quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

AS FILARMÓNICAS DE CONDEIXA

Um amigo,com ascendência directa em famílias antigas de Condeixa e,por isso, muito interessado no que à vila diz respeito,enviou-me há dias o retrato de uma filarmónica de Condeixa.Fotografia muito antiga,dos finais do século XIX,com a linda porta e janela da Capela da Quinta de S.Tomé como pano de fundo,interrogando se teria a ver com a possível presença de um seu antepassado.Questionava-me então porque nunca escrevi nada sobre as bandas de música de Condeixa.
É claro que o repto não podia ficar sem resposta!
O que sei sobre o tema,é muito pouco.Por essa razão,permito-me transcrever o texto escrito pela parceria Dr.Fernando Rebelo/Isac Pinto,editado em cadernos intitulados genéricamente "Subsídios Para a História de Condeixa",com o sub-título:


                                                    "A "Música Velha".







A conhecida família Bandeira,que sempre andou ligada às iniciativas construtivas que têm surgido em Condeixa,esteve unida à prmeira filarmónica da vila,por intermédio do seu representante,Fortunato Maria dos Santos Bandeira,que pode ser considerado o seu verdadeiro fundador.
Iniciada em 1850,foi seu primeiro regente José Patrício da Silva,figurando nela,como componentes mais entusiastas o citado Fortunato Bandeira(figle),Marcelino Rodrigues«Amâncio»(trompa lisa),José Simões(trombone de varas),José Vicente de Oliveira e Inácio de Magalhães(cornetas de chaves).
Também nela tocaram João Bandeira,João e Joaquim Patrício da Silva,Joaquim Antunes Buraca,Alexandre Dinis Leitão,António Canela,António Pessoa(pai),Francisco de Assunção(Boneco),António Fernandes da Piedade,Manuel Fernandes Pico,Francisco Rodrigues(Amâncio),José Duarte de Paula(Garoto),José Galvão,Francisco e José Maria Simões de Carvalho,Manuel Luís dos Santos e seu enteado António Duarte Braga.
Este conjunto musical possuía um grupo de cantores de Igreja,possivelmente criado mais tarde,talvez em 1863,dirigido por José Maria Perdigão que, naquela época,era apontado como muito sabedor,cantando ora como tiple,em falsete,ora como baixo profundo,na sua voz natural.Acompanhavam-no o tenor João Patrício da Silva e os baixos António Fernandes da Piedade e Francisco de Assunção.
Em Abril de 1852,esta filarmónica tocou durante a recepção feita na vila à Raínha D.Maria II,que pernoitou no Palácio de Francisco de Lemos Ramalho de Azeredo Coutinho,com seu marido, o rei consorte D.Fernando e seus filhos...( não tem interesse para o tema em questão)
...Até ao ano de 1877,já com a luta acesa na vila entre os partidos regenerador e progressista,a filarmónica de Fortunato Bandeira manteve-se independente,embora com altos e baixos.Porém, nesse ano,não resistiu ao abandono a que foi votada pelos músicos progressistas que,convidados pelo chefe local do partido,Conselheiro António Egípcio Quaresma Lopes de Vasconcelos,se juntaram em nova filarmónica.
A do Bandeira extinguir-se-ia se o já citado Francisco Lemos não a tomasse sob a sua protecção,passando a mantê-la e,desde então,começou a ser conhecida por Música do Partido Regenerador ou dos "Sardinhas",por ser regente dela José Silvestre Ferreira Sardinha.
Em 1880 foi a Coimbra tomar parte nas festas do trcentenário de Camões e em 1882 foi à mesma cidade por ocasião das Comemorações do Centenário do Marquês de Pombal.
Extinta a filarmónica progressista,por volta de 1895,os músicos desta ingressaram na regeneradora e da fusão nasceu o nome de Lealdade Condeixense,que por decreto de 17 de Outubro de1904,foi autorizada pelo rei D.Carlos,a ter o título de Real.
A Carta Régia respeitante a esta mercê,encontra-se registada no Real Arquivo da Torre do Tombo a fls.12 do livº19 de Registo de Mercês,estando original actualmente na posse de Miguel Carlos Quaresma.
Foi em 29 de Novembro de 1899 que se constituiu oficialmente,por escritura,a Filarmónica Lealdade Condeixense,assinada pelo escrivão Adelino Simões Ferreiura Godinho e pelos condeixenses Manuel Dias Coelho,António Oliveira Cabelo,António Loio Cera,João Marques Pita de Almeida,António Pessoa Júnior,António Augusto Quaresma,José da Costa,Jaime Fernandes da Piedade,Joaquim Pato,José Rasteiro Relvão,Joaquim da Assunção Preces,Albano Carlos Quaresma,Manuel Dinis Coelho,Manuel Firmino,José Simões Melâneo,João Fernandes Pico,ugusto Marta,Joaquim Cocenas,Aníbal Tavares Pessoa,Isac de Oliveira Pinto,António Maria Jacinto,João Ramos Sansão,Francisco dosSantos Oliveira,Manuel Antunes Cocenas e Alfredo Cocenas...

...Em 11 de Junho de 1907 tocou no jantar oferecido por Manuel Ramalho,no seu palácio, a El-Rei D. Carlos que neste dia visitou Condeixa,com o príncipe D.Luís Filipe.
Nessa data,era regida por António Ferreira Pena e tinha como executantes:António Oliveira Cabelo(o Camarão),António Loio Cera,Albano Carlos Quaresma;Adolfo Braga de Oliveira,Abel Ramos Sansão,José Policarpo da Costa,Semeão Braga de Oliveira,Teodorico Moita,Fernando Diniz Coelho,António de Oliveira,António Quaresma(Raça),Jaime Fernandes da Piedade,Francisco Marques Pita de Almeida,José Pereira da Fonte,Joaquim Pato,Aníbal Tavares de Almeida,José Rasteiro Relvão,Joaquim Abílio Preces,Joaquim Cocenas,António Pessoa,Artur Esteves,Francisco de Oliveira,João Fernandes Pico,António Gorgulho,João Bernardes da Silva,João Nogueira,Manuel Firmino,Hermitério Pato e António da Paula...

 ...E mais nove anos decorreram até que os músicos se dividiram para formarem a «Fina Flor Condeixense»,que fez a sua primeira apresentação na Barreira,em 2 de Fevereiro de 1920,dando início a uma rivalidade que durou trinta anos.
Embora se ressentisse,a «Música Velha» continuou tocando nas festas populares do concelho e outras,defendendo sempre o nome de Condeixa com afínco.
Vamos dar um exemplo desse bairrismo que poderá servir de exemplo aos que,actualmente,tanto dizem mal da sua terra.
À Festa da Senhora dos Milagres,em Cernache,no ano de 1932,foram duas filarmónicas:a Lealdade Condeixense e a do Cercal,regidas respectivamente,por Joaquim Jacinto e Oleiro.
Na noite do fogo,cerca das 3 da madrugada,como se tivesse esgotado o reportório da banda condeixense,o velhoAlbano Carlos mais o Francisco Pita,foram dizer ao Oleiro para acabar o arraial.Com ironia triunfante,foi-lhes respondido que«quem as tinha é que as jogava»,continuando a banda do Cercal a tocar,enquanto a de Condeixa se retirava envergonhada.
Desde esse dia, a Filarmónica viveu para a desforra e,esquecendo idades e melindres,entregou a direcção ao filho de Albano,o actual funcionário da Câmara Municipal,Miguel Carlos Quaresma,que então contava apenas 20 anos.
Na festa seguinte da Senhora dos Milagres,um ano depois,a «Música Velha» foi oferecer os seus serviços gratuitos à Comissão de de Cernache,com a condição de ali comparecer a banda do Cercal e,na noite do fogo,precisamente no mesmo local,os condeixensesz desforraram-se pois a banda adversária esgotou o seu reportório e a nossa continuou tocando.Foi um delírio a que não faltaram os foguetes,habituais companheiros das alegrias de Condeixa...
Até 1944,continuou a a música,a que também já chamavam do velho Albano,a percorrer algumas das festas mais importantes da região e mesmo a delocar-se longe.Assim,participou nos festejos anuais de Lamas,Miranda do Corvo,Muge,Atalaia, Eiras,Tovim,Glória,Penela,S.Martinho do Bispo,Torres do Mondego,Cernache,Soure,cidade de Coimbra,e tantos outros,não citando as dos concelhos de Condeixa,como as dos Passos,Ega,Furadouro,Zambujal,etc.
Em 1928,o ilustre pintor conimbricense Contente,pintou a bandeira da Lealdade Condeixense,que em 1944 amortalhou o corpo de Albano Carlos Quaresma,justa homenagem prestada pelos seus companheiros ao velho dirigente que,aos 69 anos,só tinha dois amores:o da família e o da sua música.
Falecido este baluarte da antiga banda dos Lemos,quando parecia que com ele morrera também a «Música Velha»,surgiu a dar-lhe novos alentos,uma comissão constituída por Dr.Fernando de Sá viana Rebelo,Dr.António Fortunato da Rocha Quaresma,António de Oliveira Cordeiro,Artur Varela,Isac de Oliveira Pinto,Jaime Francisco dos Santos e Álvaro Pedro Augusto.
E a velha filarmónica continuou,dirigida por Miguel Carlos Quaresma,regente encartado desde 1936,amadrinhada pela Senhora D. Maria Elsa da Piedade Sotto Mayor Matoso e com nova bandeira.
Teve seguidamente um período áureo sendo as suas exibições muito gabadas na Lousã(Senhora da Piedade),Coimbra(Rainha Santa),Figueira da Foz(S.João),Coimbrão,Muge,Atalaia,etc.,chegando a ser premiada com medalhas e fitas.
Instalando-se em Condeixinha,numa casa pertencente ao Dr.Joaquim Bandeira-mais uma vez a família Bandeira a acarinhar uma iniciativa-ali manteve a sua sede até 1949,data em que suspendeu a actividadedevido a exigências burocráticas e eclesiásticas,sobremaneira pesadas para os fundos da filarmónica.
Até quando?
Não é fácil vaticinar,pois a música velha tanto pode estar já amortalhada nas saudosas recordações dos seus fieis componentes,como de um momento para o outro,pode irromper pelas ruas da vila tocando marcial e entusiásticamemte o Hino dos Lemos,que pela última vez foi executado na Lousã,em 1948,frente à casa do Dr. Eugénio Viana de Melo,Governador civil de Coimbra,homenageando nele uma ilustre família que sempre acarinhou Condeixa,com particulares manifestações.



