continuação
Depois deste passeio sempre agradável pela Lapa,voltamos ao ponto de partida e deparamo-nos com uma das mais bonitas e pitorescas casas de Condeixa,com um azulejo no vértice do frontão indicando tratar-se da "Vila Celeste".Apesar de desvirtuada pelo acréscimo de escada exterior e alpendre,houve no entanto o bom senso de caiar as paredes de branco,com lambrim azul.
Quando no século XIX se efectuaram obras de rebaixamento da rua,as casas já existentes adquiriram patamares para compensar o desnivelamento.Por essa razão,o sítio passou a designar-se "Rua dos Balcões".
A "Vila Celeste" era propriedade de António Florentino,antigo sargento do exército.Possuia uma velha motocicleta barulhenta e daí talvez lhe viesse a alcunha como era conhecido:"Sargento Gasolina".
Mais além,a "Fonte das Bicas"que,apesar do nome,tem uma bica só.Até 1950,data da concretização do abastecimento de água ao domicílio,a única forma de obter o imprescindível liquido,era recorrer às fontes da vila:Bicas;Outeiro;Amores;Caraça;Lapa e da Costa.Mas no inverno,as que ficavam em cota inferior ao caminho,enchiam-se de lama,tornando impossível a sua utilização.Tal acontecia com a Fonte das Bicas.
Esta fonte tinha de facto três saídas e localizava-se um pouco mais acima , do outro lado da rua,numa cova com único acesso através de escada.A pedido dos moradores desse tempo,prejudicados com as precárias condições da fonte,a Câmara reuniu,curiosamente pela última vez em que estiveram presentes os representantes dos três Estados:Clero;Nobreza e Povo,decidindo mandar construir outra fonte.Mais tarde,em 1930 foi restaurada e ficou com o bonito aspecto que ora ostenta.
Nunca este manancial secou,mesmo durante os mais prolongados estios.A sua água era pura e fresca.Hoje continua fresca,mas já não é pura!
Depois,é a Rua de Entre-Moinhos,como o nome indica,local de mais alguns dos muitos engenhos existentes em Condeixinha,alguns de rara beleza,como era o caso do que se encontra ao fundo desta rua,agora completamente adulterado na sua traça original.
Na cortada para a Várzea,num canto formado com a ladeira do Penedo,em terreno cedido pelo Palácio,construiu o Zé Pato uma habitação,quando foi despejado da casa onde vivia,na Senhora das Dores,para nesse local construirem o depósito da água.
O Zé Pato,pedreiro de profissão,tinha muitos filhos,situação comum a muitas famílias daquele tempo.Quando um dia o Dr.Celso Franco,primeiro dentista a ter consultório em Condeixa,lhe chamou a atenção para o número excessivo de filhos,com uma família de tão fracos recursos,respondeu:"Que quer,Sr.Dr.,isto é o arroz doce dos pobres!" Hoje existem outras formas de passar o tempo agradavelmente,como por exemplo,ver televisão...por isso,agora as famílias são mais pequenas!
Voltando à ladeira de Condeixinha,topamos logo com esse terrível obstáculo de pedra,causador de tantas cabeças e dentes partidos a quem descia de bicicleta com velocidade fora do normal.Refiro-me às designadas "escadas do Zé Curto",embora o estabelecimento deste fosse um pouco mais abaixo.
Das muitas lojas da vila,arrisco-me a afirmar ter sido a loja do Zé Curto uma das mais peculiares.
Misto de taberna,adega,mercearia,venda de lenha para queimar no fogão,agência de seguros e"banco particular",comercialmente dominava pelo menos meia Condeixinha.Mas os lucros daí advindos,não seriam significativos.Muitas vezes assisti a pequenas compras de cinco ou dez tostões de açúcar,café ou arroz.Bem sei que"grão a grão,enche a galinha o papo",no entanto creio terem sido os lucros mais abundantees obtidos no empréstimo de dinheiro com altos juros.
O Zé Curto,perdão,os Zés,pois quem geria o estabelecimento eram pai e filho,ambos com o mesmo nome,faziam amiúde alarde da grande fortuna,afirmando medirem o dinheiro que possuiam,em alqueires de moedas!
No entanto eram pessoas muito simpáticas e agradáveis.O Curto pai,costumava brincar comigo,prometendo emprestar-me a"cabeça da víbora",hipotético amuleto infalível para conquistar raparigas.
Um pouco abaixo e do lado contrário,numa casa a vançar para a rua,morava o António Ferreirinha(Renola),motorista de longo curso.O Fernando,seu filho e meu condiscípulo,quando terminou a escolaridade,aprendeu no Tagarela o ofício de barbeiro.Mais tarde radicou-se em Alpiarça.O seu relacionamento com o pai era péssimo.Num pátio que existe ao lado,o pai um dia,como castigo,amarrou-o à estaca que prendia o burro e deixou-o em companhia da alimária toda a noite,como também se tratasse de um animal.
