


O milho, cereal primordial na alimentação, apenas surgiu na Europa depois das Descobertas, vindo do continente americano. No entanto, certamente antes do século XVI já existiam moinhos em Condeixa, nesse caso para moer outro tipo de grão, o centeio e o trigo. Mas o advento do milho criou um ritual que formou tradição nas nossas aldeias. Quando se fazia a colheita, as espigas eram reunidas num terreiro (eira) e à noite, após os restantes trabalhos agrícolas, juntava-se um grupo de homens e mulheres formando roda para a desfolhada (ou, como se dizia em Condeixa, “descamisada”), operação destinada a retirar a capa envolvente das espigas. Estas concentrações rurais constituíam verdadeira festa. Cantava-se ao desafio, contavam-se histórias e aproveitava-se o facto de haver pouca iluminação para se roubar um beijo à conversada. Júlio Dinis, na obra “As pupilas do Senhor Reitor”, retrata bem essa forma rural de viver os trabalhos do campo, em especial as desfolhadas.
Os moinhos, em algumas terras popularmente chamados “munhos”, concentravam-se ao longo de três linhas de água, sendo que uma delas, só desde a Quinta de S. Tomé até ao Travaz, a travessia da vila, possuía quinze engenhos.
Para a existência de moinhos, era necessária a água. E isso nunca aqui faltou!
(extracto do poema “A nossa grande casa azul” de Linda Glaser e Elisa Kleven)
Partilhamos a água
Salpicamos, chapinhamos e nadamos
Na água
E todos bebemos água
Baleias, golfinhos, manatins
Pinguins, palmeiras, tu e eu
Todos partilhamos a terra
A nossa grande casa azul.
A importância da água no planeta! No caso de Condeixa, fundamental para o seu desenvolvimento, quer na irrigação dos terrenos, quer na movimentação dos moinhos e lagares de azeite. Em termos de utilização em escala industrial mais ampla, existiu só uma exploração onde a água, vinda da “regueira de Santo António” era acumulada (tanque do Galaitas)e depois enviada por um canal de desnível, a accionar o rodízio que transformava a força hidráulica em força motriz,para o descasque de arroz. Esta fábrica, interessante exemplar da era da Revolução Industrial, desde muito cedo porém passou apenas a lagar de azeite.
RIBEIRA DE ALCABIDEQUE



O desenvolvimento de Condeixa-a-Nova deveu-se principalmente, às muitas linhas de água que alimentam as terras úberes. Os terrenos vão-se estendendo em declive suave, evitando que as águas ganhem velocidade e mais depressa se misturem com o mar. Recuando ao tempo da fundação da nacionalidade, Afonso Henriques entregou as terras de Condeixa à guarda dos frades cruzios, com responsabilidade pelo repovoamento e arroteamento dos vastos espaços agrícolas.
Alcabideque, a principal origem das águas, já era povoação, supondo-se fundada pelos romanos, com o nome provável de “caput aque”, a que os mouros teriam aposto o sufixo “Al” e modificando o resto da grafia. Assim a cantou o poeta islâmico Abu Zeide Mohamede Ibne Mucana, no século XII:(a)
(alcabideque-2) Ó tu que vives em Alcabidek
Oxalá nunca faltem
Nem grão para semear
Nem cebolas, nem abóboras…
A agricultura, sempre referida, porque fonte de rendimento para os senhores e subsistência para o povo.
Desde tempos imemoriais, o homem serve-se dos cereais como alimentação. Para se tornar mais fácil a utilização, o grão era triturado entre duas pedras que se adaptavam à concha da mão. Evolutivamente, passou-se ao almofariz, de pedra ou madeira, e ao rebolo, constituído este por uma pedra base, rectangular, e outra redonda que se movimentava em vaivém. O movimento circular só apareceu em Roma à roda dos séculos V ou IV aC. O passo seguinte foi a invenção da mó com punho, para girar manualmente. Ainda existem algumas dúvidas sobre qual o principal meio usado inicialmente para movimentar mecanicamente as mós, se a tracção animal ou a utilização hidráulica, mas tudo indica que tenha sido esta última.
