LUGARES DE CONDEIXA- A AVENIDA
(1ªparte)
A vila de Condeixa passou, nestes últimos vinte anos, por profundo processo de alteração, quer no centro, com a reabilitação de locais degradados (Palácio dos Figueiredos, transformação do Quintalão em Praça do Município, etc.), quer na periferia, com a construção de novos bairros.
A última e mais significativa modificação, diz respeito à Praça da República. Do vasto espaço enquadrado por frondosas tílias, nada vai restar além das árvores e, miraculosamente, o Rio do Cais. A Praça passa a ter um aspecto modernista que, na minha opinião, não está condizente com as características do local. Há quem seja de opinião que vai ficar mais bonita. É possível. De resto, a Praça e todo o espaço envolvente, têm sofrido tantos atentados arquitectónicos, que já nem vale a pena insistir nas críticas.
Mas a grande alteração com efeitos de primordial importância para o desenvolvimento da vila, ocorreu no final da década de 1920. A Praça, já baptizada da República logo após a implantação desta, era um acanhado largo em frente do palácio viscondes de Alverca, um bonito prédio colado à Igreja e estendendo-se até cerca das actuais instalações do banco Millenium. O edifício, como é sobejamente sabido, foi incendiado pelos franceses há, completam-se em breve, 200 anos (13 de Março de 2011). A propósito, espero que as entidades oficiais façam a justiça de assinalar esta data fatídica, quanto mais não seja colocando nas janelas dos prédios que sobreviveram à fúria de Massena e Ney, uma vela acesa em memória, não só do património destruído, mas dos muitos condeixenses cobardemente assassinados.
A Câmara Municipal, liderada pelo Tenente José Pires Beato (não resisto a fazer a ligação de dois responsáveis por modificações estruturais do local: um Beato e um Bento. Isto é que é religiosidade!), adquiriu o velho palácio, nunca totalmente recomposto do sinistro, embora parcialmente habitado, demolindo-o. As memórias do Sr. Ramiro de Oliveira dizem: “…e a casa Alverca cedia gratuitamente os terrenos para abrir uma avenida e o Mercado Municipal, mas condicionava essa oferta: a abertura tinha de ser rigorosamente feita ao centro do terreno para que a doadora pudesse lotear e vender os terrenos laterais para construções. Assim, a orientação dessa nova artéria com cerca de 250 metros ficou desde logo traçada. Mas o desejo da Câmara era ligá-la à primeira rua aberta (a Rua dos Combatentes da Grande Guerra) e, nesse sentido, já entrara em contacto com o Visconde da Quinta de S. Tomé, proprietário dos terrenos confinantes. Era desejo geral então que a Avenida seguisse em linha recta, o que se tornava impossível devido à Levada da Serrada que alimentava um moinho e o lagar de azeite (à data, o melhor do concelho). A cedência do terreno necessário para o prosseguimento da Avenida seria igualmente gratuita, mas…só passando em frente ao lagar! Não havia outra opção e a Câmara teve de aceitar. Eram mais 120 metros de extensão de terreno que recebia gratuitamente, embora o proprietário beneficiasse da valorização do restante, mas assim a Avenida encontrava o seu ponto de saída, embora maculada por um cotovelo que não foi possível evitar-se”).
A propósito de cotovelo, numa das revistas musicais de Condeixa (Secas e Picadas), havia um quadro dedicado à Avenida e cantado pela Maria Branquinho (num folheto de publicidade do espectáculo, em 24 de Maio de 1936, figura com o nome de Maria Florêncio e cantava também Condeixinha e Hospital. Era mãe de Manuel Branquinho Flório dos Santos, Provedor da Santa Casa da Misericórdia). Cantava assim:
Eu sou a linda Avenida
Futuro bairro elegante
Há quem diga mesmo até
Que sou um pouco pedante
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Já sou torta de nascença
Tarde ou nunca me endireito
É a tristeza maior
Que trago dentro do peito! (e por aí fora)
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Assim nasceu a Avenida, registada de Alverca.
Abriam-se novas portas para a expansão da então pequena vila, onde as ruas eram caminhos de terra batida. Começaram de imediato as construções de prédios, tanto na Avenida, como na rua da Água, baptizada com o nome de rua Manuel Ramalho, até ali uma vereda, mais propriamente um caminho de campo.