A ÚLTIMA FOTOGRAFIA DA FILARMÓNICA FINA-FLOR DE CONDEIXA(MÚSICA NOVA)


....E Condeixa nunca mais voltou a ter uma Filarmónica!

domingo, 18 de dezembro de 2011

O PRESÉPIO PORTUGUÊS

   A crise provocada pela ganância de banqueiros,políticos e mais personagens sem escrúpulos,está afectar todo o mundo.
   Portugal,pequeno país dependente económicamente,sofre bastante com as consequências.É já visível o efeito,mesmo nas classes consideradas de médio rendimento.Há um manifesto retraímento nas compras de celebração do Natal.Isso seria de menor importância, se não se traduzisse em incapacidade de atender as necessidades mais primárias!
  A sociedade de consumo,promovida pela criação de símbolos como o Pai Natal,tem-nos feito esquecer valores tradicionais muito mais genuínos,onde o espírito natalício era vivido de forma verdadeiramente familiar.
  Ao reler um velho livro,encontrei o texto de um grande escritor português,Ramalho Ortigão.Não resisti à tentação de o copiar,em memória de algo que está quase a desaparecer da nossa tradição:o Presépio!

                           PRESÉPIO DA MINHA INFÂNCIA,de Ramalho Ortigão.

   Era uma grande montanha de musgo,salpicada de fontes,cascatas,de pequenos lagos,serpenteada de estradas em ziguezague e de ribeiros atravessados de pontes rústicas.
  Em baixo,num pequeno tabernáculo,cercado de luzes,estava o divino bambino,louro,papudinho,rosado como um morango,sorrindo nas palhas do seu rústico berço,ao bafo quente da benígna natureza representada pela vaca trabalhadora e pacífica e pela mulinha de olhar suave e terno.A Santa Família contemplava em êxtase de amor o delicioso recém-nascido,enquanto os pastores,de joelhos,lhe ofereciam os seus presentes,as frutas,o mel,os queijos frescos.
  A grande estrela de papel dourado,suspensa do tecto por um retrós invisível,guiava os três reis magos,que vinham a cavalo descendo a encosta com as suas púrpuras nos ombros e as suas coroas na cabeça.Melchior trazía o ouro,Baltasar a mirra,e Gaspar vinha muito bem com o seu incenso dentro de um grande perfumador de família,dos de queimar pelas casas a alfazema com açúcar ou as cascas secas das maçãs camoesas.
 Atrás deles seguia a cristandade em peso,que se figurava descendo do mais alto do monte em direcção ao tabernáculo.Nessa imensa romagem do mais encantador anacronismo,que variedade de efeitos e de contrastes!Que contentamento!Que alegria!Que paz de alma!Que inocência!Que bondade!
 Tudo bailava em chulas populares,em velhas danças moiriscas,em ingénuas gavotas,em finos minuetes de anquinhas e de bico de pé afiambrado.
 Tudo ria,tudo cantava nesses deliciosos magotes de festivais romeiros de todas as idades,de todas as procissões,de todos os países,de todos os tempos!
 Alguns-os mais ricos presépios-tinham corda interior,fazendo piar passarinhos que voavam de um lado para o outro,mexiam as asas e davam bicadas nas fontes de vidro,em que caía uma água também de vidro,fingida com um cilindro que andava à roda por efeito de misterioso maquinismo.
 Todas estas figuras do antigo presépio da minha infância tinham uma ingénua alegria primitiva,patriarcal,como devia ser a de David dançando na presença de Saul.Dessas grandes caras de páscoas,algumas modeladas por inspirados artistas obscuros,cuja tradição se perdeu,exalava-se um júbilo comunicativo como de uma grande aleluia.
  

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ESPIRITISMO OU ESPIRITUALIDADE

Estes são temas que devem ser separadamente tratados,embora no fundo, a raíz seja muito próxima,em alguns aspectos.
Não vou,evidentemente,fazer o tratamento de cada um.Este não é o lugar próprio,nem os meus conhecimentos o permitem.Conheço apenas a concepção básica:"espiritualidade é a busca do transcendente,entendendo que cada um de nós possui uma alma(o espírito),que se liberta do corpo no momento do falecimento".Já o espiritismo,diz Allan Kardec,"é a comunicação com esses espíritos".A prática desta comunicação obtem-se com a utilização de "médiuns",individuos que se pressupõe estarem dotados com a capacidade de entrar nesse mundo fantástico,onde moram as almas.
A abordagem destes temas,serve-me apenas como prefácio para mais um dos meus "exercícios de memória",relatando coisas que se passaram numa época já bem remota,no tempo da minha juventude.

No início da década de 1950,alguns jovens,estudantes liceais,(creio que já frequentavam o Externato Infante D.Pedro),decidiram criar em Condeixa uma agremiação estudantil do género das repúblicas coimbrãs.
Num velho casarão,fundaram então a Real República das Catacumbas,esta última designação  devida ao facto de a parte de trás da casa confinar com uns moinhos,dando a vaga ilusão de grutas catacumbianas.
É claro que a república não servia de moradia aos estudantes e apenas era utilizada como ponto de reunião daquele grupo de amigos e local de ensaios para as serenatas que,no tempo,se faziam às bonitas raparigas de Condeixa e arredores.
Um dia,dois elementos do grupo trouxeram a ideia de realizar sessões de espiritismo.Não mais na minha vida fui aliciado para tais práticas,logo não sei se aquilo era bem executado.
"Falar" com os mortos,não é tarefa que se possa fazer de qualquer maneira!Exige tratamento personalizado,com ambiente propício.Por isso,à roda de uma mesa de pé-de-galo,reunia-se um grupo,sempre ímpar, de pessoas.A utilização daquele tipo de mesa era indispensável,como adiante se verá!
Sentados com as mãos abertas em cima da mesa e os dedos da extremidade de cada mão a tocarem-se nos dedos vizinhos(só assim "a corrente", qual circuito eléctrico,se pode estabelecer),iniciava-se a função.A luz do candeeiro era substituida pela amarelenta vela de estearina ou,melhor ainda,pelo morrão da candeia de azeite.Seguia-se um curto período de concentração.Depois,um dos "espiritas"informava o "além"que pretendia iniciar a comunicação e que a resposta devia ser dada por batimentos da mesa,um só para repostas sim,dois para não.Após esta indispensável informação,convocava-se o espírito com quem se pretendia "falar"..E começava a consulta,género:"És o espírito de fulano?"
Muito raramente a alma invocada se recusava a participar.Mas,quando tal acontecia,era porque estava presente algum céptico.Aí,não havia maneira de convencer o espírito a colaborar!A mesa entrava em batimentos descontrolados,cheia de tremeliques e a confundir as respostas.
Um dia em que isso aconteceu,fomos encontrar o intruso incrédulo,bem escondidinho para ver no que aquilo dava!
Mas,regra geral,até se conseguia um bom nível de conversação.É certo que bastante cansativa para o desgraçado do "médium"que tinha de suportar a mesa constantemente a bater-lhe nos joelhos.
As perguntas não podiam ser complicadas.Nada de querer saber como era a "vida"lá nos confins,ou se estava bem quentinho na brasa das penas do inferno.Aliás,estes desgraçados não tinham licença para comunicar.Nem os do purgatório!Sómente as almas puras e,por especial deferência,as que ainda "viviam"no limbo,que é assim uma coisa "nem carne,nem peixe",um espaço onde se fica transitóriamente,até à decisão suprema.
Visto à distância de não sei quantas dezenas de anos,até dá para fazer graça.Mas na altura,a questão era muito séria!
Um dia,estávamos na Praça a conversar sobre essas estórias fantasmagóricas,sentados num banco.Na altura havia uma grande vala,aberta para a colocação de cabos telefónicos.No auge da conversa,quando um dos intervenientes contava o episódio daquela alma que foi recambiada para o inferno,por castigo de dar com a língua nos dentes e revelado segredos que não devia,um curto-circuito nos cabos eléctricos de uma consola provocou grande clarão e o respectivo estrondo.
Aquilo parecia ensaiado!De uma só vez,todos se lançaram em salto acrobático para dentro da vala!
Bem,o susto foi tão grande que dois dos elementos do grupo,moradores numa aldeia próxima,não quiseram ir para casa sózinhos e um dos restantes companheiros teve de os acompanhar.Pudera,ele também não tinha coragem de ir para casa!
Mas as sessões não se limitavam à sala da república.A fama dos espiritas ultrapassou as paredes e o grupo começou a fazer sessões ao domicílio.
Um dia,fomos a casa de um conhecido e excêntrico clínico.A função decorreu tão bem,com a as almas bem dóceis ,a responderem ao longo interrogatório.Logo o anfitrião passou um atestado de competência ao grupo!Evidentemente,para gozar com a malta.Ou talvez não.Ele era mesmo excêntrico!
Numa terra pequena,onde tudo se sabia,o assunto passou a ser motivo de várias discussões.Os mais crentes afirmavam a pés juntos que aquilo era mesmo a sério.Mas há sempre os desmancha-prazeres!E resolveram desmontar o imbróglio.
Foi o grupo convidado para realizar mais uma sessão domiciliária.Quais actores participantes numa peça,ou músicos convidado para um forrobodó,lá fomos,convencidos da nossa superioridade de pessoas capazes de comunicar com o além.
Chegados à casa em questão,apresentaram-nos uma mesa de pé-de-galo enorme,em sólido bronze.
Inocentes,nem desconfiámos da marosca..Apagaram-se as luzes ficando apenas a bruxuleante vela e toca a iniciar a necessária concentração..O "médium" convocou os espíritos.Nada!.Mais uma chamada.Nem sequer uma leve oscilação da mesa!Ainda pensámos que a situação era devida à presença do dono da casa,com fama de bruxo!Rogámos-lhe que saísse,o que fez,contrariado.
Mas o mal estava feito!
Portando-se como meninos birrentos,os espíritos recusaram qualquer convite,sem nos dar cavaco!Já estávamos a ficar azuis.Então não é que as alminhas nos íam daixar ficar mal?
E foi isso que aconteceu,ninguém compareceu aos insistentes apelos!Não havia lugar para dúvidas,eles estavam mesmo zangados com a utilização da mesa de bronze!
Anos mais tarde,decobrimos que as mesas de pé-de-galo em madeira,são muito mais fáceis de manobrar! 

domingo, 27 de novembro de 2011

A CASA PAROQUIAL DE CONDEIXA

CARTA ABERTA A TODOS OS CONDEIXENSES,EM PORTUGAL CONTINENTAL,ILHAS ADJACENTES E AINDA AOS QUE ESTÃO ESPALHADOS PELO MUNDO,ONDE QUER QUE A VIDA LHES PROPORCIONE CONDIÇÕES DE TRABALHO E BEM-ESTAR FAMILIAR E ECONÓMICO.

