2ª Parte
Era assim a Condeixa de outrora. Com figuras peculiares que criavam situações curiosas, muitas vezes cómicas, mas também de vez em quando revestidas de algum dramatismo, especialmente quando assinalavam temas que tinham a ver com a fome e mais miséria social.
No caso da Avenida, por ser um local de gente com teres e haveres, só há a contar coisas engraçadas. Como o episódio passado com um sapateiro tocador de bandolim. O prédio que está mesmo em frente ao Cine-Teatro, foi mandado construir por João Alcobaça. No rés-do-chão instalou um armazém de azeites mas, pouco tempo depois, passou a ser a primeira loja de ferragens de Manuel Alves Ferreira. Nesse edifício viviam os proprietários, filha e genro. Este tinha um posto transmissor/receptor de rádio amador. Ao lado morava António Pimentel, Tópi, reputado artista plástico com obras expostas em várias galerias de arte da Europa e do Brasil. (A propósito, o Orfeão Dr. João Antunes lançou uma petição via internet para solicitar à Câmara a atribuição do nome deste artista a uma rua de Condeixa). Tocava muito bem guitarra e um dia convenceu o tal sapateiro a gravar um dueto musical de cordas, que seria transmitido pela então Emissora Nacional, estúdios de Coimbra. Dias depois e de combinação com o vizinho, o Tópi sintonizou o seu rádio na onda de frequência do posto emissor já citado, chamando o sapateiro que escutou enlevado a gravação, convencido que era uma transmissão da Emissora. Mais tarde o visado na brincadeira, quando soube a verdade, reagiu com bastante humor.
Encostada ao Mercado, era a casa de João Bacalhau, com loja de mercearias, taberna e pensão. Tinha um pátio interior onde, do buraco de uma mó de pedra, saía o tronco de frondosa parreira, a formar latada.
Logo acima e a curvar para a rua das oliveiras (Rua António de Oliveira), o prédio de Eduardo Branco, “Sansôa”, com oficina de ferrador. Antigamente, cavalos, jumentos e bois, eram animais muito utilizados, quer em transportes, quer nos trabalhos agrícolas. Como “calçavam” ferro, havia necessidade de oficinas onde as ferraduras eram fabricadas e aplicadas. Em Condeixa existiam várias, uma delas até no arruinado palácio dos Alvercas, como ficou demonstrado quando agora fizeram as escavações para a remodelação da Praça, sendo encontrado um monte de ferraduras enferrujadas. A oficina da Avenida diferia das outras por ter instalações mais novas, mas não na forma de tratar o ferro, que essa era ancestral. Há muitos anos desactivada, conserva no entanto ainda, inserido na parede sobre o portão, o símbolo da arte: o martelo e a torquês cruzados, dentro do semi-circulo da ferradura. Quando os operários acabavam de bater o ferro incandescente na bigorna, cortavam as pontas e lançavam-nas para a rua. Os garotos, passantes a caminho da Escola, viam nesses objectos excelentes projécteis para as fisgas e corriam a apanhá-los, retirando de imediato as mãos queimadas, perante o riso parvo dos homens que faziam aquilo de propósito.
A rua que atravessa a Avenida era o antigo caminho que ligava a Quinta de S. Tomé ao Outeiro. Recorro uma vez mais às memórias de Ramiro de Oliveira:”…a sua acção (do tenente Pires Beato, Presidente da Câmara) teve início com a aquisição da chamada Terra da Galega, 100 metros a nascente da Escola Conde de Ferreira. Terreno saibrento, pobre para culturas, oferecia óptimas condições para urbanizar e foi para ali que convergiram as primeiras atenções do Município. Abriram-se esgotos, construíram-se passeios e surgiu a primeira nova rua numa extensão de 100 metros. Retirado o terreno para a Escola a construir poucos anos depois, os terrenos laterais foram vendidos em talhões, com a condição de serem edificados no prazo máximo de 3 anos, sob pena de os terrenos voltarem à posse da Câmara, mas…ainda hoje continua a ser uma rua de muros!”.
Ocupando quase toda a rua António de Oliveira e virando para a Avenida, há ainda um longo muro, embora atenuado pela existência de duas bonitas vivendas geminadas.
Antes da abertura da Avenida e ainda durante muito tempo depois, o Hospício e a Serrada estavam já fora de portas. Maus acessos e grande intervalo sem edificações faziam com que os moradores do centro raramente se deslocassem a esses locais.
Quando os terrenos foram postos à venda, o Sr. Ramiro de Oliveira comprou um lote. Contente, foi para casa dar a boa nova à esposa. Porém ela, habituada ao bulício de Condeixinha, onde moravam, achou que ir para tão longe significava o desterro e por isso respondeu:”Tu és maluco, fazer uma casa em Condeixa-a-Velha não cabe na cabeça de ninguém!”. Não estava muito longe da verdade, pois essa freguesia começava um pouco mais à frente. Mas a casa foi construída e lá viveram muitos anos. Na mesma época, mesmo ao lado mandou Januário de Carvalho edificar a sua vivenda. Sendo funcionário da C.P.,tendo de partir para longe, não podia continuar a morar em Condeixa e alugou a casa a Joaquim Caniceiro da Costa.