A franquear a Avenida, dois prédios diferentes, mas ambos de traça característica. Um, ainda existe tal como foi construído e nem a transformação do estabelecimento do rés-do-chão lhe alterou o aspecto original. Infelizmente o outro foi completamente modificado. As sólidas paredes serviram de base a um inestético edifício, sucursal de estabelecimento bancário. Foi pena que tal tenha acontecido! Na altura, um responsável autárquico argumentou, não sei se com verdade, que o referido banco impôs, para abertura da sua sucursal, que ela fosse construída da forma como queriam. Como se tratava de um projecto (supostamente) de interesse para a vila, foi autorizado. Já com a construção da Pousada de Santa Cristina tinha sucedido algo parecido. Embora existisse um estudo elaborado por entidade específica (a empresa Consulplano) contratada pela Câmara, que recomendava o Paço dos Almadas e espaço circundante zona histórica a preservar, nem sequer as paredes foram aproveitadas, sendo o palácio totalmente demolido.
Regressando à Avenida, outro prédio digno de registo, foi também construído com a abertura da via, o Cine-Avenida, inaugurado em 1932.
Não vou falar deste cinema e da sua importância cultural para Condeixa, porque num outro local do meu blogue ele teve direito a rubrica própria.
A década de 1930 tinha começado com a abertura da Avenida e, quase de imediato começaram a surgir prédios que a valorizaram. Desses, restam ainda a antiga Farmácia Alves (ou, como era antes de mudar de local, Farmácia Ferreira), os dois prédios em frente, onde actualmente há um restaurante e ao lado uma papelaria. Mais acima os celeiros da Casa Alverca, dois prédios semelhantes separados por um pátio e um portão sobre o qual está a pedra heráldica dos proprietários. Depois e do outro lado, um degradado edifício com loja de utilidades, seguido pelo prédio onde esteve instalada a Caixa de Crédito Agrícola, já a virar para a rua Dr. João Antunes.
A Avenida Visconde de Alverca, se calhar pela nobreza do nome, foi talhada para ser moradia de gente rica ou, pelo menos, de finanças folgadas. Assim, os dois prédios que lhe dão início pertenciam a abastados comerciantes. A Farmácia, que inicialmente estava instalada no Outeiro, era também a residência da família do Dr. José Esteves Alves, activo membro de todas as manifestações culturais, tendo dirigido em 1939 o Grupo Cénico Dr. João Antunes, na opereta em 3 actos “O Solar dos Barrigas”. Os médicos, Drs. Alfredo Pires de Miranda e Fernando Namora, tiveram os seus consultórios numa interessante casa que já não existe. E não existe também a linda vivenda da D. Irene, rigorosa professora primária que deixou muito más recordações nas alunas, por causa da forma severa como ministrava as suas aulas.
O grande edifício castanho onde está instalada a Segurança Social, foi construído já em finais da década de 1940. Assim como o prédio em frente à travessa de acesso à Praça do Município e que foi mandado fazer pelo comerciante de peixe, João de Matos, para sua habitação. Mais tarde, no início dos anos cinquenta, o Dr. Luís Cardoso do Vale instalou aí o Externato Infante D. Pedro, estabelecimento escolar que veio de certa forma substituir o colégio particular do professor António Mateus, mas com vantagem, pois habilitava os alunos até aos exames do 2ºCíclo dos Liceus (5º ano). A instalação deste Externato revelou-se de grande importância para a vila. Muitos jovens não teriam tido a hipótese de estudar, se fossem obrigados a ir para Coimbra. Inicialmente, o corpo docente era composto pelo próprio Director, por sua esposa, Dr.ª Teresa Vale e mais alguns professores vindos de fora da terra.
Logo adiante, curvando para a rua Dr.João Antunes, o Mercado Municipal, inaugurado em 1935, como se lia no painel de azulejos sobre o portal. Ocupando todo o espaço agora pertencente ao quartel dos Bombeiros, este mercado esteve sempre vocacionado para a venda de peixe mas, no espaço onde actualmente está instalado o Cine- Teatro, alinhavam-se vários portões em direcção ao rio, cada um correspondendo a estabelecimento de venda de carnes, frescas e salgadas.
