continuação
Entre os Pelomes e o antigo Beco do Seiça(Travessa Nunes Vidal),era o estabelecimento de Constantino Martins Quintas,natural de Santo Tirso e que para lá voltou com a família,após vender todos os seus bens em Condeixa.O espaço onde hoje a Santa Casa da Misericórdia possui serviços de apoio,ao cimo da Palmeira ,era de sua propriedade.
No largo em frente à loja,tinham lugar os maiores festejos dos Santos Populares no bairro.Uma grande fogueira alimentada por todos os trastes sem serventia dos vizinhos,dava o pretexto para os rapazes mostrarem às raparigas a sua valentia,saltando arrojadamente o alto fogaréu.No Beco do Seiça,logo depois do cotovelo da estreita viela e pegada à cavalariça do Dr.Juiz,onde mais tarde os seus filhos e alguns colegas formaram um arremedo de república estudantil,a República das Catacumbas,morava a Ti Cecília,parteira sem diploma,mas muito sabedora na prática de trazer ao mundo uma nova vida.Se calhar,todas as crianças de Condeixinha,pelo menos as nascidas nesse tempo,foram por si aparadas.
No largo,em frente ao beco,morava uma das figuras chave da minha infância,o Luís Pocinho que,já adulto, partiu com a família para o Brasil e lá se radicou.
Dotado de forte personalidade,tinha os requisitos para ser um líder.De certa forma,até o era,pelo menos para a garotada desse tempo.Muitas vezes rude,mas sempre franco e leal,conseguia impor a sua vontade com determinação.
Convivi muito de perto com ele,não só porque éramos condiscípulos e companheiros de jogos de futebol na Praça e de outras aventuras mais ou menos contáveis,mas também porque quando terminou a instrução primária,ingressou como aprendiz do meu pai,na altura electricista do Palácio Sotto Mayor,com a oficina dentro dessa propriedade.
Abro aqui um parêntesis para poder dar uma perspectiva do que era o Palácio naquele fim da primeira e princípio da segunda metade do século XX.
Quando Condeixa teve direito a usufruir dos benefícios da electricidade,em 1932,já o Palácio gozava desse privilégio há muito,mercê de uma central de produção de energia eléctrica,a partir de um motor de combustão.Mais tarde,com a electricidade a ser recebida por linhas exclusivas exteriores,essa central passou a servir apenas de apoio ao consumo da casa quando este era excessivo ou se verificava alguma falha no abastecimento.A central passou então a ser a oficina onde o meu pai exercia a profissão,quer reparando aparelhos da entidade empregadora,quer fazendo trabalhos por sua conta,bobinagem de motores ou construção de baterias para automóveis e reparações destes.
Foi nessa altura que o Luís ingressou num grupo onde eu e os meus irmãos já pontuávamos.
A Quinta do Palácio,linda com os seus jardins de rendilhadas sebes de buxo,coleantes lagos artificiais,terraços,palmeiras,a enorme quinta de arruamentos traçados a régua e esquadro,muitas árvores de fruto e tanques de água,com a particularidade de um deles ter uma casa no meio,um bonito e exótico pavilhão de caça,funcionava,quando os seus proprietários se encontravam em Lisboa,o que era frequente,como nosso lugar privilegiado especialmente aos domingos,para aventuras e caçadas às espécies aladas relativamente abundantes e para passeios de bicicleta.É claro,nas bicicletas das "meninas do Palácio",filhas dos proprietários da quinta.
E é a propósito de bicicletas que conto um episódio protagonizado pelo Luís.
Durante as férias grandes, as "meninas"passavam os dias em corridas pela quinta.Sempre que as máquinas precisavam de qualquer pequena reparação ou de ar nos pneus,dirigiam-se à central buscando o nosso auxílio.E tinham especial preferência pelos serviços do Luís.
Como elas tinham altura física desigual e as bicicletas não chegavam para todas,constantemente estavam a pedir para subir ou baixar os selins.Até que o Luís,farto de as aturar,disse para o meu irmão:"Sr.Zeca,agora vou mudar de nome,passo a chamar-me "Luís Selim,Upa-Upa"!
São tantas as aventuras que vivemos em comum,suficientes para encher muitas páginas.Um dia,quem sabe,talvez o farei.Apenas porque esse nosso glorioso tempo retrata uma época da vida condeixense.
A seguir à casa do Luís e a querer avançar para a rua,era o talho do Fontes.No andar de cima,estava instalado o Cartório Notarial dirigido pelo Dr. José Pedro,cujo fino humor não deixava escapar a mais pequena oportunidade de empregar a veia poética para,com ironia cáustica,ridicularizar quem merecia.