Pegado ao pátio,a mole imensa de um edifício com escada exterior que atenua um pouco a monotonia das linhas arquitectónicas.Pertence à família Bandeira e antigamente tinha um vasto salão de espectáculos com um pequeno palco.Ali se realizaram muitos bailes de agradável memória.Também foi sede da Música Velha,até à extinção desta.O piso érreo era utilizado como garagem,mas também serviu para realização de bailes.
Em frente,morava António Alves(Tónio Amâncio),pintor da construção civil.Um artista!Dava gosto vê-lo pintar com grande precisão os finíssimos traços nos quadros das bicicletas!
Era um homem profudamente espiritual,muito dado a coisas do além.Das muitas "estórias" que me contou,destaco duas.
Dizia a crença popular existir junto à Capela da Lapa um tesouro escondido sob a terra.Ele e um companheiro tentaram descobrir tal maná.Munidos de pás e enxadas,certa noite dirigiram-se ao local e abriram um buraco no solo.Quando já tinham atingido alguma profundidade sem encontrarem o desejado,decidiram sair da toca.Nesse momento,alguém de fora,com voz cavernosa,indagou se precisavam de ajuda.
A noite era negra,o local ermo e a consciência de que estavam a perpetrar algo incorrecto,tudo em conjunto levou-os a pensar tratar-se do diabo que vinha ali castigá-los por ousarem perturbar as suas profundezas.
No dia seguinte,nem sequer se conseguiam lembrar como dali tinham fugido até casa!
Quanto ao tesouro, lá estará,porque após a divulgação deste episódio,ninguém mais teve coragem de desafiar Satanás,legítimo guardião das coisas ocultas.De outra vez,vinha da Eira da Caldeira, localizada em frente à cortada para o Travaz,onde amanhava um terreno ao ano.Já era noite e o lugar nesse tempo não tinha vivalma.Parou para levar um cigarro à boca.Quando procurava os fósforos no bolso,alguém lhe perguntou se queria lume.Olhou para o lado e viu um alta figura toda vestida de negro.Convencido que Lúcifer voltava para o castigar da aventura da Lapa,desatou a correr,completamente aterrado e só parou em casa.Não me disse,mas certamente os fundilhos das calças deviam cheirar mal,após este susto.Admitindo,claro,a sua veracidade!
"Estórias"assim,contadas com a convicção de quem as viveu,ou imaginou e acreditava piamente no transcendental,não davam vontade de rir,antes pelo contrário.Muitas outras lhe ouvi e,confesso, ficava sempre impressionado!
Mais adiante era a casa de Joaquim Duarte Pessoa(Cachareto).Foi o solar do Conselheiro Quaresma e tinha,em tempo que não o meu,grande escada exterior,à semelhança do prédio fronteiro.Quando da reconstrução,a escada foi demolida mas ficou um nicho do Senhor dos Passos no lugar da antiga capela.
Hoje há uma estrada a cortar Condeixinha,mas antigamente o bairro estendia-se até ao Travaz.
Antes da cortada para o solar da família Bacelar,morava um senhor que era carteiro e deslocava-se de bicicleta quando executava a função.Porém,só subia ou descia do veículo quando tinha um ponto para apoiar os pés.Contava-se que um dia,ao regressar da distribuição,ao início da descida de Condeixinha poisou-lhe um moscardo na mão,começando de imediato a sugar-lhe o sangue.A ladeira não tinha qualquer sitio que lhe desse garantias de se apoiar e descer da bicicleta em segurança,por isso decidiu seguir até casa.Ao chegar lá,apeou-se com todo o cuidado e preparou-se para matar o maldito moscardo.Só que este,já saciado,resolveu bater as asas e escapar ao merecido castigo!
Está terminada esta viagem no tempo pela velha Condeixinha.Decerto muitas outras "estórias" ficaram por contar,mais moradores mereciam também ser recordados nestas crónicas.Infelizmente a memória não conseguiu reter outros factos dignos de registo.
Dei-me ao trabalho,agradável, de escrever as minhas recordações de um tempo antigo,porque sei que elas se vão dissipando,não restando em breve quem ainda se lembre como era aquele alegre bairro.
Procurei relatar apenas episódios onde a dignidade dos protagonistas não fosse ofendida.Se num caso ou noutro alguém achar que faltei ao respeito a quem devia,creia que não tive má intenção.
Gostaria que este trabalho pudesse contribuir para um dia ser escrita a real história de um povo simples e trabalhadorEsta é a minha homenagem aos antigos habitantes de Condeixinha.
Condeixa,Julho de 2006 Cândido Pereira