As moradias, exclusivas até ao final do primeiro troço da Avenida, passaram a ter outras funções, como no caso da já mencionada casa onde esteve há bem pouco tempo a Caixa Agrícola, naquele tempo garagem onde João de Matos recolhia as suas camionetas de transporte de pescado. Do outro lado, há um bonito prédio, que pertencia a Elvira de Matos, com o rés-do-chão ocupado pelo estabelecimento de António Magalhães Castela.
Antigamente brincava-se “a sério” no Carnaval em Condeixa. Cortejos parodiando temas do momento, caça ao chapéu dos incautos que cruzavam a Praça na terça-feira, bailes, e o “deitar do badalo”. Esta última prática, massacrante para quem tinha a desdita de sofrer o cadenciado e enervante batimento da pedra na porta, só resultava em gáudio para os brincalhões, se o visado “afinava”.
A vila (não só, porque em outros lugares do concelho também se deitava o badalo) tinha casas pré-referenciadas onde moravam pessoas avessas à brincadeira. E ninguém detestava mais o badalo que António Magalhães Castela!
Morava ele na já referida casa de sua sogra, Elvira de Matos. Ao lado, quase paredes meias, vivia José Alcobaça que tinha à frente o gradeamento do Mercado. A Avenida, à noite, escura e sem movimento quer de pessoas, quer de veículos, permitia que José Alcobaça passasse uma corda pelos tubos do gradeamento e fosse prender o badalo na porta do vizinho. Depois, da sua janela ia puxando paulatinamente o cordel. António Castela acordava furioso com o barulho e vinha à janela. O brincalhão vizinho dizia-lhe que os marotos perturbadores do sono alheio estavam escondidos na rua Dr. João Antunes. Era quanto bastava para ele ir buscar a espingarda e disparar furiosamente na direcção indicada.
O prédio onde morava José Alcobaça era um perfeito “viveiro” de gente característica. No rés-do-chão habitava Manuel Alcobaça (Baixinho), proprietário e condutor de um carro de aluguer (Chevrolet) que estacionava na Praça, onde agora se encontra o chafariz. Homem extremamente económico, dava-se ao trabalho de empurrar o carro, mesmo com passageiros dentro, até à descida após a Igreja e só punha o motor a funcionar quando chegava à Faia. Naquele tempo, os jovens que estudavam em Coimbra, para meterem ao bolso o dinheiro da camioneta da carreira (não autocarro, como agora se diz), punham-se à boleia junto à ponte. Quando calhava viajarem no carro do Baixinho, era certo que quando cá chegassem lhes exigia o dinheiro equivalente ao bilhete da camioneta. Ao lado, vivia no 1º andar António Barreto Pessa. De fino espírito de observação e apurado sentido crítico, era uma das mais carismáticas figuras de Condeixa e são inúmeros os ditos chistosos que lhe são atribuídos, como aquele bem conhecido de, ao atravessar a Praça ter encontrado um amigo que já não via há anos. Naturalmente, depois de algumas palavras de circunstância, disse o amigo:”Mas afinal, tu nunca envelheces, estás cada vez mais novo!” Despediram-se e António Pessa encontrou pouco depois outro amigo que também não via há muito. E este disse, muito compungido:”Olha o meu amigo Pessa! Homem, tu estás velho!” Resposta pronta e oportuna: “Pois só se foi de atravessar a Praça!” Numa outra ocasião, tendo comprado um automóvel, convidou os amigos para a estreia e foram até à Anobra petiscar e beber uns copos. No regresso, já um pouco toldado, executou uma manobra que lançou o carro num pequeno ribeiro. A água começou a entrar na viatura e os ocupantes saíram como puderam. Longe do perigo, notaram que o condutor não estava junto deles. Voltaram ao local do acidente e viram-no em cima do carro. Tentaram retirá-lo, mas ele, solene, afirmou:”O Comandante é sempre o último a abandonar o navio!” Este carro, um pequeno Wolselley, passou a ser conhecido como “Batiscafo” ou “Sertela”. (fim da 1ªparte)