Caros conterrâneos, a Igreja de Condeixa está a construir o seu Centro Paroquial,uma casa onde se possam desenvolver condignamente as actividades inerentes à Igreja.
Uma das importantes funções do novo edifício é a construção de duas casas mortuárias.Actualmente,o local a isso destinado ocupa um espaço retirado à sacristia.Sítio exíguo,possui apenas as condições mínimas para a função a que se destina.Quando porventura ocorre mais que um óbito simultâneo,tem de se recorrer à utilização de outro local,normalmente a própria Igreja ou a Capela da Senhora das Dores.
Nas novas instalações estão a ser construidas duas câmaras funerárias com todos os requisitos de higiene indispensáveis,privilegiando também os necessários meis de conforto para que possa ser processado o velório pelos familiares e amigos da pessoa falecida.
É claro que tudo isso custa dinheiro.Que a Igreja não possui!
Uma comissão expressamente constituida lançou mãos a iniciativas tendentes à angariação dos fundos necessários.O primeiro passo foi a edição de um livro intitulado:"CONDEIXA Paisagem,Memória e História".Trata-se de um volume com história e estóriasda nossa terra,escrito por gente de cá ou que a Condeixa está intimamente ligada.
Devido ao valioso contributo da empresa "G.C.Gráfica de Coimbra,lda.",este livro encontra-se à venda por apenas 10 euros,quantia que reverte inteiramente em favor das obras em curso.
Apelando ao bairrismo de todos,especialmente os condeixenses que,fora da sua terra lutam por uma vida melhor,vimos pedir a contribuição possível.De pequenas quantias se faz grande montante!
As eventuais dádivas,podem ser feitas através do NIB 0045 317240247045207 38
Para quem esteja interessado em adquirir o livro,pode dirigir o pedido a:Igreja de Condeixa,Largo Rodrigo da Fonseca Magalhães 3150-126-Condeixa-a-Nova

























domingo, 16 de outubro de 2011

AS PROFISSÕES E OS ARTISTAS DE CONDEIXA

"Da minha terra vejo o quanto se pode ver no Universo
 Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
 Porque eu sou do tamanho do que vejo
 E não do tamanho da minha altura...

 Nas cidades a vida é mais pequena
 Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro
 Nas cidades as grandes casas fecham a vista à chave
 Escondem o horizonte,empurram o nosso olhar
 Para longe de todo o Céu,
 Tornam-nos mais pequenos porque nos tiram
 O que os nossos olhos nos podem dar
 E tornam-nos pobres,porque a única riqueza é ver!"

Alberto Caeiro em "O Guardador de Rebanhos"


Em todas as profissões há artistas e "sapateiros"!Esta expressão designa geralmente o profissional que executa a sua obra sem perfeição,"atamancada",daí outra maneira de dizer que tem a ver com tamancos,objectos de uso para os pés,mas de feitio tosco.
Entendo que o apodo é injusto,pois a arte de sapateiro exige conhecimento e habilidade manual!
Actualmente o calçado é produzido em unidades industriais com maqinaria sofisticada.Antigamente porém,os sapateiros faziam as botas ou os sapatos, a partir das medidas tomadas aos pés do freguês.
A primeira fase da obra correspondia à feitura das gáspeas,a parte superior do calçado,em calfe,que o sapateiro talhava e depois mandava coser em máquinas próprias,geralmente operadas por mulheres,as "ponteadeiras".Após isto, numa peça de madeira com o formato do pé,colocava o sapateiro as gáspeas,esticáva-as e prendia-as com pequenos pregos,colava as palmilhas e procedia à aposição das solas,préviamente batidas a martelo para lhes dar a espessura e consistência adequadas.Isto era importante,pois quanto mais comprimidas estivessem as solas,maior era a sua durabilidade.O passo seguinte consistia em coser as solas às gáspeas,com fio de linhol embebido em cera,para lhe dar mais   resistência e maneabilidade para passar nos buracos que um furador chamado sovela ia abrindo no material.
O sapateiro trabalhava num banco baixo,com os joelhos dobrados em ângulo com o corpo para poder prender o calçado entre as pernas e assim produzir a obra.À frente,tinha uma banca onde estavam   as ferramentas necessárias ao seu mister: sovela e sovelão;formas de ferro e de madeira;torquês;pica-ponto;buxete e manípulas,estas em cabedal,para protecção das mãos no manuseamento das linhas de coser.
"Grosso modo",pois nunca fui sapateiro e sei apenas o que via fazer,era assim que se desenrolava o trabalho daqueles profissionais.
Em Condeixa existiam muitos sapateiros.Uma razão para esse facto talvez se prendesse com a existência na vila de duas pequenas unidades de produção de calçado:José Lopes Cardoso e Manuel António Nunes.Essas "fábricas"foram responsáveis também pela vinda de sapateiros e ponteadeiras que acabaram por se radicar na vila.
A vida,há mais de 60 anos, tantos quanto a minha memória alcança,era difícil.Numa terra pequena,escassamente desenvolvida, vivendo quase exclusivamente da agricultura e do comércio,as necessidades familiares obrigavam a grande economia.Por isso,não é de estranhar que uma das "fábricas"mencionadas,José Lopes Cardoso,tivesse criado uma curiosa maneira de comercializar os seus produtos.Cada par de sapatos vendido a crédito,era acompanhado por uma caderneta numerada,onde se registavam as prestações mensais.Entretanto,se os últimos algarismos da Lotaria Nacional (a chamada "terminação")correspondiam aos números da caderneta,o cliente recebia como prémio o calçado comprado,sem necessidade de continuar a pagar as prestações.Há sempre uma maneira inteligente de dar a volta às dificuldades!
É curioso o facto de existirem tantos sapateiros em Condeixa,se pensarmos que naquele tempo muita agente andava descalça.Mas os sapateiros não estavam vocacionados apenas para o fabrico.Também,e mais frequentemente,faziam reparações como "deitar umas trombas",isto é,substituir a parte dianteira do calçado,aquela que estava mais sujeita aos embates com as pedras das ruas mal calcetadas.Ou "metiam meias-solas e saltos"e,se isto estava em bom estado,até substituiam as gáspeas,aproveitando tudo o resto!
A instalação em Condeixa de um posto da GNR,em 1947,fez cumprir a proíbição de andar descalço.Mesmo assim,recordo-me de ver muita gente que vinha ao mercado nos dias de feira,só utilizar o calçado quando chegava ao perímetro urbano da vila.Desta forma poupavam os sapatos na longa caminhada por estradas poeirentas e mal cuidadas.
Eu também muitas vezes percorri as ruas da vila,sem calçado.Era uma forma de me sentir mais livre.Além de evitar os ralhetes em casa,por ter estragado os sapatos nos desafios de futebol em plena rua ou na Praça!
A profissão de sapateiro,sendo uma das mais vulgares em Condeixa,tinha também figuras peculiares.São interessantes os episódios tendo como protagonistas os sapateiros ou os seus clientes.
Ao Ti Nero foi incumbida a tarefa de reparar umas botas.Era inverno e o sapateiro sem mais nada para calçar,serviu-se das botas do freguês.Quando este ljhe perguntava se as botas estavam prontas,respondia apenas:"estou com elas",percebendo o cliente que ele estava "com elas em mãos".Mas na verdade,ele estava com elas calçadas!
O Ti João Cavaca costumava gastar o produto do seu trabalho,na taberna.A mulher,tentando que,pelo menos,algum dinheiro sobrasse para as despesas,pediu a um cliente que apenas pagasse metade e lhe desse a ela o restante.Não lhe serviu de nada o expediente!Quando o cliente disse que só pagava uma parte e depois levava o resto,respondeu-lhe calmamente o sapateiro:"Só paga metade?Pois leva apenas um sapato.Quando pagar o resto,leva o outro!"
Era assim o quotidiano desta terra que,sendo pequena,era enorme na quantidade de profissionais nos diversos ofícios.Artistas que pretendo recordar,respeitosamente,nesta rubrica.

domingo, 4 de setembro de 2011

AS PROFISSÕES E OS ARTISTAS DE CONDEIXA

"...pomposo e artístico retábulo de talha dourada formando uma sumptuosa capela,para ser colocada a imagem de S.Tomaz de Vila Nova,na Sé Nova,foi feito por um entalhador de Condeixa e os cónegos ficaram tão satisfeitos com o trabalho,que em 29 de Maio de 1864 resolveram dar-lhe,além do ajustado,mais uma gratificação de 20$000 réis,havendo respeito a fazer o retábulo com toda a perfeição e perder na quantia em que tomou a obra".(in Condeixa-a-Nova,de A.Santos Conceição).
A descrição refere-se ao século XIX,mas para além da segunda metade do século XX era possível encontrar na vila pequenas lojas de sapateiro,alfaiate,barbeiro,marceneiro/entalhador,ferreiro,ferrador,tanoeiro,latoeiro e serralheiro.Moleiros então,existiam dezenas e os pedreiros,bastantes,trabalhavam ao dia,nas raras construções,mais frequentemente na reparação ocasional de paredes,telhados e muros.
Mas para ser um bom profissional,era necessário aprender.E a aprendizagem do ofício fazia-se desde pequenino,alguns mal acabavam a instrução primária,outros nem isso conseguiam.E pagava-se para aprender!Regra geral,quando os pais punham o miúdo como aprendiz,pagavam ao mestre,normalmente com produtos da terra.
Por vezes acontecia uma criança ser de fraca compleição.Nesse caso,não ia para profissões de esforço mas sim para caixeiro de loja ou ajudante de qualquer escritório.Curiosamente,não se tratando própriamente de um ofício,a condição funcionava, apesar disso, como estatuto social!
Mais comum porém era a transmissão dos saberes,de pais para filhos.Daí as gerações continuadas de profissionais da mesma arte.
O Padre Dr.João Antunes,homem de franca apetência pelas artes,quando patrocinou a reconstrução da Igreja de Santa Cristina,apercebeu-se que os profissionais contratados para as reparações,tinham capacidades inatas,porém apenas empíricas.Executavam bem os trabalhos,mas não se interrogavam porque um determinado serviço podia ser melhor conseguido com conhecimentos técnico/científicos.
Tendo contratado a colaboração de mestres de reconhecido valor,como João Machado e António Augusto Gonçalves para realizar os mais delicados reparos,surgiu-lhe a ideia de criar uma escola destinada a ministrar aos operários o necessário saber científico.Desta forma e inteiramente a suas expensas,contratou como professores António Gonçalves, Abel Manta e Pedro Olaio e fundou a Escola de Artes e Desenho Industrial,a funcionar na sua residência.
Cerâmica,pintura, música,artes manuais, foram disciplinas que devotados alunos aprenderam durante os treze anos de existência desse polo de ensino.
O romancista Fernando Namora,aluno também de artes plásticas nessa notável escola,disse em autobiografia,referindo-se ao Padre Dr.Antunes""Financiava do seu desgovernado bolso uma escola de artes e ofícios,com mestres de quilate, e morreu sem um lençol na cama.Mas entretanto a vila multiplicara-se em pintores de domingo,marceneiros-artistas,ferreiros,compositores populares".
Nos ofícios,cedo se revelaram os conhecimentos adquiridos e ainda hoje,mais de oitenta anos passados após o fim da Escola,se pode apreciar o talento transmitido através de gerações.
Felizmente,embora o facto me pese demasiado na idade,recordo bem os grandes artistas de Condeixa.Tive o gosto de conviver com a maior parte deles,admirava-lhes o saber,aprendi a respeitá-los.
É com esse respeito que me permito nomeá-los pelas alcunhas,afinal segundos nomes que se colavam perfeitamente a cada personalidade,sem que daí  viesse qualquer conotação depreciativa.
Começo por referir os barbeiros,pois as barbearias eram estabelecimentos peculiares.Nas terras pequenas,meio urbanas/meio rurais,o trabalho do barbeiro manifestava-se mais ao sábado à noite,embora também se pudesse assistir a curiosas cenas de corte cabelo e barba,ao domingo de manhã.
Como já tive ocasião de referir noutro local do blogue,antigamente os barbeiros tinham uma função que ultrapassava o simples corte de cabelo.Nas terras pequena onde escasseavam os serviços clínicos,para arrancar um dente,espremer um furúnculo ou aplicar tisanas,bastava a"competência" do fígaro,auto-intitulado "Cirurgião-barbeiro"!.
A única referência que conheço sobre essas populares figuras,diz respeito a um barbeiro chamado Ti Ernesto que, a par da profissão,também "tratava"doentes e arrancava dentes.Pelas imagens que decoram alguns consultórios de dentista,imagina-se como isso se processava,assim a sangue frio,sem dó nem piedade.
O filho do Ti Ernesto,Adolfo Leitão,também era barbeiro.Lá está a transmissão de conhecimentos através de gerações.
Porém o estabelecimento que mais profissionais formou,foi a Barbearia Progresso,de António de Oliveira.Mestre António do Zé Velho,assim vulgarmente conhecido, além de competente profissional, era inspirado compositor de temas de música popular.Seu filho Ramiro de Oliveira,igualmente barbeiro e poeta,escrevia os poemas que o pai musicava.
Um pouco mais adiante, na mesma rua,situava-se a barbearia de Manuel Quaresma,o popular Manel Tagarela.Tive o gosto de ser seu cliente e amigo.Acérrimo adepto do Benfica, formava com o Zé Bacalhau(José Júlio Bacalhau),sportinguista ferrenho,Carlos Gualdino(Carlos Ramos Pereira),igualmente sportinguista e Zé Capado(José Luís Torres),benfiquista,um grupo que à segunda feira discutia calorosamente os desafios da véspera.
O Ganga(António Pessoa),inicialmente estabelecido em Condeixinha,ocupou posteriormente o rés do chão do esguio Ferro de Engomar, à esquina da Rua 25 de Abril com a Praça.Dono de linda voz de tenor,era frequentemente solicitado para cantar nas revistas musicais e em serenatas.
As restantes barbearias de Condeixa, pertenciam respectivamente a João Rito,à esquina da Praça com a Rua Dr.Fortunato Bandeira de Carvalho,a João Borrega(João Ramos)em frente ao Palácio Sotto Mayor e, ao princípio da Rua D. Elsa Sotto Mayor, o Sr. Rosa, avô dos agora também barbeiros, Alexandre e António Rosa.
No Outeiro, o Ti Picaroto(Francisco Caridade),fazia barbas e cortava cabelos ao domingo de manhã,em frente à sua casa,no Largo de S.Geraldo.

