Para falar sobre o Cine-Avenida,tem de se recordar a Condeixa da época em que ele foi inaugurado.
O início da década de 1930 foi fundamental para o desenvolvimento da então pequena vila,quase confinada às três vias principais:Outeiro,Condeixinha e Estrada Nacional que ia desde a Faia até ao Paço,com as suas pequenas transversais,Rua Nova,Penedo e Rua de S.Jorge.
A Praça da República tinha cerca de metade da área actual.O Palácio dos Sás estendia a fachada monumental desde a Igreja até à entrada da Rua Direita(R.Dr.Fortunato Bandeira de Carvalho).
Como referi na crónica"Contributo para Conhecer Condeixa",o Palácio foi incendiado pelas tropas invasoras francesas,tendo sido reconstruido em parte,mas apresentando aspecto progressivamente decadente.Foi então adquirido pela Câmara e demolido.Esse facto viria a modificar toda a estrutura habitacional da vila.A Casa dos Sás(Viscondes de Alverca)cedeu uma parcela de terreno por detrás do demolido prédio,com a condição de ser aprovado o projecto de urbanização do restante terreno e daí nasceram a Palmeira,a Rua Dr.João Antunes e a Avenida.
Um dos primeiros edifícios a ser construído nesta última artéria,foi o Cine-Avenida,que abriu as portas ao público apenas dois dias depois da inauguração da rede de abastecimento eléctrico à vila.O evento ocorreu no dia 1 de Dezembro de 1932,com um filme mudo chamado"Valsa do Amor"(o sonoro só viria dois anos depois,em 6 de Janeiro de 1934,com"O Estudante Mendigo",uma produção alemã).
Concebido inicialmente para exibição de filmes,o Cine-Avenida foi pouco depois alterado com a adaptação de um palco,o que lhe permitiu apresentar espectáculos de teatro.E muitos lá se realizaram!
Logo em 1933,um agrupamento amador chamado"Grupo de Cénico Dr.João Antunes" apresentou as peças:"Uma casa de estroinas";"Críticas às mulheres";"O 1023"e"Disparates".Faziam parte do elenco:Dr.José Alves,Álvaro Pedro Augusto,Ramiro de Oliveira,Joaquim Simões Melâneo,José Maria Ventura e João Loio.O ponto era Joaquim Rainho.O mesmo agrupamento representou posteriormente outras peças:"Noites de S.António","O Solar dos Barrigas"e a revista local popular de grande êxito"Secas e Picadas".
Embora servindo para inúmeras manifestações culturais,a função fundamental do Cine-Avenida era o cinema.A sala,composta por balcão,plateia e geral,comportava cerca de 600 lugares.Era ampla,com grande "pé-direito", o que permitia óptima ventilação.
O proprietário desta casa de espectáculo,Joaquim de Costa,era um empreendedor empresário condeixense,ao qual se devem outras iniciativas,inovadoras e de grande benefício para a vila:a primeira carreira regular de autocarros entre Condeixa e Coimbra,o primeiro carro de aluguer para passageiros e a primeira bomba de abastecimento de combustivel(gasolina),são algumas das suas realizações.
Quase desde o início,ao sábado à noite o cinema projectava uma curta sessão gratuita,chamada por nós"experimentação",destinada supostamente a verificar se o filme estava apto para a projecção dominical.Mas,segundo se dizia,Joaquim da Costa utilizava aquele método como forma de incutir nas crianças o gosto de ver cinema.Curiosa e inteligente forma de agir!Numa época de extrema economia,sem qualquer tradição publicitária,alguém estar disposto a fazer gastos aparentemente desnecessários apenas para adquirir futuros frequentadores de cinema,era no mínimo de louvar!
Nesse tempo as crianças brincavam na Praça,a jogar futebol ou com espadas e pistolas de madeira a imitar peripécias dos actores que viam no cinema,consoante este trazia fitas de Errol Flynn ou Tom Mix.
Para a "experimentação"não tocava a campaínha que ao domingo,estridente e continuadamente chamava os retardatários à função.Apenas se acendiam os globos brancos por cima do portão principal,sinal para a garotada,diga-se de passagem há muito com os olhos postos na porta vermelha.E quando ela se abria,entrava de rompante por ali dentro,sem o estorvo dos porteiros para cobrar os desnecessários bilhetes.
Mas ao domingo também era possivel enganar os fiscais e entrar sem comprar os respectivos ingressos.
