Ler,é uma das
actividades que mais tempo ocupam o meu desocupado tempo de
aposentado.Leio compulsivamente,em casa,no carro,onde o tempo tenha
de ser ocupado por qualquer coisa que me ocupe o espírito.
Desistindo,por várias razões,nas quais a financeira tem lugar de
destaque,de comprar livros,utilizo geralmente a Biblioteca
Municipal,na frequência de semana e meia,mais ou menos.
Mas
também alguns amigos,conhecedores do meu “vício”,se dispõem a
facultar-me livros.E foi exactamente esse facto que originou a
presente crónica.
Até mim chegou um volume intitulado “Água
doce,Mar salgado”.O seu autor,Manuel do Amaral,era quase um
conterrâneo.Oriundo de uma família muito antiga e altamente
conceituada de Condeixa,mais propriamente da aldeia de
Atadôa,Alcabideque,Condeixa-a-Velha,era lá que passava as suas
férias de menino.Neste livro,que escreveu em 1983,aborda no primeiro
capítulo um tema que me é muito querido e familiar,pois também
utilizei os mesmos sítios para as minhas brincadeiras da infância e
juventude.
O Alcabideque é o nome desse primeiro capítulo,que
passo a descrever na integra sem necessidade de apôr qualquer
observação,tal a realidade como está descrito.
Não conheço
a lei que defende os direitos de autor,mas quero deixar bem explícito
que não pretendo fazer plágio.Sendo o livro pouco conhecido,apenas
achei que tem interesse este seu primeiro capítulo,principalmente
para quem utilizou o rio desta maneira que o Autor descreve.Para quem
pretenda ler todo o volume de «Água Doce Mar Salgado»,deixo a
seguinte informação:«Edição Revista “Diana”-R.da
Barroca,78-r/c-1200 Lisboa.
«O ALCABIDEQUE»
“Foram decerto os
olhos da minha infância que fizeram com que o rio Alcabideque não
apresentasse grandes diferenças em relação ao Amazonas,nem em
caudal,nem em extensão,nem em largura.A imagem que mantenho bem
gravada na memória é a de então:a de um rio que embora também
corresse para o mar,como o Amazonas,fazia-o ao contrário,isto é,de
Leste para Oeste.Esta era,talvez,a maior diferença.Por isso ainda
hoje me recuso a modificar a opinião que então formei do rio que
passava ao fundo do quintal da casa onde em grande parte cresci.Mesmo
quando por lá vou agora,embora raramente,e olho as suas bem modestas
proporções,não me abandona,mesmo assim,e perante a realidade dos
factos,aquela sensação formulada há muito tempo,de grande,de
fundo,de rápido e por vezes tumultuoso quando os invernos atingiam o
auge do rigor.Isto tudo me parecia bem real,palpável,verdadeiro,muito
embora a distância de uma margem a outra não ultrapassasse,em
média,os quatro metros bem medidos.Tão-pouco a profundidade na
grande maior parte do seu curso,dava para cobrir um homem de pé,nem
mesmo o seu comprimento,no troço que eu abrangia nas minhas
deambulações,atingia sequer um escasso quilómetro.A verdade,no
entanto,é que o Alcabideque foi,durante alguns anos,o armário dos
meus sonhos,o mundo inexplorado das minhas aventuras,o mar da minha
vontade de viver.E foi depois,como é ainda hoje,uma peça importante
das peças usadas que guardo no baú das recordações.
Aquele
rio era límpido e transparente.Tirando nos tempos de invernia em que
com as enxurradas se tornava lodoso e opaco,de uma forma geral o
fundo deixava-se ver,e também se podiam observar,por quem tivesse
interesse e paciência,os inúmeros habitantes das águas.Porque no
rio havia ruivacos,barbos e enguias.Passeavam sangessugas pouco mais
pequenas que o dedo mindinho,que se agarravam à pele das pernas
quando andávamos na água.À superfície,nadavam insectos pretos e
pernaltas chamados alfaiates,e acima da superfície andavam sempre as
libélulas de cores chamativas e asas transparentes,a que
apelidávamos de tira-olhos,não sei bem porque razão.Também alguns
bezouros zuniam em voos rápidos,enquanto os juncos badalavam
constantemente accionados pela corrente.Accionadas pela corrente eram
as rodas de tirar água,com alcatruzes e as mós do moinho e da
azenha.