Está terminado o capítulo referente às barbearias.Outras profissões ocuparão os próximos episódios.

domingo, 14 de agosto de 2011

SOBRE O TEMA "A BALADA DA NEVE"

A Balada da Neve,de Augusto Gil, é um dos poemas mais divulgados em Portugal. Incluido em diversos manuais escolares,faz parte do meu imaginário, como o fará de tantas outras pessoas que o leram ou declamaram em récitas de Escola.
O grande João Villaret "dizia-o"com a simplicidade que os versos sugerem,mas, simultâneamente, com a ternura comovente do seu final.
Nesta tarde calma de verão,deu-me para comentar em verso este lindo poema.

"Batem leve,levemente..."
Os livros antigamente
Tinham histórias e poemas
Recordo ainda temas
Que ensinavam a gente
A gostar do que se lia
Fosse prosa,poesia
Teatro de Gil Vicente
"Como quem chama por mim..."
É uma coisa que se sente
"Será chuva,será gente
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim..."
Da cabeça não saía
O dia envolto num véu
"Fui ver, a neve caía
Do azul cinzento do Céu..."
Como é linda, a neve!
"Branca e leve,leve e pura..."
É bela a sua brancura
De noite, parece dia!
"Há quanto tempo a não via
E que saudade, Deus meu!..."
Meu bafo a janela embaça
"Passa gente e quando passa..."
Os dias parecem iguais
"E noto,por entre os mais
Os passos miniaturais
Duns pézinhos de criança..."
Recordo os versos sofridos
"E descalcinhos,doridos
A neve deixa 'inda vê-los
Primeiro,bem definidos
Depois, em sulcos compridos
Porque não podia erguê-los..."
Sofra o mundo,em redor
"Mas as crianças,Senhor!
Porque lhes dais tanta dor
Porque padecem assim..."
Não era p'ra mim surpresa
O final da oração
"Uma infinita tristeza
Uma funda turbação
Entra em mim,fica em mim presa
Cai neve na Natureza
E cai no meu coração!"

Condeixa,14 de Agosto de 2011
Cândido Pereira

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

TEATRO DE REVISTA EM CONDEIXA

Em 1979,Ramiro de Oliveira,o poeta popular que escreveu as letras de muitas e belas melodias de seu pai,Mestre António de Oliveira e de seu irmão Maestro Saúl de Oliveira Vaio,escreveu uma revista que chamou "CONDEIXA SEM MÁSCARA",contando para isso com a colaboração do Rancho Folclórico e Etnográfico da Casa do Povo de Condeixa e de alguns dos seus elementos para a representação de vários números de uma outra revista de muito êxito,representada em 1936 no Cine-Avenida de Condeixa.Foi com muito prazer que aceitei o convite para ensaiador.
Dos quadros que melhor aceitação tiveram,contava-se "A Escarpiada e o Licor de Leite",na original revista cantado por Maria Bernardes da Silva(Maria da Joana)e Raúl Geraldes.

Ela:
Eu sou a escarpiada
Muito doce e saborosa
Bastante apreciada
Por ser tão apetitosa
Muitos a mim se atiram
Com instintos de leoa
Também não admira
Pois que todos me acham boa.

Ele:
Sou o licor de leite
Branquinho e açucarado
Por isso quem me bebe
Depressa fica banzado
Descendo lá das mudas
E do Bairro do Quelhorras
É vê-los sair todos
Soltando vivas e morras.
Ó escarpiada
Mui saborosa
E amarelada
Chega-te a mim
Que quero dar-te
Uma dentada.

Ela:
Licor de Leite
Estás a mangar
Meu marotão
Estás todo feito
Com esse jeito
Mas isso não!

Ele:
Há gulosos por aí
E há gulosas também
Que não prescindem de mim
E me bebem muito bem
Quando lhes subo à cabeça
O delírio é permanente
Tudo baila,tudo brinca
Tudo canta,minha gente!

Ela:
Com açucar e canela
E a côr acastanhada
Além de doce e bela
Sou bem feita,bem formada
Dizem que abro o apetite
E também julgo que sim
Porque vejo os lambareiros
Todos de volta de mim.
Grande consumo
Por toda a parte
Cá e p'ra fora
Sou amassada
E sou formada
P'lo Ai que Chora.

Ele:
E eu também
Mas vendo bem
Há muitos anos
E que o digam
Os que aqui param
Do Costa Ramos!

Como explicação,Costa Ramos era uma referência aos motoristas dessa firma de transportes rodoviários que,na circulação Lisboa-Porto,aqui paravam para tomar as refeições,regra geral,na taberna do Zé David.
Da revista "Isto é Condeixa",representada na vila em 1964,foi recriada a fantasia "Condeixinha e Outeiro",nessa altura interpretada por Lurdes Loio e José Pinto:

Outeiro
Gabarolas!Folião e bairrista!Saiam para a rua,venham para a festa e veremos se há aí quem me resista!A mim,e até ao meu par!Se Condeixinha vier...vocês vão ver,se há alguém capaz de nos vencer!

Condeixinha(entrando como por acaso):
Não vencem,não!Mas tu sem mim,também não és ninguém.Senão,diz-me:onde é que tu tens graça que ultrapasse a minha graça?

Outeiro:
Aspiro o aroma sem igual,do arvoredo...do jardim do meu Hospício.Ouço cantar alegre o rouxinol!

Condeixinha.
Mas diz-me,com franqueza,se em beleza,o encanto do Travaz lhe fica atrás?

Outeiro:
Onde tens tu um pôr-do-sol tão belo como o meu?

Condeixinha:
Mas não tens o encanto da Lapinha!O cantar sempre moço da levada...não ouves os moinhos,cansados,velhinhos,mas sempre criancinhas no palrar!

Outeiro:
Mas tenho em altar,misteriosos recantos de belezas sem par!Das pedras do meu solo,rompem flores...

Condeixinha:
E eu tenho-as de mil cores(tantas vezes já o tenho dito),são silvestres,mas são flores,espalhadas pela encosta onde habito!

Outeiro:
Deixas-me falar?

Condeixinha:
Espera,temos outras contas a ajustar!Porque andaste a cantar que eras folião?Que eras o"Bairro Lindo das Espanholas"?Oh!meu grande gabarolas!O que és tu,sem mim?

Outeiro:
AH!Tu falas assim?Não te lembras,vaidosa miúdinha,oh!Condeixinha,quem começou?Tu não cantaste nada?Não vieste para a rua convidar os rapazes a subir a ladeira,sem canseiras,só para lá irem buscar o par?Não disseste que"o sol rezava no teu seio,todos os dias"?Como tu te iludias!

Condeixinha:
Não iludia,não!E tenho mais para dizer.Porque me chamaste regateira,Marcha dos filhos da rua?


Outeiro:
Não foste tu a primeira,não foste tu,minha tola quem primeiro cantou então,que eu trazia na cachola,chapeu de grude e cartão?

Condeixinha:
Nãofalemos então mais,nas coisas que já lá vão!

Outeiro:
Bom,semprefoi bom recordar,e lembrar de viva voz,aos de mais fraca memória,que a nossa história...é tão comum,tão igual, que sempre que há festival,não podem passar sem nós!!!

(Cantando)

Condeixinha:
Tu tens "galinhas" eu "patos"
"cavacas"temos iguais
Já lá tiveste uns "patacos"
Mas notas eu tive mais.

Tive conversa barata
Mas cabecinha entendida
Tu tinhas uma de"prata"
E até fugiu p'rá Avenida.

A cadeia foi-se embora
O teu Colégio também
Já pouco mais tens agora
Sabes isso muito bem!

Outeiro:
Com moedas aos alqueires
Porque és tu tão mafarrica?
Cala a garganta que tens
E faz figura de rica

Tenho Alcobaça,Viseu
E tu Braga e Guimarães
Tudo o que tens,tenho eu
Tudo o que tenho,tu tens

Não contesto essa verdade
Mas ouve,que não te engano
Ainda tenho Caridade
E Salicús todo o ano!