Nesse sentido, “escreve Lopes Marcelo, na sua obra “Moinhos da Baságua”: “A mais antiga referência ao moinho de água consta de um epigrama de Antípatros de Salónica que se presume ser de 85 aC, embora alguns autores o situem na época de Augusto. Tal epigrama “é uma elegia poética ao carácter feminino da moagem primitiva”. Também Luís Filipe Rosa Santos, na obra "Os moinhos de maré da Ria Formosa" refere o mesmo epigrama, dizendo: «Sossega as tuas mãos, oh! Mulher que fazes girar a mó! Dorme bem, mesmo que o galo anuncie a aurora, porque as ninfas, por ordem de Deméter, fazem o trabalho que ocupava teus braços: atira-se sobre a roda e os seus raios, forçando em volta o eixo que põe em movimento o peso das mós côncavas de Nysiros!» “Trata-se inequivocamente de um moinho hidráulico de rodízio com a particularidade de fazer referência à disponibilidade que este novo engenho permitia ao homem, neste caso às mulheres que teriam a seu cargo a farinação dos cereais.”

Voltando aos moinhos de água, primitivamente a impulsão do rodízio horizontal dava-se na parte inferior dele, o que implicava a necessidade de impulsão liquida bastante forte, que nem sempre era conseguida. Assim, quando foi inventado um novo método que consistia na condução da água através de canal que impulsionava as pás do rodízio pela parte superior, obtendo-se com menos água maior capacidade motriz para movimentar, não só moinhos, mas também lagares, serras mecânicas e outros engenhos, vulgarizou-se o sistema que chegou aos nossos dias, com as inevitáveis e necessárias alterações.

As mós eram anéis maciços de pedra. Condeixa-a-Velha contribuiu enormemente para a produção de mós, chegando a fazer exportações para o estrangeiro porque era grande a qualidade da pedra. Ainda hoje é possível observar um dos locais onde ela se retirava e se trabalhava, junto às Ruínas Romanas de Conímbriga.
A duração de uma mó dependia da qualidade da pedra, mas variava entre cinco e dez anos. O desgaste provocado pelos cereais, a regular picagem que se fazia para aumentar a capacidade de moagem e o atrito, deixavam as mós reduzidas na espessura, sendo necessário proceder-se à sua substituição. Ainda assim, eram aproveitadas para lajear o piso das casas ou reforçar as paredes, como aconteceu na casa actualmente de Fortunato B. Pires da Rocha, cujo avô, como proprietário das pedreiras de Condeixa-a-Velha, utilizou bastantes mós na construção do seu prédio.

O MOLEIRO
Falando de moinhos, tem de se referir o profissional que tudo fazia, desde preparar a condução da água, até entregar a farinha aos clientes e trazer de volta o cereal para moer. Lopes de Macedo, na sua obra "Moinhos da Baságueda”, pág. 60, diz assim: “Tal como os restantes ofícios, a profissão de moleiro estava sujeita a normas de regulamentos ou leis avulsas, Regimentos Municipais e Códigos de Posturas. Em termos de registos que chegaram até aos nossos dias, destaca-se a região norte, em particular a zona de Guimarães." Em destaque, tem ainda a seguinte e curiosa nota: "Os moleiros, assim de trigo como de broa eram obrigados a terem os seus guarda-pós(os panais de protecção da farinha que vai saindo das mós)em panos "que não esponjem",ou em estopa, fechados e cobertos por uma esteira;e seus tremonhados(locais para onde cai a farinha)"bem varridos e limpos",para o que terão sempre "suas vassouras ou juncos";e não terão nos seus moinhos galinhas,nem cães,nem porco,mas sim,pelo contrário,ratoeiras armadas e um gato. (do Regimento municipal de 1719 e Acta de 1829 (Guimarães).Transcrito do livro Sistemas de Moagem,SNIC,Centro de Estudos de Etnologia,pág.93".