Os bilhetes estavam divididos por um picotado e eram cortados à entrada pelo Ti Chico Chicharo,na plateia ou pelo Ti Zé Fontes lá em baixo na geral,junto ao malchreiroso urinol.O balcão,controlado pelo Ti Joaquim Nabo,era um local para nós inacessível.
A parte mais larga da senha ficava com os porteiros enquanto a mais estreita,onde estavam indicados o número de lugar e fila,ficava em posse dos espectadores.Na traseira do cinema,o Quintalão(actual Praça do Município),era o local para onde quem fazia a limpesa do salão despejava todo o lixo.E com ele íam os inutilizados talões.Nós só tinhamos que ir buscá-los e com muito jeito colar as duas metades.Para a coisa parecer verdadeira o Tónio Galhardo(António Pequicho Moita),filho de alfaiate,refazia o picotado na máquina de costura do pai e,para maior requinte,passava a ferro os bilhetes assim adquiridos.Pareciam novos!
Cada sessão tinha cor diferente de senhas.Se possuíamos algumas com a cor condizente,era só esperar o fim do som da campaínha,sinal que o filme ia começar.Na semi-escuridão era mais fácil enganar os porteiros!
A geral do Cine-Avenida era um local quase impossível de ver cinema.Porém,como os bilhetes era muito mais baratos,estava sempre cheia,embora os espectadores fossem obrigados a fazer esforço de contorção para ver a fita,pela proximidade do ecrã.
Recordo-me de um dia,tinha aí os meus oito ou nove anos,ter assistido da geral ao filme"A múmia".No momento em que ela,trazida à vida não sei porque artes mágicas,caminhou direita ao ecrã,ou melhor,direita a mim com aqueles assustadores passos de sonâmbula,confesso que me urinei todo...pelo menos!
O cinema estava todos os domingos invariávelmente cheio de espectadores.Nas épocas festivas,Natal,Passos e Páscoa, a capacidade era largamente excedida a ponto de ser necessário colocar bancos corridos ao longo das paredes laterais.É evidente que para essas ocasiões os filmes também tinham de ser especiais."Fátima,terra de fé"-Violetas Imperiais"-Frei Luís de Sousa"-"Marcelino,pão e vinho"...filmes que foram a delícia de centenas de cinéfilos.Durante a semana que seguia à exibição,o desempenho dos actores ou o tema do filme, eram assunto quase obrigatório de conversa.
Os filmes da chamada "Era de Ouro" do cinema português,passaram todos pelo ecrã do Cine-Avenida."O pátio das cantigas"-"Aldeia da roupa branca"-"Maria Papoila"-"Sonhar é fácil"-"O Costa do castelo"-"O homem do Ribatejo"-"Camões"-"Capas negras"-"O cerro dos enforcados"-"A mantilha de Beatriz"...sei lá! Todos!Ali rimos a bandeiras despregadas com as graças do Vasco Santana e do António Silva,comovemo-nos com os dramas da Amália,da Milú e do Alberto Ribeiro,enternecemo-nos com a pequenita Maria Dulce no "Frei Luís de Sousa"!
Mas nem só o cinema português nos entusiasmou. Para a pequenada,uma boa aventura do corsário Tyrone Power,do Xerife John Wayne ou do marinheiro Kirk Douglas,constituía sempre momento de grande exaltação.Não esquecendo as comédias de Bucha e Estica,Abott e Costelo,Cantinflas ou Irmãos Marx.
Também o teatro e a música,como já referi,estiveram em grande plano nas actividades do velho cinema.Vários espectáculos com grupos da terra ou vindos de fora,teatro infantil,revistas populares onde tiveram papel de detaque actores amadores de Condeixa, as inolvidáveis melodias do Maestro António de Oliveira e actuações do Orfeão da Casa do Povo,dirigido pelo Maestro Saul de Oliveira Vaio.
O cinema terminou os seus dias como celeiro da Cooperativa Agrícola de Condeixa e foi demolido no final do século vinte,após cerca de quarenta anos de actividade,uma actividade que foi progressivamente diminuindo após o advento da televisão.
Mas ainda hoje,quando vou a um cinema,não posso deixar de recordar o Cine-Avenida,com o seu grande candelabro de globos lá no alto,o inevitável tango "Rosas Vermelhas" tocado ao intervalo e,fundamentalmente, a "experimentação",parte integrante das nossas actividades lúdicas.
Cândido Pereira-
Como sempre escrito com paixao e de modo que nos faz visualizar com a descriçao ao pormenor o que para mim que não sou desse tempo me abre as portas da imaginação partilhando desse modo os momentos do teu passado. Obrigado
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