Todas as terras têm as suas figuras especiais, motivadoras de episódios que se vão recordando ao longo dos anos, alguns deturpados, mas outros mantidos tal e qual se passaram. São muitas as referências a determinadas personagens que marcaram o quotidiano da vila. E Joaquim Caniceiro foi muita vez protagonista. Tinha uma oficina de mecânica automóvel na Serrada. Certa vez foi lá um operário da Mobilândia, fábrica de móveis que existiu na Rua Nova, para mandar soldar uma peça de máquina chamada “sargento”. Quando dias depois a foi buscar, perguntou: “senhor Caniceiro, o sargento já está soldado?”, ao que ele, aproveitando o trocadilho que a pergunta sugeria, respondeu:”oh! meu amigo, para uma despromoção dessas, só com ordem do Ministério da Guerra!”. Noutra ocasião, a esposa, atormentada com algum grave problema, prometeu ir a pé à Senhora do Círculo. Nesse tempo os acessos à serra eram extremamente difíceis e uma subida constituía razoável penitência. Para cumprir a promessa conseguiu, após muita insistência, o acompanhamento do marido. Quando chegaram ao alto, comentou ele: “Havia duas coisas que sempre prometi a mim mesmo nunca fazer: ir a pé à Senhora do Círculo e ir à merda. Aqui, já vim!”
Algumas das estórias que conto neste exercício, escrevi-as em livro que teve edição limitada. Por isso as registo de novo, pedindo desculpa pela repetição, a quem já as leu.
Está a terminar “mais uma voltinha, mais uma viagem”, como gritavam os altifalantes dos carrosséis, nas festas e romarias. Antes porém, ainda referência a um assunto que não pode dissociar-se do tema que tenho estado a tratar: a abertura da última via perpendicular à rua Dr. Simão da Cunha. Se a Avenida tivesse seguido o traçado pretendido pela edilidade, teria terminado na Serrada. Daí, partiria um outro arruamento de ligação ao Outeiro (ou, mais propriamente, à zona do Hospício). Três militares participantes na Grande Guerra edificaram lá as suas moradias: no lado do Hospício, o Tenente José Pires Beato, ao cimo da Avenida, o Tenente Campos (neste caso, não foi ele que a mandou construir, mas adquiriu-a quase após ser edificada) e no topo, à Serrada, o Capitão Alves. O Presidente da Câmara, Tenente Pires Beato, decidiu atribuir ao percurso o nome de Rua dos Combatentes da Grande Guerra, homenageando todos os militares envolvidos no conflito internacional. Por razões já conhecidas através das memórias de Ramiro de Oliveira, apenas se construiu parte desse troço da via. Só em 1976, quando vários lotes de terreno entre a Escola e a Serrada foram vendidos e começaram as construções, a rua teve finalmente concluída a ligação.
O prédio da Escola Feminina foi recentemente recuperado e manteve sobre a entrada, em azulejos, o título que lhe foi atribuído pelo estado novo, uma forma de segregação em nome de um decoro provinciano e retrógrado. Os olhares sempre vigilantes das professoras impediam a aproximação de rapazes àquele universo feminino. Apenas durante os exames da 3ª e da 4ª classe se permitia a coabitação de meninas com meninos. Os alunos do Professor António Pita, ainda tinham direito (qual direito! Obrigação e bem difícil de suportar) de, algum tempo antes das provas finais, ter aulas de avaliação aos domingos de manhã, na sala onde deveriam decorrer os exames, creio que como forma de ambientação a um local importante para a vida dos garotos. Era uma ideia pedagógica inovadora do Professor Pita, que não canso de enaltecer.
Fechada por fim a Avenida do meu tempo (agora tem continuação, com outro nome, creio que D. Ana Laboreiro d ‘Eça, pelo menos é a direcção indicada pelo Centro de Saúde).
Nota: As fotografias antigas da Avenida, inseridas nos textos, foram gentilmente cedidas por José Andrade.
Condeixa, 08 de Fevereiro de 2011
Cândido Pereira
Gosto da história e também gosto das estórias. E gostava de ler sobre os hábitos e tradições dos condeixenses em alturas de festa (Natal, Ano Novo, Carnaval, Páscoa, etc.), se algum dia houver paciência e vontade da sua parte para escrever sobre tal.
ResponderExcluirFica o desafio.
Hugo Rodrigues Madeira
Muito obrigado pela opinião manifestada.Infelizmente não posso aceitar o desafio,aliciante sem dúvida,mas demasiado exigente para o que um simples escrevinhador de memórias é capaz de fazer.Conhece com certeza o ditado:"Não vá o remendão além da chinela"!
ResponderExcluirOlá Candido
ResponderExcluirParabens,´´e muito bom ver a História e estórias de Condeixa tão bem recordadea.
Gostei de ver
Parabens
Carlos Beloto