No inverno a água do rio era represada em diversos
pontos,e atirada para as terras limítrofes que acabavam por passar a
estação das chuvas alagadas e cheias de erva alta que depois era
cortada para o gado comer.Era um nateiro,como o Nilo no Egipto.Nessa
altura do ano eu não via os peixes,nem os alfaiates,nem os
tira-olhos,nem os bezouros.Nem mesmo uns ratos enormes que,chegada a
Primavera,enxameavam as margens do rio,passando de uns buracos para
outros por entre as raízes dos salgueiros e dos choupos postas a nu
pela erosão da água.Também as águas eram desviadas por canais e
condutas tão bem feitas que o rio chegava a passar por cima dele
próprio,de atravessado,já se vê,num desses milagres da ciência
hidráulica que se fosse hoje,se calhar,já não me faria abrir tanto
a boca de espanto como então fazia.E teria sido assim,levado por
esses canais e essas condutas,que ele se dava a beber a escravos e
senhores naqueles tempos recuados da ilustre Conímbriga.
Os
escassos mil metros a que atrás me refiro deram algumas vezes para
eu fazer viagens arriscadas na descida da corrente,com as perigosas
passagens de fundões e mesmo com uma difícil transposição do
açude da azenha.O retorno fazia-se à sirga,puxando penosamente a
improvisada jangada,rio acima,como se eu e os meus habituais
companheiros fôssemos barqueiros do Volga.Afinal,tudo era o
desbravar de um eterno desconhecido,e o empenho e ânimo com que me
lançava repetidamente naquela descida nunca terminada davam-me
redobrada sensação de uma aventura infinda.
Desses poucos
anos passados a iniciar o estreito contacto com uma natureza ainda em
grande parte livre,nasceu em mim a paixão pelo campo,pela água,pelas
ervas e pelas árvores,pelos pequenos e grandes animais que por toda
a parte nasciam,viviam e morriam.O tempo havia de me levar depois a
outras terras,a conhecer outras águas,até mesmo à imensidão do
mar,mas sempre e de cada vez me lembrava do Alcabideque,das
cachoeiras,dos poços,dos peixes e dos insectos que habitavam as suas
águas,das aves e dos outros animais que faziam parte integrante do
sistema que ele comandava.Porque um rio é tudo,e dele se forma tanta
coisa que onde ele não existe não há quase nada.Aquele ali era um
mundo,correndo pela várzea,deixando-se
comandar,desviar,utilizar,dando de beber,molhando as raízes das
plantas,oferecendo oxigéneo aos peixes,borrifando as penas dos
pássaros para humedecer os ovos no choco dos ninhos,e mantendo a
flutuar ervas e detritos por entre os quais as libélulas e outros
insectos alados iam fazendo posturas na renovação da Primavera.E
depois continuava,continuava sempre,e quem sabe se por caminhos
ocultos nas profundezas dos oceanos fazia ao contrário a
peregrinação das enguias que chegavam em viagem secreta do Mar dos
Sargaços.A água daquele rio,transformada em água de outro rio
maior, e de outro ainda,e assim até ao mar,fazia sempre o mesmo
percurso que a minha imaginação fazia.Tinha muitos anos,o rio.Os
franceses tinham abandonado as margens do Alcabideque na miséria,na
morte e na desolação,na pilhagem da retirada.Depois da derrota de
Massena na batalha da Redinha.Um pouco mais de cem anos tinham
decorrido desde então.Mas daí até à revolução liberal foram os
frades que voltaram a instalar as suas agriculturas aplicadas à
exploração da terra.Continuaram a desenvolver os princípios da
irrigação e drenagem das parcelas da várzea,e desenvolveram também
naturalmente os primitivos equipamentos industriais:os moinhos,as
adegas,os lagares.Depois desse tempo,e mesmo antes,a aldeia bordejava
o rio no meio do seu percurso pela várzea,não tinha mais notícias
do Mundo do que as que lhe eram trazidas por um ou outro homem que se
deslocava à vila ou à cidade, mais próximas.Assim nunca chegaram a
saber que Napoleão tinha perdido a batalha de Waterloo,e que o
grande cabo de guerra que mandara para lá os franceses conseguia
comunicar de Paris com Roma em apenas quatro horas,usando um sistema
de semáforos contínuos.Nem tão pouco lhes passou pela cabeça que
pouco mais de um século depois esse seria mais ou menos o tempo
necessário a um homem para ir,de avião,de uma cidade à
outra.Quando eu andava lá pela aldeia o que os homens sabiam do
Mundo era o que alguns deles tinham trazido das terras de França
depois da Grande Guerra.Outros não tinham de lá trazido nada porque
tinham por lá ficado mortos debaixo da terra..Outros ainda nada
contavam porque os gases nunca mais os deixaram pensar direito.