A farinha é a base da alimentação quer através do pão, quer mesmo utilizada directamente na culinária, por exemplo, nas “papas laberças", prato que se obtem juntando a farinha à sopa já confecionada. O nome “pão” é genérico de toda a alimentação. No entanto, é especificamente aplicado ao “bolo" de farinha de trigo ou centeio. Sendo de milho, já se chama broa. Para cozer o pão ou a broa, os lares de melhores condições sociais possuiam forno próprio, aquecido com lenha.Tinham o feitio abobadado e apenas uma porta. Mas também existiam fornos comunitários. Em Condeixa eram chamados "fornos da poia", locais onde as familias mandavam cozer o "pão" laborado em casa. Sendo terra de moinhos, Condeixa tinha também muitos fornos comunitários. A actual Rua 25 de Abril chamou-se outrora Rua dos Fornos, depreende-se por que razão. Na Serrada e no Outeiro, existiram “fornos da poia”, no entanto, o forno mais conhecido era o da Ti Prazeres, localizado onde hoje se encontra um dos estabelecimentos de fotografia de Delfim Ferreira, à entrada da Rua Manuel Ramalho, junto às instalações da Santa Casa da Misericórdia.
Muito mais coisas deviam ser ditas sobre os moinhos de Condeixa e todas as actividades a eles directamente ligadas. Conheço várias obras versando este assunto, nenhuma de Condeixa! Não será já tempo de a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia ou qualquer outra entidade responsável, decidir mandar fazer e publicar um estudo sobre os Moinhos de Condeixa, enquanto é possível obter espólio fotográfico e informação fiel de pessoas ligadas ao tema?
- VOCABULÁRIO DOS MOINHOS-
AÇUDE- Construído em pedra, serve para represar a água do rio ou ribeiro.
LEVADA- Canal que tem origem no açude e transporta a água até à represa.
REPRESA- Local onde é recebida a água vinda do açude.
AGUEIRA- Canal condutor da água em cascata para o rodízio.
CUBO- Cabouco na parte inferior do moinho, onde está colocado o rodízio.
SETEIRA- Peça existente ao fundo da agueira, de onde sai a água projectada para o rodízio.
ZORRA- Peça de apoio ao rodízio.
PEGADOURO- Tábua que comanda a direcção da água.
COMANDO DO PEGADOURO- Serve para movimentar e parar o moinho.
RODIZIO- Roda com movimento horizontal, ligada à mó por um veio.
TAPUME- Tampão regulador da entrada da água para a agueira.
PEDRA- Mó em granito.
CUNHAS DA AGULHA- Tacos reguladores do controle e levantamento da pedra.
MOENGA- Peça em madeira, quadrada ou rectangular, onde é colocado o grão.
CALEIRA- Peça em madeira ou cortiça. Recebe o grão da moenga para o olho da mó.
TREMONHADO- Lugar para onde cai a farinha da mó.
ALQUEIRE- Medida em madeira que serve para medir os cereais.
TALEIGO- Saco em pano onde é transportado o grão ou a farinha.
MAQUIA- Parte retirada para o moleiro. Corresponde ao pagamento do seu trabalho.
TREMONHA OU QUELHO- Peça de madeira colocada no fundo da moenga.
RELA OU CHAMADOURO- Peça destinada a oscilar o quelho, para a queda do grão
SEGURELHA- Peça em ferro que suporta a mó “movente”.
VEIO- HASTE e PELA- Veio vertical que transmitia a rotação do rodízio à mó.
PENA (em Condeixa, chamada Badana)- Cada uma das hélices do rodízio.
PONTE- Barrote horizontal onde apoiava o aguilhão do rodízio.
TRAVE DO ALIVIADOURO- Veio vertical ligado à trave da ponte.
ALIVIADOURO- Manivela no interior do moinho, que comandava a ponte.
AGUILHÃO- Ponta metálica que apoiava o rodízio na zorra.