Na porta ao lado da íngreme escada do Cartório,a taberna do Joaquim Loio onde íamos vender ferro-velho.Tinha duas filhas,sendo a mais velha uma das mais bonitas jovens de Condeixa.
Na sequência das estreitas moradias,destacavam-se três casas,pelos seus portões:o talho do Fontes,a taberna do Lóio e a cocheira do velho António Fontes,por esta ordem. Este tinha uma caterva de filhos e era um homem agreste.Talvez não fosse estranho a isto,o facto de ser negociante de gado.Diziam ter pisado um arco de pipa que lhe provocou grave ferimento na canela de uma das pernas.Em vez de ir ao médico,resolveu fazer ele próprio o curativo com os remédios usados nas mazelas dos animais.O resultado foi uma grave infecção seguida de gangrena,sendo necessário fazer a amputação daquele membro inferior.
O mau feitio acentuou-se depois deste desaire.Recordo-me de o ver à porta,sentado num banco e tratando mal quase toda a gente.
A seguir,era a casa da Ti Lina Rasteira(Resmunga).Um dos filhos,o António,era deficiente das pernas.Locomovia-se com grande dificuldade,mas mesmo assim acompanhou um dia o Zé Chorina até ao Paço.Foi no inverno e o tanque do Galaitas estava cheio.Assim transbordante,as rãs repousavam na borda e o António tentou apanhar uma.Infelizmente desequilibrou-se e caiu à água.O Zé ainda tentou socorrê-lo mas não conseguindo,correu à quinta do Paço(hoje Pousada de Santa Cristina),a buscar auxílio.Quando a ajuda chegou,já o infeliz tinha sucumbido.Este foi o único acidente grave registado naquele tanque,tantos anos servindo de piscina da vila.
Na casa ao lado,morava a Ti Adelaide Cavaca,mãe da Soledade e da Conceição.
Creio não errar se disser que as Cavacas eram das mais características moradoras de Condeixinha.E se o bairro tinha gente que se distinguia dos demais habitantes da vila!
A Soledade foi uma das figuras típicas de Condeixa.Com um feitio algo rude e por vezes demasiado extrovertido,tão depressa se zangava,como no momento seguinte já não era nada com ela.Com os seus oitenta e tal anos,era uma memória viva destas últimas quatro dezenas de anos.Também graças a si consegui recordar alguns factos para estas crónicas.
Pouco tempo antes de morrer súbitamente,contou-me uma "estória" que retrata a sociedade provinciana e bacoca da velha Condeixa.
A casa onde actualmente está o Restaurante Madeira,na Praça,foi em tempos uma loja de fazendas.Já depois de ser encerrada,um grupo de jovens pediu o local ao proprietário,Justiniano Geraldes,para ali realizar um baile ,ao qual só teria acesso quem tivesse convite.E estes eram apenas para as "meninas de meia-tigela"(nas palavras da Soledade),ou seja,as burguesinhas da terra.É claro que raparigas como ela,"criadas de servir",não tinham lugar na festa.
Mas José Rasteiro Relvão(Zé Moca),maroto como sempre e com o secreto desejo de ridicularizar os promotores do evento,ofereceu-lhe uma entrada.À noite, foi com a mãe ao baile.Como tinha convite,o porteiro deixou-as entrar.Porém lá dentro,os elementos promotores ficaram escandalizados com a situação e um deles dirigiu-se à Soledade pedindo-lhe para mostrar o convite.Na impossibilidade de expulsar quem estava devidamente documentada e temendo o escândalo,tiveram de aceitar a situação,para desagrado das "meninas" presentes.Entretanto a Soledade,apercebendo-se do que se estava a passar,dançou uma última valsa,como só ela sabia e abandonou o local onde não era desejada,mostrando que os humildes também têm orgulho e não se submetem a subserviências gratuitas.
Ao lado da Ti Adelaide,morou o Zé Caleiras,marceneiro e construtor de móveis modestos.Nunca recusava os pedidos da garotada para fazer rodas de carretas ou construir carros com as caixas de sardinha,dadas ou rapinadas à Ti Maria Barbeira.Nesses carros desciam depois os miúdos ladeira abaixo em corridas só travadas por trambolhões a provocar esfoladelas e cabeças partidas.
A irmã do Zé Caleiras era especialista a "tirar o quebranto",uma prática que consiste na utilização de um prato com água onde se vão vertendo gotas de azeite,acompanhando o acto com rezas, para exorcizar pragas e maus-olhados.
Contava-se que o Caleiras,indo um dia de bicicleta,atropelou uma mulher.Em vez de socorrer a pobre estatelada no chão,disse:"Ó Maria,calha bem porque queria falar contigo!"
continua