No tempo quente,no intervalo de uma ida aos ninhos tomava-se banho
num dos marachões do rio.Todos sabiam nadar,o que hoje muito me
espanta.O banho era em nu,praticava-se o mergulho em lançamento da
margem,em corrida,ou saltando do ramo de uma árvore,com maior
emoção.Víamos os peixes mas nem sequer fazíamos tenções de os
perseguir.No entanto,na aldeia havia pescadores de rede que armavam
nassas de malha estreita nas saídas dos desvios,ou nos fundões.Havia
outra maneira de apanhar peixe:desviava-se o curso do rio ou
contornavam-se os bordos de um pego com um muro de barro.Depois
secava-se o pego com baldes e gamelas.Barbos,ruivacos e enguias
apanhavam-se com cestos de vime.No fim,punha-se tudo como antes.O rio
continuava a correr,o pego enchia-se,o peixe que ficava recuperava o
seu ambiente.Os alfaiates,as libélulas e os bezouros voltavam aos
bailados e sinfonias reflectidos no espelho da água.À tarde quando
voltavam dos campos os homens metiam os carros no rio,e os bois que
os puxavam dessedentavam-se sorvendo com ruído,levantando de vez em
quando a cabeça,deixando escorrer a água pelos cantos da
boca.Abriam ritmadamente as narinas à medida que bebiam.Sacudiam os
moscardos que os picavam,com as caudas franjadas,espalhando em redor
borrifos de água.Além da rega de pé que o rio proporcionava,também
os homens tiravam a água do rio com cabaços de lata e cabos de
madeira compridos para dornas colocadas sobre os estrados dos carros
de bois.Com ela regavam as hortas,bacelos e árvores novas em pontos
altos e distantes. Faziam caldas de sulfato e levavam a
água para as adegas e lagares para ser utilizada nos trabalhos em
que fazia falta.Nós os garotos seguíamos atrás dos carros e,no
tempo quente já se vê,aproveitávamos para refrescar o corpo com a
água que ia transvasando a cada tranco que os carros davam nas covas
dos caminhos e das ruas.Com a água do Alcabideque apagavam-se
incêndios,com a participação dos homens, mulheres e crianças da
aldeia,naquilo que hoje se chamaria um trabalho colectivo.Um dia o
fogo fugindo do forno da broa da casa da Senhora minha Avó pegou em
carqueja e lenha armazenadas na mesma dependência e quando se deu
por ele já o fumo e as labaredas que fazia,apareciam por cima do
telhado de telha vã.Logo na capelinha do Santo o sino tocou a rebate
e em pouco tempo um vaivém humano cobria a distância entre o rio e
o local do sinistro.Baldes e cântaros passavam de mão em mão,cheios
para cima,vazios para baixo.Aquilo era como os holandeses a colmatar
a brecha num dique.Solidariedade humana.Convém esclarecer que o
Santo era S.Sebastião com o seu tronco nu crivado de flechas,e a
capelinha onde era venerado,e que guardava as sua imagem quase em
tamanho natural,ficava mesmo junto ao rio,dando a frente para um
largo sobranceiro à zona mais espraiada do curso de água.O largo e
o lago que o rio formava,e que era onde os homens iam carregar a água
e dar de beber aos bois, impunham um espaço genéricamente
conhecido por «O Santo».Como se fosse um Terreiro do Paço
pequenino,o «Santo» constituia um ponto de referência,um local de
encontro,muito embora não fosse o Rossio da aldeia.O Rossio da
aldeia era simplesmente «O Largo» e estava localizado a uns
cinquenta metros contados para o sul na parpendicular do rio.Pode ser
que a memória me falhe,mas julgo que o Alcabideque nascia ,como
ainda nasce,metade junto à povoação do mesmo nome,e a outra metade
mais acima.Uma vez corria em dois ramos,outras talvez em três,para
se juntar de vez em quando.Tinha sido trabalhado pela técnica
agrícola que foi surgindo no decorrer dos tempos,e apurada pelos
frades das ordens que se espalharam um pouco por toda a parte.Não
espanta que os romanos tenham por lá deixado os seus conhecimentos
no domínio da hidráulica.O rio perdeu já a sua importância
aparente.A água para abastecimento das populações está
canalizada,e a energia que ela proporcionava,livre,não mais faz
andar as mós dos moinhos,nem as galgas e as prensas dos lagares de
azeite.