Era assim que se demonstrava a velha rivalidade Condeixinha-Outeiro!
Para finalizar,dizia ainda o Compére:

Este espectáculo está a chegar ao fim,mas antes queremos apresentar-vos uma canção,ou antes,um Hino a Condeixa,que foi cantado há cerca de vinte anos por António Pessoa,numa das festas realizadas na Casa do Povo,por ocasião dos Santos Populares.Vai cantá-la o mesmo António Pessoa.

Entre a serra e a campina
Que o Mondego vem beijar
Há uma terra pequenina
Que em beleza não tem par

Não mora nela a tristeza
Mas quem por ela passar
Parte triste e com certeza
Vive triste até voltar!

Palácios velhinhos
Solares de saudade
Palreiros moinhos
Hospitalidade!
Recantos de sonho
Que a graça não deixa
Não tiro nem ponho
Tudo isto é Condeixa!

Nesta terra portuguesa
Que a natureza moldou
Há legados que a nobreza
Longos anos habitou
Vê-se o sol ao fim do dia
Pôr em festa o horizonte
Com recitais de poesia
Ao redor de cada fonte.



domingo, 17 de julho de 2011

O ENTERRO DO BACALHAU

Há tempos um amigo ofereceu-me um livrinho manuscrito em bonita letra escolar,daquela redondinha que não podia ultrapassar as linhas paralelas dos cadernos.
Curioso,fui desfolhando as páginas e li uma das mais antigas tradições portuguesas,um estilo teatral de origem popular,geralmente chamado "literatura de cordel".
Procurei informação sobre o tema e encontrei em Luiz Francisco Rebelo,o seguinte:"É um erro,em que muitos incorrem ainda com frequência,conceber a história do teatro como simples capítulo da história da literatura...".Mais adiante,diz:"Assim, o teatro é uma totalidade,em que o texto-a componente literária-se não situa antes nem para além do espectáculo,mas no centro deste,núcleo de que irradiam os demais elementos integrntes dessa totalidade.Na verdade,a criação teatral não se esgota no acto puramente literário que lhe está na origem,pois as palavras escritas pelo autor(o «corpo da peça»,dizia Craig)exigem a voz dos actores que hão-de murmurá-las ou gritá-las;as personagens a quem o autor atribui essas palavras requerem o corpo dos comediantes em que hão-de habitar;essas personagens,que ao serem concebidas pelo autor possuem apenas uma dimensão temporal,reclamam o espaço físico onde possam descrever a parábola da sua existência fictícia,mas nem por isso menos autêntica".
Ao citar estas considerações,estou a recordar a ideia generalizada de que teria sido Gil Vicente o "pai" do teatro português. No entanto, bastante tempo antes,mais própriamente no ano 314 d.C.,o Concílio de Arles proscreveu actores,saltimbancos e jograis. Ora o entremêz que vou reproduzir,insere-se mais na linha popular dos jograis e saltimbancos,sem preocupação pela qualidade literária de texto,com "versos de pé quebrado",ao contrário de Gil Vicente,muito mais elaborado. O título desta obra que me ofereceram é "O Enterro do Bacalhau".Versa um tema curioso:o período da Quaresma é, por determinação da Igreja Católica,tempo de abstenção do consumo de carne.Os fiéis cumpridores deste preceito procuravam alternativas alimentares, bastantes para quem tinha recursos económicos,mas escassas para os restantes.
Actualmente o bacalhau é um dos mais caros produtos alimentares.Porém,nem sempre assim foi.Dadas as suas características peculiares-capacidade de longo armazenamento sem necessidade de condições específicas e preço acessível-o bacalhau era "o amigo do povo".Mas tudo o que é de mais enjoa.E assim acontecia na Quaresma. Quarenta dias sem provar o gosto da carne,pior,quarenta dias de alimentação quase exclusiva de bacalhau criava nos consumidores um sentimento generalizado de revolta.
É claro que na teatralização do tema,também há exagero.Vê-se claramente que este tipo de "vingança" é mais ditado pelo aproveitamento da ocasião para fazer alguma crítica ao sistema e mostrar os dotes teatrais dos participantes.
A peça representa o julgamento de um "réu" que, como em qualquer tribunal,deve ter direito a defensor.A acusação é feita por quem afinal é a culpada:a Páscoa!A vida também é assim!Quantas vezes o povo sofre as consequências do mal feito por alguém que acaba por ser algoz!
(faço a transcrição integral do manuscrito)
E agora,senhoras e senhores,vai começar a função!

FALA O JUIZ
1
A minha lei estremosa
Dá o direito e a razão
Todo o réu seja ouvido
Na primeira ocasião
2
Vamos decidir com isto
A sorte do misero bacalhau
Negro como a ferrugem
Duro e sêco nem um pau
3
Não se lhe nega o direito
Nem a defesa que mostrar
Mas há-de sumáriamente
Toda a inocência provar
4
Deste modo ficarão
Neste serviço logrados
Felizes procuradores
Escrivães e delegados
5
Demandas que nos deram
Nos escritórios demorados
Morreram filhos e netos
E nunca foram acabados
6
As partes que estão presentes
Ainda em cima do seu mal
Pelo intrudo e pela páscoa
Pelo S.João e Natal
7
Apareça o réu à frente
Para aqui ser interrogado
Depois da verdade conhecida
Ser logo sentenciado

FALA A PÁSCOA
1
Finalmente chegou o dia
Que por nós era desejado
Só por termos alegria
Do bacalhau ser enforcado
2
Acabou-se a nossa tristeza
Vamos gozar de alegria
Enforcar o bacalhau
Que tanto mal nos fazia
3
Há hoje sete semanas
Que todos tens governado
Eu protesto e não me engano
Que hei-de ser de ti vingado
4
Hei-de ser de ti vingado
Disso te dou a certeza
Vais morrer enforcado
Podes tratar da defesa

FALA O BACALHAU
1
Eu em minha defesa
Muito tenho a chamar
Mas é tal a minha fraqueza
Que nem sequer posso falar
2
Mas sempre farei esforços
De ao povo perguntar
Se não tem alguns remorsos
Do bacalhau enforcar
3
Há hoje sete semanas
Que a todos tenho governado
Não sei que mal eu fiz
Para eu ser enforcado

FALA A PÁSCOA
1
Na forca tu vais morrer
Diante de toda a gente
Não te posso ouvir dizer
Que é condenar o inocente
2
Queria p'rá Pascoa ficar
Isso tinha muito que ver
Não te estejas a alterar
Que na forca vais morrer
3
Tu pergunta a esta gente
Qual a sua opinião
Todos te dirão na frente
Que te trincam o coração
4
Ao almoço e ao jantar
Vem o bacalhau ao prato
Mas não se pode tragar
Atira-se de presente ao gato
5
Dizes que não és criminoso
Bacalhau, peixe nojento
Morres por seres teimoso
Faz tu teu testamento

FALA O BACALHAU
1
Quaresma eu vou morrer
Amiga do coração
Tu não me podes valer
Nesta minha aflição
2
Eu com as ânsias da morte
Vou fazer meu testamento
Já não há quem me conforte
Quem me dê algum alento

FALA A QUARESMA
1
Eu tenho estado a ver
Ao povo a ingratidão
Mas não te posso valer
Nessa tua aflição
2
Eu hoje também acabo
E choro minha triste sorte
Não sei qual seja a razão
Que nos dêm pena de morte
3
Tu ó Páscoa tens a culpa
De tanto mal se penar
Mas tu não és absoluta
Ninguém podes tu matar
4
A paga hás-de receber
Juro-te do coração
Por tu mandares fazer
Duas mortes sem razão
FALA A PÁSCOA
1
Acabou-se o vosso tempo
Nada mais tenho a dizer
Até causa aborrecimento
O modo de se defender
2
A Páscoa tem valentia
E nada tem a temer
Tenho por mim toda a gente
Para a justiça fazer
3
Será preciso dizer
Façam o vosso testamento
Tu na forca vais morrer
Não tardará muito tempo
4
Eu não temo tua espada
Nada mais tenho a dizer
Mas sempre logo direi
O bacalhau há-de morrer

FALA O DEFENSOR
1
Alto e pára traidora
Se matares o bacalhau
Tens guerra declarada
Tens tudo contra ti
Até a própria pescada
2
Mas sendo tu inocente
Sofres tudo quanto é mau
Vejo aqui toda a gente
Tudo contra o bacalhau
3
No tempo da inquisição
Que os criminosos iam morrer
Mesmo se houvesse muita razão
Sempre se havia de absolver
4
Mas eu sou dos mais antigos
Todos me hão-de obedecer
Com meus papeis e amigos
Esta batalha vou vencer
5
Eu estou convencido
Que eles me vêm ajudar
Até vos posso dizer
Que tudo hei-de evitar
6
Ó mar valei-me,ó mar
Eu vos peço protecção
Que me venham ajudar
Satisfazer minha paixão
7
Os peixes lá no mar andam
Todos num desespero
Se chegam a saltar fora
Engolem o mundo inteiro
8
Não matem o bacalhau
Que ainda é meu parente
Não me queiram dar desgosto
Diante de toda a gente
9
Já que forças eu não tenho
Para mais continuar
Peço a Vossa Excelência Juíz
Para esta sentença embargar

FALA O JUIZ
1
Bacalhau se tens uma coisa
A alegar aproveita a ocasião
Fala a todos com franqueza
E propõe tua razão

FALA O BACALHAU
1
Eu para minha defesa
Nada mais tenho a dizer
Querem que eu morra enforcado
Paciência,que hei-de fazer

(nota:este texto está em prosa)

O Juiz fala ao oficial-Ó ofícial
Oficial-Pronto,Senhor Juiz
Juiz-Traz cá o livro da lei
Oficial-Eu peço a V.Exª que decida
Com esta justiça
Eu como oficial de diligências
Quero comer pão,vinho e cortiça
Juiz-Cortiça,oficial?
Oficial-Perdoe-me Sr.Dr.,enganei-me
O que eu quero é chouriça.