(a)-No volume “Tecnologia Tradicional Portuguesa-Sistemas de Moagem”, de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, afirma-se que o poeta islâmico se referia a Alcabideche, povoação do concelho de Sintra. Sem dados que me permitam formar opinião concreta, permito-me, no entanto, discordar de tal afirmação.
Quero deixar o meu agradecimento a António da Costa Pinto, fotógrafo condeixense, pela cedência das fotografias de moinhos e a Carlos Alberto Azenha, pelo empréstimo de livros que me facultaram a necessária informação técnica.
Condeixa, Abril de 2011
Cândido Pereira
Em tempos de crise não se podem falar destas coisas, mas com o espólio que (ainda) existe não seria possível criar um núcleo museológico?
ResponderExcluirQue pena,não é?O arqueólogo condeixense, Dr. Miguel Pessoa tentou criar um Ecomuseu mas,ao que sei, a ideia não foi para a frente.Actualmente ainda há gente que trabalha ou trabalhou em moinhos.Um dia,quando já não for possível obter testemunho dessa actividade.todos vamos torcer a orelha.
ResponderExcluirParabéns pelo artigo.
ResponderExcluirLevanta-se uma questão pertinente e muito actual nesta época de crise: - para que servem (algumas) Juntas de Freguesia? Arredam-se da Cultura Popular e "plagiam" o trabalho cantoneiro da CÂmara Municipal, além de passarem umas "certidões". Algumas (freguesias) bem podiam acabar, e a minha (Sebal)é uma delas.
Há uns tempos atrás, teimosamente defendi (e defendo) a preservação dum moinho de água ainda em funcionamento no Avenal (à semelhança do que se passa em Cernache). Pois bem a opinião de quem poderia apoiar (e certamente apoiou agora o POROS na Quinta de S. Tomé em 2011)foi que e cito "os museus estão fora de moda (em 2009)"...palavras dum "filho da Terra" com obra publicada e um brilhante Doutor da Universidade de Coimbra (diziam-me um dia destes).
A politica é tramada...quando se mistura o interesse colectivo com as cores partidárias.
Manuel Nujo
Meu caro amigo,certas as suas palavras.No caso dos moinhos ainda em laboração,seria boa política patrocinar a continuidade,mesmo que fosse apenas para mostrar às crianças como se processava toda a sequência do aproveitamento hidráulico até à obtenção da farinha.Seria utópico pensar na possibilidade de continuação deste tipo de laboração.No entanto, a importância dos moinhos na vida da nossa terra mereceria,pelo menos, o registo em livro,para memória futura.Não me parece que isso venha a acontecer.E é pena!Ainda há muita gente com estreita ligação aos moinhos.São testemunhos vivos,os mais importantes quando se pretende escrever história.
ResponderExcluirBoa noite,
ResponderExcluirParabéns pelo excelente artigo e pelo empenho na divulgação deste valioso património.
Cumprimentos,
Armando Ferreira
Bom dia, caro Sr. Cândido Pereira.
ResponderExcluirExcelente o seu trabalho sobre os moinhos de Condeixa e principalmente sobre o ofício de moleiro. O meu 7º avô chamava-se "António Simões Parolla, o Moleiro" (1722-1801), de Condeixa-a-Velha. Casou em Ribeira de Pãoquente, onde nasceram os seus filhos que mantiveram o ofício de moleiros. A família Parola estabeleceu-se depois em Vila Pouca de Cernache. Penso que toda essa região era tradicionalmente ligada aos moinhos, à farinha e ao fabrico de pão que abastecia toda a região e a cidade de Coimbra.
Os meus cumprimentos pelo interesse neste assunto que me é tão querido, e avise-me quando sair algum livro do município sobre os Moinhos e Moleiros de Condeixa.
Ana Margarida Caetano
Pois meu Amigo
ResponderExcluirDevia publicar todos estes textos!!
Vamos a isso!!
Manel
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTestemunho ímpar. Obrigada, Sr. Cândido, por ter podido e querido precipitar tudo o que tem experienciado nesta área em prol da nossa comunidade e das gerações vindouras
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