O Amazonas tem mais de um milhar de afluentes.Ao
Alcabideque só conheci um,e pequeníssimo.Um regato com meio metro
de largo que conduzia até ele a água de uma nascente localizada a
muito curta distância,num sítio chamado o Sardão.No Saramagal o
regato encontrava o rio,e nessa confluência caí eu de uma figueira
abaixo com o que arranjei uma cicatriz num joelho que ainda perdura.O
rio também alargava o suficiente para que as andorinhas tivessem o
espaço necessário para panhar mosquitos sobre a água em voos
acrobáticos.Tenho ideia que hoje já não se vêem por lá as
andorinhas,nem os morcegos que nós tentávamos por vezes derrubar
com canas de pontas ensebadas,declamando a
lenga-lenga:«Morcego,morcego,vem à ponta desta cana que tem sebo».A
mudança na cor da água do rio processava-se não só ao longo do
ano como também ao longo do dia.Assim,conforme as chuvas ou o
sol,ele ia do castanho barrento no topo do Inverno ao branco prateado
no topo do Verão.De dia,da Primavera ao Outono,passava por vários
tons de azul,reflectindo o azul do céu,ou espelhava o cinzento das
núvens ou o verde mutante das folhas das árvores que o vento
agitava..Na casa ao lado da da minha família vivia um Senhor muito
delicado e simpático,mas de comportamento assaz bizarro.Baixo e
magro,nunca o vi que não estivesse vestido de branco da cabeça aos
pés,como acontecia com os chamados «brasileiros» que voltavam à
pátria.Também usava chapéu de palha de abas largas.No entanto,este
vizinho um tanto ou quanto fantasmagórico,nunca teria atravessado o
oceano.Aquela inclinação para o branco no trajar,era mais uma
faceta da sua bizarria e não a reacção característica de um
qualquer emigrante regressando das terras do Amazonas às terras do
Alcabideque.Embora em casas separadas,vivia paredes meias com uma
Senhora,julgo que irmã,tipo dama antiga,com uma gargantilha de
veludo e um permanente vestido de cerimónia.Talvez por causa desta
suave presença feminina,o vizinho de branco escusou-se a autorizar o
tráfego pelo troço do rio que atravessava as suas propriedades.Ao
pedido limitou-se a responder:«Atrás de uma embarcação vem outra
embarcação...Homens nus a pescar!».No entanto,eu e a minha
tripulação conseguimos por mais que uma vez fazer aquele percurso
proíbido com as cautelas de que se rodeavam os grandes exploradores
que na América do Norte desbravavam os rios em território de
peles-vermelhas.