FALA O JUIZ
1
Visto que a minha lei me diz
A favor do bacalhau
Com alho vinagre e azeite
É um petisco menos mau
2
Não se vê bêbado algum
Que não deixe de gabar
Agora posto em trabalhos
E ninguém te vem livrar
3
Acabou-se a quarentena
Que tanto nos serviste
Os mesmos que te comeram
Te dão a paga tão triste
4
Bacalhau da minha alma
Quem te viu e quem te vê
Os mesmos que ti serviram
Que dão com o bico do pé
5
Por mais recto que eu seja
Causas tenha a defender
Chego a pontos tais que veja
Mais não seja o que fazer
6
A lei tem todo o poder
Eu forças trago comigo
Nada mais há a fazer
Será isto o que digo
7
Tu Páscoa és delambida
E tu falas sem razão
Mas talvez te custe a vida
Essa tua ingratidão
8
Eu de hoje a um ano
Falarei com mais razão
Contra ti sou um tirano
Durante esta extensão
9
Queres matar o inocente
Com a força da vingança
Mas não vais levar avante
Eu juro e tenho esperança
10
A minha lei absoluta
Sempre há-de vigorar
Tu Páscoa és uma bruta
Não te estejas a cansar

FALA A PÁSCOA
1
Tenho pouco a dizer
E estou quase cansada
Nada mais vai haver
Isto é uma caçoada
2
Vá o bacalhau para a forca
Já devia estar enforcado
Não há carne que sustente
Como a carne de capado
3
Eu quero,faço e digo
Quero,posso,hei-de vingar
A força está comigo
Para o fedorento matar

FALA O DEFENSOR
1
Bacalhau,bacalhau
Bem nascido e mal-fadado
Vieste das partes do norte
Para aqui seres julgado
2
Salta carrasco mal feito
Ao bacalhau inimigo
Três formigas te rapem a pele
Carrega o demónio contigo

O JUIZ LÊ A SENTENÇA
1
Bacalhau,bacalhau
Vou ler a tua sentença
Tu estás absolvido
Por ver a tua inocência
2
Tirai exemplo disto
Amigos e caminhantes
Acaba aqui a tragédia
Amiguinhos como dantes!

VÁ O BACALHAU PARA A RUA!!!










1

sexta-feira, 10 de junho de 2011

HÁBITOS HIGIÉNICOS DOS CONDEIXENSES DE OUTRORA

O título é enganoso, pois presume que os condeixenses tinham hábitos higiénicos diferentes de toda a gente, o que não é verdade. Ainda nos anos quarenta do século XX, vi em Lisboa os moradores de algumas ruas (pelo menos as menos expostas) lançarem das janelas embrulhos de jornais que se estatelavam na calçada espalhando o conteúdo por todo o lado, e que aí ficava até à passagem do varredor. Se recuarmos um pouco mais na época, era comum o grito “Aí vai áuga”, aviso de quem imediatamente atirava para a via pública o líquido emporcalhado.
Em Condeixa, terra de muitos ribeiros, nada melhor para transportar a porcaria produzida diáriamente. E quando falo em porcaria, refiro-me quase exclusivamente à que a função digestiva considerava inútil ao bom funcionamento do organismo. Porque a outra era aproveitada, quer para alimentar porcos e galinhas, quer para aumentar o monte de estrume para adubar as terras. Aliás, todos os detritos organicos faziam parte dessa forma de obter nutrientes para o solo arável. Na falta de retretes (eufemisticamente designadas agora “casas de banho”), o depósito dos penicos caseiros juntava-se ao monte onde já estava o resultado da limpesa das capoeiras e coelheiras que todas as casas possuiam. E, se nas habitações do povo assim acontecia, nas casas ricas só diferia porque o trabalho era executado pelos serviçais. O resultado, no fim de contas era o mesmo. Conheci bastante bem três dos palácios da vila. Em todos, as casas de banho resultaram da adaptação de antigos quartos ou dependências com dimensões adequadas à nova função. Quer dizer, nenhuma dessas moradas senhoriais foi construida privilegiando instalações sanitárias. No Palácio dos Figueiredos, actuais Paços do Concelho, ao fundo do corredor da ala sul existia um pequeno compartimento onde, no meio de um estrado de madeira havia um buraco ligado directamente às cavalariças e de onde eram vertidos os detritos que caiam mesmo em cima do monte de estrume. Mais tarde, já no tempo de Artur Barreto, este aproveitou um quarto da mesma ala sul e adaptou-o a casa de banho, mas expressamente dedicado a esta função. O tal compartimento sobre as cavalariças continuou a ser usado, agora ligado ao cano que conduzia a uma linha de água, porque as cavalariças deixaram de ter essa função e passaram a... armazém de mercearias!
É curiosa a maneira como um subdelegado de saúde do século dezanove propunha a solução do problema sanitário. A obra “Subsídios para a História de Condeixa”, de Fernando Rebelo e Isac Pinto, conta-nos como foi, numa carta enviada ao Vice-Presidente da Câmara, Wenceslau Martins de Carvalho, em 13 de Agosto de 1898, pelo Subdelegado de Saúde de Condeixa:
“O assunto para que V. Exª. chama a minha atenção, é de tal modo importante e presta-se a tão longas considerações que mal cabiam elas nos limites de uma simples resposta a ofício. É muito para lastimar que Condeixa, a qual pelas suas condições topográficas poderia ser uma população modelo com relação à sua limpeza e à sua higiene, esteja desde há muito tanto e tão descurada nesse sentido, parecendo até ter sido votada a um ostracismo completo. Condeixa, disposta num declive em forma triangular, apresentando a base desse triângulo na sua parte superior, pela qual poderia entrar a água a jorros por diferentes pontos e percorrer toda a povoação, vindo sair no seu ponto inferior onde está colocado o vértice do triângulo, encontraria em si todas as condições de lavagem perfeita e de limpeza completa, se fosse envolvida por um sistema de canos de esgoto por onde a água pudesse circular à vontade. Realizada essa rede de esgotos, o canto de saida de todos os detritos não podia deixar de ser o cano construido na Rua da Assunção que faz parte da estrada municipal de Condeixa ao Casal da Légua, a desaguar ao fundo da ladeira do Amparo e, como principio de um sistema de esgotos que a Exª Câmara diz tenciona levar a efeito, não pode deixar de ter uma importância e vantagens incontestáveis para a higiene desta povoação. Dos três pontos diferentes em que poderia ter lugar a abertura de saida deste cano- Vala da Lapa, Regueira Pública de Condeixinha e Várzea de Condeixinha- é este o único ponto possível perante a higiene em que pode ter lugar esse desaguamento. A Vala da Lapa, recebendo já no seu percurso bastantes detritos que, entrando em decomposição, vão encher de miasmas todo o bairro da Lapa e Travaz, não pode nem deve receber a mais os que lhe viriam do cano de receptáculo de toda a povoação; e nem este fim pode ser preenchido pela Regueira Pública de Condeixinha que, atravessando a descoberto toda a comprida rua de Condeixinha iria mimosear os habitantes de toda aquela àrea, com um extenso e comprido foco de infecção; a Varzea de Condeixinha, extenso campo, longe da povoação e separada dela por lindos e magníficos pomares, seria o único ponto admissível para a boca de saida dum cano de esgoto geral e aquele que a higiene aconselharia, rejeitando por completo os outros dois. Sobre isso, repito, muito haveria a dizer, mas termino aqui as minhas considerações, concuindo que é toda a vantagem, debaixo do ponto de vista higiénico, o cano feito com o princípio dum sistema de esgoto e que a boca de saida, colocada ao fundo da ladeira do Amparo desaguando nos campos da Varzea, tem uma supremacia higiénica evidente sobre os outros dois citados sítios. Mas quando o cano em questão não fosse suficiente para dar saida às águas de lavagem, ou a qualquer enxurrada intempestiva, fácil seria abrir canos de derivação para aqueles pontos, ampliando assim a rede de esgotos e, bem mereceria do município a vereação que levasse a efeito obra tão útil e humanitária”.
Nesta interessante carta, há vários e importantes pontos a considerar. Em primeiro lugar, a constatação daquilo que já referi, a intenção de utilizar as linhas de água como principal condutor dos detritos de toda a vila, o que veio a acontecer exactamente como o profissional da saúde propunha. Muitos anos passaram com esse sistema de drenagem. Foi já no final do século vinte que Condeixa instalou a central de saneamento e estação de tratamento de esgotos.
Segundo ponto, a Vala da Lapa é a linha de água que deriva do Caldeirão, junto à Quinta de S. Tomé, passa pela Rua da Água, Rio do Cais e segue pela vertente sudoeste de Condeixinha, Pelomes, Lapa, Entre-Moinhos, Travaz e as terras planas do Espírito Santo, Ribeira, etc. Imagine-se a quantidade de casas abrangidas por este ribeiro! Todas a despejar continuamente lixo para a água! Não admira, pois que, já no século dezanove o responsável pela saúde pública entendesse que “vão encher de miasmas...”.
Em terceiro lugar, a solução preconizada por esse responsável, de considerar a Varzea de Condeixinha, com “os seus agradáveis e magníficos pomares”, ponto de recepção dos despejos de parte importante da vila é, no mínimo, curiosa.
Mas o plano foi adiante e, durante um século, constituiu a drenagem possível da terra. A Varzea e Condeixinha tiveram de aceitar o esterco que outros faziam. O “extenso campo, longe da povoação”, cada vez foi ficando mais perto, obrigando os pobres moradores a suportar o “foco de infecção” desviado do Travaz.
Se em sistema de esgotos a Condeixa de outros tempos era assim, a higiene corporal condizia com a situação. A lavagem corporal estava restringida ao “banho semanal”, que era efectuado numa larga bacia de zinco onde a água, trazida a custo de uma fonte ou poço, servia para lavar quase uma família inteira. Primeiro cada familiar lavava o tronco e a cabeça, e só depois desta fase se passava à seguinte, a lavagem do resto do corpo. Isto, se as condições da água o permitissem!
Estes factos são tão surrealistas, que parecem pura invenção. Porém, compreenda-se que o conceito de higiene era muito diferente de agora.
Já noutro local do meu blogue fiz referência ao Tanque do Galaitas, no Paço, como local privilegiado para a higiene dos homens e rapazes de Condeixa, até meados do século XX. A inauguração do sistema de abastecimento domiciliario de água, em 1950, veio terminar com as práticas colectivas de banho. Agora sim, as casas dispunham de água limpa a correr das torneiras. Pouco a pouco, melhoraram os hábitos, felizmente. As habitações foram adquirindo espaços destinados à higiene.
Porém, a rede esgotos continuava a “desaguar” nos ribeiros. O aumento de utilização da água e o progressivo abandono da recolha de residuos para estrumar as terras, motivou o aparecimento das famigeradas fossas sépticas, o que contribuiu para contaminar as linhas subterrâneas de água. As fontes deixaram de poder matar a sede a quem passa, porque as suas águas ficaram impróprias para consumo. E se eram agradáveis as fontes de Condeixa!De água fresquíssima, mesmo em tempo de prolongado estio, poucas foram as que secaram. Condeixa tinha várias fontes, cada uma com as suas próprias caracteristicas. Em Condeixinha curiosamente a Fonte das Bicas
possui apenas uma saída de água. Num outro local do meu blogue “Lugares de Condeixa-Condeixinha” descrevo as razões que motivaram a mudança do local da fonte, então com três bicas, para onde agora se encontra e a remodelação a que foi sujeita em 1930.
Na Faia (R.D.Elsa Franco Sotto Mayor) existiu uma fonte, inexplicávelmente designada Fonte da Caraça

. Localizada em frente às instalações da Casa do Povo, ficava em plano inferior ao nível da estrada. Possuia um lindo painel de azulejos que foi retirado quando a fonte foi desactivada e não se sabe onde foi parar.
No Outeiro, descendo para as terras do Paraíso, sem qualquer adorno, surge um cano a sair do muro. É a Fonte do Outeiro

com a água a ser aproveitada para o lavadouro, escorrendo depois em regueira abençoada a alimentar as pequenas, mas produtivas hortas. Daí, certamente, a designação de Paraíso.
Já a fugir da vila, no meio-termo a caminho da Barreira, a Fonte dos Amores

, lindo local outrora rodeado de altas nogueiras que lhe conferiam o estatuto de espaço fresco e agradável. Possui ao lado um tanque de pedra que recebe a água das bicas e servia para dessedentar os animais vindos da Feira dos Quatro, na Barreira. Por ser local recatado, era também preferido pelas moças no encontro com os namorados.
Longe também, nas ricas terras das Fontaínhas, uma gruta de estalagtites orlada de avencas, a Fonte da Costa, com a água muito fresca a brotar do seio de areia branca. E, mais adiante, ao fundo da ladeira da capelinha da Senhora da Lapa, a Fonte da Lapa

com o seu belo painel de azulejos.
Eram as Fontes de Condeixa, tantas vezes citadas pelos poetas locais. Ramiro de Oliveira e Álvaro Pedro Augusto escreveram uma letra para canção, afinal uma ode às lindas fontes:

Se vais à fonte sozinha
Olhas tanto para trás
Que quebras a cantarinha
A pensar no teu rapaz

Se quebrar o meu asado
Santo António vou jurá-lo
A pensar no namorado
É capaz de consertá-lo!

