali rezavam o Pai-Nosso e a Ave-maria, pelas almas dos seus parentes. Não havia alarde de religiosidade, mas a recordação saudosa dos seus mortos queridos. O toque das almas consistia em certo número de badaladas um pouco espaçadas, que não incomodavam ninguém, até serviam para lembrar a toda a gente que eram horas de deitar. Em Condeixa tocava-se às almas todas as noites, mas no Zambujal era só na Quaresma. O Administrador do Concelho resolveu proibir o toque no Zambujal, por acinte contra o padre Silva, mas permitindo-o nas outras freguesias… O padre Silva escreveu-me a pedir para o aconselhar e eu, depois de me certificar que não havia na Lei sanção contra o toque, a não ser a desobediência à ordem do Administrador, instiguei o padre a que mandasse tocar o sino. A ordem do Administrador não era de acatar, visto que ele não fez afixar editais a proibir o toque dos sinos…O pior é que o Administrador pediu ao Governador Civil para mandar a polícia e depois uma força do Regimento de Infantaria 23, para manter a proibição…porém, à hora de tocar o sino não apareceu a polícia nem as tropas e eu mandei tocar o sino, para satisfação de todo o Povo. No dia seguinte chegou a polícia e depois a tropa. Então, mandei telegramas para o Presidente do Conselho de Ministros, Dr. Bernardino Machado a protestar contra a proibição e responsabilizando-o pelo sangue que fosse derramado em virtude do abuso da autoridade…em breve o Administrador recebeu ordem para autorizar o toque dos sinos. O Povo queria e por isso era justo respeitar a vontade do Povo…A República estava na infância e os chefes, em vez de se entenderem e de continuarem unidos até ela crescer e se consolidar, deram largas às suas incompatibilidades pessoais, às suas vaidades e ambições de mando.”
Era assim o Dr. Juiz António Pires da Rocha. Homem justo, democrata leal às suas convicções políticas e, fundamentalmente, sempre de coração aberto, pronto a intervir onde a justiça e o bem-estar do povo exigisse a sua presença. É com Homens deste gabarito, que se constrói a História de um País!