Quando os salgueiros que bordeavam o rio
cresciam,as nossas viagens fluviais tornavam-se mais difíceis.Os
vimes quase atravessavam de uma margem à outra,e a navegação era
tão complicada como nos rios da selva amazónica,guardadas as
devidas proporções.Os salgueiros pareciam-me árvores do outro
mundo,estranhas,com troncos atarracados,raízes que se assemelhavam a
cabelos de espantalho,e uma multitude de vimes folharentas,flexíveis
e fortes.Na devida altura que recordo dever ser por fins de
Agosto,aparecia um homem vindo da serra que durante duas ou três
semanas fazia poceiros em série.Aquela fabricação feita com uma
mestria que me impressionava,dava origem a que minha atenção
ficasse presa horas sem fim nos movimentos das mãos e dos dedos do
homem da serra que trabalhava de joelhos,manhãs e tardes
inteiras,curvado na sujeição dos vimes de salgueiro à sua forma de
os domar.Era com estes poceiros que se carregava o milho,a uva,a
azeitona,e com eles também se apanhava peixe ao calcão.Muito antes
de o fazedor de poceiros aparecer na aldeia já muitos salgueiros
estavam despidos de vimes,e estes aos molhos,postos a remolhar à
mistura com os sacos de tremoço.O tremoço era,como ainda hoje é,o
grande aperitivo para uns copos de tinto ou de branco.A medida para o
copo era o marquês,como hoje para a cerveja há o fino,e para a
manzanilha,em Espanha,há o chato.
A minha atracção pela água
incluia-se naquilo que eu pensava ser a lei da atracção
universal.Sim,porque eu era atraído não só pelo rio como também
por tudo quanto fazia parte da Criação Divina,do Universo.Por
isso,naqueles anos em cada Primavera eu conseguia criar uma
quantidade de pássaros,quase todos eles apanhados nas árvores que
tinham crescido perto das margens do rio.Era para esse efeito que os
garotos iam aos ninhos,para criar afinal,e não para destruir.Até
porque aos pássaros,quando crescidos,era dada a liberdade.Eram rolas
e pintassilgos os que melhor aprendi a alimentar,como também aprendi
com eles o apego aos filhos que os pais mostravam:vendo nas gaiolas
os pássaros pequenos roubados dos ninhos os pais vinham dar-lhes de
comer por entre as grades.Os trabalhos da criação desviavam-me a
atenção do rio e das suas águas,mas a partir de Agosto voltava-me
abertamente para os fenómenos fluviais.Era então em plena altura da
rega do milho,e do feijão.A água ia penetrando nas fendas do solo
de onde se escapava o ar em bolhas de efervescência aparente.E eu
seguia a água que a pouco e pouco ia vencendo a secura e
sobrava,corria,passava por cima da parte já molhada e por
fim,cansada de rolar por si própria,encontrava de novo o rio.
Atadôa chamava-se a aldeia que com o rio perfazia o centro da
existência.Na altura podiam-me dar três capitais em troca por essa
aldeia que eu não trocava.E talvez não troque ainda.Ou talvez muito
menos troque agora.
Geográficamente a Atadôa ficava a
nascente de Condeixa-a-Nova,no ângulo menor do triângulo
rectângulo cujos extremos do mais pequeno lado a aldeia ocupava com
Condeixa-a-Velha.Pelo menos esta era a ideia que eu tinha,porque a
primeira Condeixa era a sede do Concelho e a segunda a sede da
Freguesia,e o sol chegava a estas duas ao mesmo tempo,mas um bocado
depois de ter passado pela Atadôa.
Em Condeixa-a-Nova
compravam-se as costelas para armar aos pássaros,armadilhas para
prender os ratos,e anzóis empatados em sedela e iscados com minhoca
apanhavam peixe.Na maior parte dos casos ruivacos.Os mais artistas
também apanhavam barbos.