Não corras cachopa
Que eu te quero falar
Co’a pressa até podes
O asado quebrar

Olha lá não quebre
Ora diz-me então
Palavras que alegrem
O meu coração!

Meu amor fazias bem
Se me desses, uns golinhos.
Na boca como também
Assim fazem os pombinhos!

Não corras cachopa...


Condeixa, Junho de 2011.
Cândido Pereira

quinta-feira, 5 de maio de 2011

MOINHOS DE CONDEIXA

O tema em título merecia um trabalho bem desenvolvido, tratado com a importância que a existência dos cerca de 40 moinhos de Condeixa exige. Não tenho capacidade literária, nem suficiente informação para trabalho de tal monta. Mas, porque entendo que o assunto tem sido sistematicamente esquecido por quem o devia tratar, arrisquei escrever o presente artigo. Pelo menos, foi a maneira que encontrei para homenagear os nossos moleiros, embora da forma ligeira que o blogue apenas permite.

Condeixa era das terras do país com mais moinhos. Não foi por acaso a escolha da padroeira, Santa Cristina, a romana mandada atirar ao mar presa a uma pedra de moinho, pelo próprio pai, por se recusar a renunciar a fé cristã.

O milho, cereal primordial na alimentação, apenas surgiu na Europa depois das Descobertas, vindo do continente americano. No entanto, certamente antes do século XVI já existiam moinhos em Condeixa, nesse caso para moer outro tipo de grão, o centeio e o trigo. Mas o advento do milho criou um ritual que formou tradição nas nossas aldeias. Quando se fazia a colheita, as espigas eram reunidas num terreiro (eira) e à noite, após os restantes trabalhos agrícolas, juntava-se um grupo de homens e mulheres formando roda para a desfolhada (ou, como se dizia em Condeixa, “descamisada”), operação destinada a retirar a capa envolvente das espigas. Estas concentrações rurais constituíam verdadeira festa. Cantava-se ao desafio, contavam-se histórias e aproveitava-se o facto de haver pouca iluminação para se roubar um beijo à conversada. Júlio Dinis, na obra “As pupilas do Senhor Reitor”, retrata bem essa forma rural de viver os trabalhos do campo, em especial as desfolhadas.
Os moinhos, em algumas terras popularmente chamados “munhos”, concentravam-se ao longo de três linhas de água, sendo que uma delas, só desde a Quinta de S. Tomé até ao Travaz, a travessia da vila, possuía quinze engenhos.

Para a existência de moinhos, era necessária a água. E isso nunca aqui faltou!

(extracto do poema “A nossa grande casa azul” de Linda Glaser e Elisa Kleven)

Partilhamos a água
Salpicamos, chapinhamos e nadamos
Na água
E todos bebemos água
Baleias, golfinhos, manatins
Pinguins, palmeiras, tu e eu
Todos partilhamos a terra
A nossa grande casa azul.


A importância da água no planeta! No caso de Condeixa, fundamental para o seu desenvolvimento, quer na irrigação dos terrenos, quer na movimentação dos moinhos e lagares de azeite. Em termos de utilização em escala industrial mais ampla, existiu só uma exploração onde a água, vinda da “regueira de Santo António” era acumulada (tanque do Galaitas)e depois enviada por um canal de desnível, a accionar o rodízio que transformava a força hidráulica em força motriz,para o descasque de arroz. Esta fábrica, interessante exemplar da era da Revolução Industrial, desde muito cedo porém passou apenas a lagar de azeite.

RIBEIRA DE ALCABIDEQUE

Formada a partir da bacia de nascente que os romanos aproveitaram para recolher a água e enviá-la, através de longo aqueduto a fim de abastecer Conímbriga, tem também o seu caudal acrescido pela ribeira de Bruscos e o ressurgimento do Ramo. Logo a partir daqui começava o aproveitamento hidráulico.
No percurso, o rio encontra a Quinta de S.Tomé, importante exploração agrícola em tempos proprietária de meia Condeixa. Um canal entrava na propriedade murada para movimentar o moinho, juntando-se depois ao rio que contornava a Quinta em direcção ao nome que então adquire: Caldeirão. No começo deste, o boqueirão do Olho a regular o caudal, permite a existência de dois canais distintos, criados artificialmente para permitir a instalação de lagares de azeite e moinhos de grão. À esquerda, o ribeiro da Serrada alimentava três moinhos e um lagar, transformando-se depois em linha de água destinada a fins sanitários, acabando por ligar-se ao rio original a jusante. À direita, outro ribeiro mais farto, accionava vários moinhos no seu percurso até à vila, passando a descoberto na Rua da Água e na Praça, aqui a tomar o nome de Rio do Cais e a continuar, Condeixinha abaixo, a caminho do Travaz. Por sua vez, o Caldeirão movia lagares e moinhos e ainda tinha tempo para formar cascata no Cigano. Lá vai seguindo, mais suave nas terras baixas da planície poente, a caminho de caudais de outra dimensão. Dizia-se que o Caldeirão era um “braço de mar”. Provavelmente! Em tempos muito remotos, seria um rio de maré, tal como o Rio dos Mouros. As margens profundas assim o sugerem. A monografia “Condeixa-a-Nova” de Augusto dos Santos Conceição, na 2ª edição apresentada por José Maria Gaspar, referindo-se a Conímbriga, diz-nos “…Só no século XVI é que alguns escritores se referem às ruínas de Condeixa-a-Velha. Frei Bernardo de Brito escreveu então as mais fantasiosas referências acerca da sua fundação e da existência das suas ruínas. No século imediato porém, Miguel Leitão de Andrade não quis ficar por menos imaginoso, pelo que afirmou que em certo ano teriam aparecido na Conímbriga – que era porto de mar – numerosas naus, donde desembarcaram aguerridos inimigos a saquear a cidade e a desbaratar os seus habitantes…”, mas acerca disto, diz J.M.Gaspar em rodapé: “ A distância dalgumas léguas a que fica o mar e a própria ondulação do terreno, não depõem apesar do enorme tempo decorrido a favor de semelhante presunção; confirma-o não se encontrarem, a qualquer profundidade da terra, quaisquer vestígios marinhos. A verdade porém é que ali perto, no Lezeirão da Ega, há muitos fósseis de origem marinha quase à superfície da terra. No rio há o “Porto das Negras” e, cinquenta anos atrás ainda corriam entre o povo alusões a raptos e roubos feitos na região por barcos velozes e poderosos… ”. (Dados históricos apenas para justificar uma teoria. No local onde actualmente estão localizados os edifícios das Piscinas Municipais, Pavilhão Desportivo e Quartel da G.N.R., existiu em tempos muito remotos, uma lagoa com provável ligação ao mar, como se pode comprovar pelo extracto geológico do monte cortado na altura da construção do IC3. Terá sido por aí que chegaram as “numerosas naus”?)
O desenvolvimento de Condeixa-a-Nova deveu-se principalmente, às muitas linhas de água que alimentam as terras úberes. Os terrenos vão-se estendendo em declive suave, evitando que as águas ganhem velocidade e mais depressa se misturem com o mar. Recuando ao tempo da fundação da nacionalidade, Afonso Henriques entregou as terras de Condeixa à guarda dos frades cruzios, com responsabilidade pelo repovoamento e arroteamento dos vastos espaços agrícolas.
Alcabideque, a principal origem das águas, já era povoação, supondo-se fundada pelos romanos, com o nome provável de “caput aque”, a que os mouros teriam aposto o sufixo “Al” e modificando o resto da grafia. Assim a cantou o poeta islâmico Abu Zeide Mohamede Ibne Mucana, no século XII:(a)
(alcabideque-2) Ó tu que vives em Alcabidek
Oxalá nunca faltem
Nem grão para semear
Nem cebolas, nem abóboras…

A agricultura, sempre referida, porque fonte de rendimento para os senhores e subsistência para o povo.
Desde tempos imemoriais, o homem serve-se dos cereais como alimentação. Para se tornar mais fácil a utilização, o grão era triturado entre duas pedras que se adaptavam à concha da mão. Evolutivamente, passou-se ao almofariz, de pedra ou madeira, e ao rebolo, constituído este por uma pedra base, rectangular, e outra redonda que se movimentava em vaivém. O movimento circular só apareceu em Roma à roda dos séculos V ou IV aC. O passo seguinte foi a invenção da mó com punho, para girar manualmente. Ainda existem algumas dúvidas sobre qual o principal meio usado inicialmente para movimentar mecanicamente as mós, se a tracção animal ou a utilização hidráulica, mas tudo indica que tenha sido esta última.
Nesse sentido, “escreve Lopes Marcelo, na sua obra “Moinhos da Baságua”: “A mais antiga referência ao moinho de água consta de um epigrama de Antípatros de Salónica que se presume ser de 85 aC, embora alguns autores o situem na época de Augusto. Tal epigrama “é uma elegia poética ao carácter feminino da moagem primitiva”. Também Luís Filipe Rosa Santos, na obra "Os moinhos de maré da Ria Formosa" refere o mesmo epigrama, dizendo: «Sossega as tuas mãos, oh! Mulher que fazes girar a mó! Dorme bem, mesmo que o galo anuncie a aurora, porque as ninfas, por ordem de Deméter, fazem o trabalho que ocupava teus braços: atira-se sobre a roda e os seus raios, forçando em volta o eixo que põe em movimento o peso das mós côncavas de Nysiros!» “Trata-se inequivocamente de um moinho hidráulico de rodízio com a particularidade de fazer referência à disponibilidade que este novo engenho permitia ao homem, neste caso às mulheres que teriam a seu cargo a farinação dos cereais.”
Pensa-se que remonta ao século XIII a existência em Portugal dos primeiros moinhos de vento. Em Condeixa ainda se pode ver um destes, bastante degradado, na Serra de Janeanes. Não é de cúpula giratória tipo moinho mediterrânico, mas sim construído para que fosse toda a estrutura a movimentar-se. Na sua base estão colocadas rodas de pedra que corriam num leito de lajes colocadas ao redor do moinho. Deste modo, o moleiro colocava o engenho na posição mais favorável à tomada de vento para as velas. Na freguesia do Bom Sucesso, Figueira da Foz, existe um moinho idêntico, completamente restaurado, como demonstra a fotografia.
Voltando aos moinhos de água, primitivamente a impulsão do rodízio horizontal dava-se na parte inferior dele, o que implicava a necessidade de impulsão liquida bastante forte, que nem sempre era conseguida. Assim, quando foi inventado um novo método que consistia na condução da água através de canal que impulsionava as pás do rodízio pela parte superior, obtendo-se com menos água maior capacidade motriz para movimentar, não só moinhos, mas também lagares, serras mecânicas e outros engenhos, vulgarizou-se o sistema que chegou aos nossos dias, com as inevitáveis e necessárias alterações.
O moinho de cereal, na sua simplicidade aparente, é um engenho complexo. Desde a tomada de água, até ao processo da moagem do grão, todas as operações são cuidadosamente estudadas e executadas, para que resulte em pleno o trabalho do moleiro e a obtenção do produto final, a farinha. A água dos ribeiros era conduzida por um canal, a “levada”, no extremo da qual havia uma “comporta” para regular a entrada, descendo ela por uma conduta até à casa dos rodízios, onde saía em pressão pela abertura chamada “seteira” e impulsionava o rodízio que, por sua vez possuía um veio vertical. Este atravessava o olho da mó de baixo (dormente), e suportava com a “segurelha” a mó de cima (movente ou andadeira) para triturar o grão.
As mós eram anéis maciços de pedra. Condeixa-a-Velha contribuiu enormemente para a produção de mós, chegando a fazer exportações para o estrangeiro porque era grande a qualidade da pedra. Ainda hoje é possível observar um dos locais onde ela se retirava e se trabalhava, junto às Ruínas Romanas de Conímbriga.
A duração de uma mó dependia da qualidade da pedra, mas variava entre cinco e dez anos. O desgaste provocado pelos cereais, a regular picagem que se fazia para aumentar a capacidade de moagem e o atrito, deixavam as mós reduzidas na espessura, sendo necessário proceder-se à sua substituição. Ainda assim, eram aproveitadas para lajear o piso das casas ou reforçar as paredes, como aconteceu na casa actualmente de Fortunato B. Pires da Rocha, cujo avô, como proprietário das pedreiras de Condeixa-a-Velha, utilizou bastantes mós na construção do seu prédio.
O interior da casa do moinho era dominado pela presença do engenho de farinha, composto pelas duas mós e pela “moenga”, armação em madeira de aspecto rudimentar, mas bastante funcional. Tinha a forma de gamela ou pirâmide invertida, sem topos. Nesta caixa era colocado o cereal a moer. O grão saía para a “quelha”, peça de madeira com o feitio de caleira e tombava no “olho da mó andadeira". Para que o cereal caísse regularmente, existia uma peça, o “tangedouro”, normalmente obtida de um pequeno ramo curvo de árvore, fixo à peça que se apoiava na “quelha” e assente sobre a mó. A rugosidade e rotação desta imprimiam o movimento continuo de oscilação necessária à caída do grão, função importante porque se caisse pouca quantidade, as pedras aqueciam e queimavam a farinha, além de provocar maior desgaste das mós; caso contrário, a farinha empapava as pedras, provocando a paragem súbita do rodizio e provovando neste graves avarias. As mós possuíam sulcos concêntricos destinados a impulsionar o grão no sentido da moagem e, por efeito centrífugo, fazer a saida da farinha para a caixa, “tremonhado”, colocada na frente do engenho, sendo depois metida em “taleigas”, sacos de pano onde era armazenada. Toda a estrutura da “moenga” estava suportada por barrotes de madeira, corda e arame.
O MOLEIRO
Falando de moinhos, tem de se referir o profissional que tudo fazia, desde preparar a condução da água, até entregar a farinha aos clientes e trazer de volta o cereal para moer. Lopes de Macedo, na sua obra "Moinhos da Baságueda”, pág. 60, diz assim: “Tal como os restantes ofícios, a profissão de moleiro estava sujeita a normas de regulamentos ou leis avulsas, Regimentos Municipais e Códigos de Posturas. Em termos de registos que chegaram até aos nossos dias, destaca-se a região norte, em particular a zona de Guimarães." Em destaque, tem ainda a seguinte e curiosa nota: "Os moleiros, assim de trigo como de broa eram obrigados a terem os seus guarda-pós(os panais de protecção da farinha que vai saindo das mós)em panos "que não esponjem",ou em estopa, fechados e cobertos por uma esteira;e seus tremonhados(locais para onde cai a farinha)"bem varridos e limpos",para o que terão sempre "suas vassouras ou juncos";e não terão nos seus moinhos galinhas,nem cães,nem porco,mas sim,pelo contrário,ratoeiras armadas e um gato. (do Regimento municipal de 1719 e Acta de 1829 (Guimarães).Transcrito do livro Sistemas de Moagem,SNIC,Centro de Estudos de Etnologia,pág.93".
O moleiro era auxiliado no seu trabalho pela mulher e filhos, que dividiam entre si as muitas tarefas. Não implica, contudo que o trabalho deixasse de ser exaustivo! Como já disse, periodicamente tinha de proceder-se à desmontagem das pedras para a picagem. Este serviço era executado pelo próprio moleiro, bem como a reparação de todo o conjunto bastante pesado do rodízio. Este estava assente numa barra, a “ponte”, com um furo central onde encaixava o “aguilhão”. A ponte era comandada por um veio vertical, o “aliviadouro”. Na casa do moinho, existia uma manivela que subia ou descia o “aliviadouro”, permitindo a afinação das mós. Da distância entre estas, dependia a qualidade da farinha. O moleiro conhecia tão bem o seu moinho que bastava a alteração do “cantar” das mós, para saber o seu estado e se tinham grão suficiente para moer. No entanto, porque as diversas tarefas podiam eventualmente distrair-lhe a atenção, era comum utilizar um estratagema que consistia em colocar um pedaço de cortiça preso a uma corda, com chocalho na ponta. A cortiça era metida no meio do grão. Quando ele começava a escassear, o chocalho caía sobre a pedra e, ao soar, avisava o moleiro.(moinho)
A farinha é a base da alimentação quer através do pão, quer mesmo utilizada directamente na culinária, por exemplo, nas “papas laberças", prato que se obtem juntando a farinha à sopa já confecionada. O nome “pão” é genérico de toda a alimentação. No entanto, é especificamente aplicado ao “bolo" de farinha de trigo ou centeio. Sendo de milho, já se chama broa. Para cozer o pão ou a broa, os lares de melhores condições sociais possuiam forno próprio, aquecido com lenha.Tinham o feitio abobadado e apenas uma porta. Mas também existiam fornos comunitários. Em Condeixa eram chamados "fornos da poia", locais onde as familias mandavam cozer o "pão" laborado em casa. Sendo terra de moinhos, Condeixa tinha também muitos fornos comunitários. A actual Rua 25 de Abril chamou-se outrora Rua dos Fornos, depreende-se por que razão. Na Serrada e no Outeiro, existiram “fornos da poia”, no entanto, o forno mais conhecido era o da Ti Prazeres, localizado onde hoje se encontra um dos estabelecimentos de fotografia de Delfim Ferreira, à entrada da Rua Manuel Ramalho, junto às instalações da Santa Casa da Misericórdia.
Muito mais coisas deviam ser ditas sobre os moinhos de Condeixa e todas as actividades a eles directamente ligadas. Conheço várias obras versando este assunto, nenhuma de Condeixa! Não será já tempo de a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia ou qualquer outra entidade responsável, decidir mandar fazer e publicar um estudo sobre os Moinhos de Condeixa, enquanto é possível obter espólio fotográfico e informação fiel de pessoas ligadas ao tema?

- VOCABULÁRIO DOS MOINHOS-

AÇUDE- Construído em pedra, serve para represar a água do rio ou ribeiro.
LEVADA- Canal que tem origem no açude e transporta a água até à represa.
REPRESA- Local onde é recebida a água vinda do açude.
AGUEIRA- Canal condutor da água em cascata para o rodízio.
CUBO- Cabouco na parte inferior do moinho, onde está colocado o rodízio.
SETEIRA- Peça existente ao fundo da agueira, de onde sai a água projectada para o rodízio.
ZORRA- Peça de apoio ao rodízio.
PEGADOURO- Tábua que comanda a direcção da água.
COMANDO DO PEGADOURO- Serve para movimentar e parar o moinho.
RODIZIO- Roda com movimento horizontal, ligada à mó por um veio.
TAPUME- Tampão regulador da entrada da água para a agueira.
PEDRA- Mó em granito.
CUNHAS DA AGULHA- Tacos reguladores do controle e levantamento da pedra.
MOENGA- Peça em madeira, quadrada ou rectangular, onde é colocado o grão.
CALEIRA- Peça em madeira ou cortiça. Recebe o grão da moenga para o olho da mó.
TREMONHADO- Lugar para onde cai a farinha da mó.
ALQUEIRE- Medida em madeira que serve para medir os cereais.
TALEIGO- Saco em pano onde é transportado o grão ou a farinha.
MAQUIA- Parte retirada para o moleiro. Corresponde ao pagamento do seu trabalho.
TREMONHA OU QUELHO- Peça de madeira colocada no fundo da moenga.
RELA OU CHAMADOURO- Peça destinada a oscilar o quelho, para a queda do grão
SEGURELHA- Peça em ferro que suporta a mó “movente”.
VEIO- HASTE e PELA- Veio vertical que transmitia a rotação do rodízio à mó.
PENA (em Condeixa, chamada Badana)- Cada uma das hélices do rodízio.
PONTE- Barrote horizontal onde apoiava o aguilhão do rodízio.
TRAVE DO ALIVIADOURO- Veio vertical ligado à trave da ponte.
ALIVIADOURO- Manivela no interior do moinho, que comandava a ponte.
AGUILHÃO- Ponta metálica que apoiava o rodízio na zorra.

(a)-No volume “Tecnologia Tradicional Portuguesa-Sistemas de Moagem”, de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, afirma-se que o poeta islâmico se referia a Alcabideche, povoação do concelho de Sintra. Sem dados que me permitam formar opinião concreta, permito-me, no entanto, discordar de tal afirmação.

Quero deixar o meu agradecimento a António da Costa Pinto, fotógrafo condeixense, pela cedência das fotografias de moinhos e a Carlos Alberto Azenha, pelo empréstimo de livros que me facultaram a necessária informação técnica.

Condeixa, Abril de 2011
Cândido Pereira