A um quilómetro de
Condeixa-a-Nova,terra que o Alcabideque atravessava,quase toda,sempre
por debaixo do chão,e mais ou menos para Sueste,ficava
Condeixa-a-Velha que por sua vez,tal como a primeira,ficaria a dois
quilómetros de Atadôa.Em Condeixa-a-Velha passava o grande rival do
Alcabideque,o famoso e terrível rio-dos-Mouros.Era famoso porque
corria muito perto de uma antiga muralha romana,referenciada como
pertencendo a Conímbriga,e era terrível por ter umas margens em
falésia muito alta que faziam vertigens,e por no Inverno levar um
correntâo de água espumante e furiosa.Em compensação,no Verão
não levava água nenhuma,estava habitualmente seco e árido,com um
leito de pedras enormes quese percebia terem sido talhadas pela
terrível acção da torrente invernal e violenta(*).Naquela altura
soube,e aliás eu vi,que investigadores especializados começaram a
encontrar na margem norte do rio-dos-Mouros,pedrinhas coloridas e
ossos romanos.Senti na verdade que alguma coisa estava então a sair
do silêncio dos séculos.No entanto,na água límpida do Alcabideque
havia semanas e semanas que eu colocava, num fundão,uma nassa em
forma de tronco de cone cuja parte mais larga,a boca,era armada por
um aro de madeira,e o fundo era esticado por dois paus iguais que
partiam em «V»dos bordos do aro.Como o conjunto era mais leve do
que a água,em conformidade com o que vim a saber mais tarde ser a
lei de Arquimedes,coloquei-lhe duas pedras a fazer lastro.Punha a
nassa no lugar ao fim do dia,e ao amanhecer,mal saltava da cama,ia pé
ante pé levantar a nassa.Dias e dias seguidos,mas nada saía do
silêncio das águas.Até que uma manhã aconteceu.O rio desvendou um
segredo na figura de uma enorme enguia que nas convulsões para se
libertar tinha já feito a nassa num oito e tinha enchido as malhas
da rede de um pegajoso,viscoso e consistente garro esbranquiçado.O
monstro não me assustou embora fizesse o possível por isso.Era
quase da grossura do meu pulso,tinha a pele escura e a cabeça
afunilada,e uma boca grande com a qual atirava botes terríveis nas
paredes da sua prisão.Hoje pergunto-me se aquele ser não seria uma
remanescência de algum espantalho vivo deixado ali pelos franceses
na pressa da retirada,ou pelos liberais para assustar os frades.Pobre
enguia.Tinha-me dado uma trabalheira,mas também uma vitória sobre o
desconhecido das águas.Vitória que de resto não saboreei..Era o
último dia de férias,e poucas horas depois deixava a Atadôa,as
margens do Alcabideque.E com o decorrer do tempo acabei por abandonar
também aquele armário dos meus sonhos,mundo inexplorado das minhas
aventuras,mar da minha vontade de viver.Estou agora a mexer
nele.
Junho de 1983
Nota:Só há dias soube que era
Alcabideque o nome do rio da Atadôa.Naquele tempo,para toda a gente
ele era,simplesmente,o rio.Mas um documento oficial que há pouco
encontrei,datado de 1899,diz que é concedida licença para«construir
um açude no rio denominado Alcabideque,junto ao lugar de
Atadôa,freguesia e concelho de Condeixa,a fim de obter queda de água
para mover um motor hidráulico para a indústriade moagem...».O
requerente era o Dr.Pedro Teixeira,meu avô.
(*)
A este rio
os romanos davam um nome feio que não me permito reproduzir agora.
O Autor chama ao rio de Atadôa,«Alcabideque».A Câmara Municipal
de Condeixa,na construção do Parque Verde,empedrou o curso de
água,desde o lugar vulgarmente conhecido como “Marachão”,a
jusante de Atadôa, e deu novo nome ao rio.Chamou-lhe Ribeira de
Bruscos,título que nem os mais antigos recordam.As águas vindas da
nascente de Alcabideque,são engrossadas no percurso por
ressurgências,sendo a mais importante a do Ramo.No entanto,talvez
não esteja de todo errada a designação.Uma ribeira com origem em
Bruscos,corre paralelamente à estrada de Condeixa-Miranda,atravessa
a via e dirige-se para Alcabideque,sendo ainda visível uma pequena
ponte romana.Já perto da aldeia,no local da antiga captação de
água para abastecimento do concelho,as margens dessa ribeira têm
alguma profundidade,denotando um caudal razoável,mas só no
inverno.Simultâneamente,os terrenos próximos são designados como
«terras da Ribeira».
De qualquer forma,para quem se aventurou
no mesmo mundo de Manuel do Amaral,o rio será sempre
«Alcabideque»!
Condeixa,Setembro de 2012
Cândido
Pereira